ALEXANDRE VANNUCCHI LEME, 50 ANOS DE UM CRIME

 

Silvio Pera

(Professor de História)
13 de março de 2023

 

Há cinquenta anos, o cardeal arcebispo de São Paulo dom Paulo Evaristo Arns pregava para mais de 3 mil presentes na Catedral da Sé, no que foi chamada “Celebração da Esperança”, dizendo as seguintes palavras:

“Só Deus é dono da vida. D’Ele a origem, e só Ele pode decidir o seu fim. O próprio Cristo quis sentir a ternura da mãe e o calor da família ao nascer. E mesmo depois de morto, o cadáver foi devolvido à mãe e aos amigos e familiares. Esta justiça lhe fez o representante do poder romano, embora totalmente alheio à Sua missão de Messias”.

Convocação para a missa na Catedral da Sé, em São Paulo, na tarde de 30 de março de 1973. O anúncio era também denúncia.

Naquele 24 de março de 1973, o cardeal rezava a missa de sétimo dia encomendada pelo Diretório Acadêmico do curso de Geologia da Universidade de São Paulo  (USP), junto com outras entidades estudantis, em razão da morte de Alexandre Vannucchi Leme, aluno do curso de Geologia. 

O jovem morreu dois dias após ser preso por agentes do DOI-CODI/SP, o famigerado Destacamento de Operações de Informação-Centro de Operações de Defesa Interna. Subordinado ao Exército, foi um dos mais violentos aparelhos da repressão aos opositores criados durante a ditadura que se seguiu ao golpe de Estado de 1964.

Começava ali uma angustiante luta para que os pais pudessem recuperar o corpo do filho, enterrado como indigente, em cova rasa e sem caixão no cemitério municipal de Perus, distrito da zona norte da capital paulista. Apenas dez anos depois do cardeal ter clamado naquela missa o direito da família de sepultar o ente querido, o seu cadáver foi devolvido aos pais, amigos, familiares e levado para Sorocaba, sua cidade natal, e dignamente enterrado.

 

“… eu só disse meu nome”

Alexandre Vannucchi Leme nasceu em 1950, em uma família marcada pelo ativismo católico. Filho de pais professores ligados à Ação Popular (ou AP, um movimento da esquerda cristã surgido no início da década de 1960), tinha três tias freiras e um tio padre, também professor no seminário da diocese de Sorocaba e liderança na Juventude Operária Católica (JOC).

O envolvimento do jovem assassinado com o movimento estudantil aconteceu desde a educação básica e se intensificou quando veio para a capital paulista, após passar em primeiro lugar no vestibular para o curso de Geologia da USP, em 1970. O corpo franzino e o interesse por tudo aquilo que estava abaixo do solo lhe valeram o apelido de “Minhoca”.

Na Universidade,em meio ao período mais repressivo da ditadura, Alexandre se aproximou da Aliança Libertadora Nacional (ALN), uma organização que defendia a luta armada como instrumento de combate ao regime e que realizou, durante seu tempo de atividade (1967-1974) notáveis ações de grande repercussão: assaltos a bancos, atentados e sequestros.  Talvez a ação mais espetacular de todas, tenha sido o sequestro do embaixador dos EUA, Charles Elbrick, em setembro de 1969, cuja soltura foi condicionada à libertação e permissão de partida para o exílio de 13 presos políticos. Por essas e outras, a ALN passou a ser um dos maiores alvos dos grupos de repressão. Vários de seus membros, simpatizantes e até gente que não tinha nada a ver com ela, foram presos e torturados para que delatassem planos, esconderijos e outros militantes.

A prisão de Vannucchi ocorreu nesse contexto. Ele foi visto pelos colegas de turma pela última vez na manhã de 15 de março, durante as aulas na faculdade, mas ninguém testemunhou sua detenção no dia seguinte, quando foi levado para o prédio do DOI-CODI, na rua Tutóia, bairro do Paraíso, onde hoje está alojado o 36º Batalhão da Polícia Militar de São Paulo. Naquela mesma tarde Alexandre foi torturado por agentes de segurança comandados pelo então Major Carlos Alberto Brilhante Ustra.

UstraComissao

O coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, herói do ex-presidente Jair Bolsonaro, como depoente à Comissão Nacional da Verdade. Além de torturador, Ustra foi chefe dos centros de tortura e assassinato da ditadura militar no Brasil. Nunca foi punido.

Vinte presos políticos ocupavam as demais celas ouviram os gritos e gemidos de Alexandre vindos da “sala de interrogatório” até que, por volta de meia-noite, as sevícias cessaram. Quando carregado para a solitária, gritou para os outros detidos: “Meu nome é Alexandre Vannucchi Leme, sou estudante de Geologia, me acusam de ser da ALN… eu só disse meu nome”.

Na manhã do dia seguinte, Alexandre foi visto sendo conduzido para a sala de tortura, ainda caminhando por conta própria. O suplício continuou por algumas horas. Por volta do meio-dia, voltou carregado para a solitária.  Entre 16h e 17h, um carcereiro foi buscá-lo para mais uma sessão de torturas, mas ele já estava morto. Começou um corre-corre nervoso enquanto os demais presos receberam ordem de ficar no fundo das celas para nada verem.  O corpo de Alexandre foi retirado e sua cela, lavada.

O relato acima baseia-se nos depoimentos dos presos que estavam no quartel da rua Tutóia naqueles dias. Neide Richopo, Adriano Diogo, Luis Vergatti, César Roman dos Anjos Carneiro falaram à Comissão da Verdade do Estado de São Paulo “Rubens Paiva”, no ano de 2014, e ao jornalista Caio Túlio Costa, que contou essa história em seu livro Cale-se (editora Girafa, 2003).

 

Um presente macabro

Três dias depois da morte do filho, o senhor José de Oliveira Leme, recebeu um telefonema anônimo em sua casa avisando que Alexandre estaria preso no DOPS, em São Paulo. O pai deslocou-se até a capital em busca do filho. Nas dependências do DOPS foi informado que não havia nenhum registro da prisão do jovem.  A mesma resposta negativa que recebeu em outros departamentos policiais, o DEIC – Departamento Estadual de Investigações Criminais -, e o DEGRAN –Delegacia Geral da Grande São Paulo. Sem conseguir ser atendido na sede do II Exército, voltou para Sorocaba.

Três dias depois, ao pegar novamente o ônibus para continuar a procura pelo filho na capital paulista, o senhor Leme leu no jornal Folha de S. Paulo a notícia sobre a morte de Alexandre, que trazia uma das versões oficiais apresentadas pelos agentes da repressão: o jovem teria sido atropelado por um caminhão na rua Bresser, no bairro do Brás, região central da cidade, ao empreender fuga para não ser preso por agentes policiais. Antes, contudo, os torturadores haviam dito aos presos políticos que se encontravam no DOI-CODI, que Alexandre cometera suicídio com o uso de uma lâmina de barbear.

José Leme dirigiu-se de imediato ao IML/SP em busca do corpo do filho. Lá, foi informado que Alexandre havia sido sepultado como indigente, no Cemitério de Perus. Como muitos outros pais, a família Leme levaria muitos anos até conseguir recuperar os restos mortais do jovem assassinado por agentes do Estado.

Os delegados de polícia responsáveis pelas investigações sobre o caso, Edsel Magnotti e Sérgio Paranhos Fleury forneceram versões díspares e contraditórias para a causa da morte: o primeiro afirmava a tese do suicídio (depois desmentido pelos depoimentos prestados pelos companheiros de prisão, na 1ª Auditoria Militar, em julho de 1973). Fleury, diretamente ligado ao “esquadrão da morte”, não apenas sustentou que Alexandre  morrera atropelado como, infame, ofereceu ao pai, como uma horrível lembrança, a placa do caminhão responsável pela fatalidade.

Recorte do jornal O Globo” de 23 de março de 1973 noticia a versão falsa da morte de Alexandre.

 

A reação ao crime foi enorme, embora não tenha sido relatada pela imprensa, que vivia calada para esses assuntos pela forte atuação da Censura Federal. Além do cardeal Arns, importantes lideranças do clero católico, como o arcebispo do Recife, dom Hélder Câmara e o bispo da diocese de Sorocaba, dom José Melhado Gomes exigiram apuração rigorosa do ocorrido. Os colegas de Alexandre recusaram-se a reiniciar as atividades acadêmicas até o esclarecimento dos fatos.

Apesar do pesado clima de repressão vivido nesses anos, a notícia chocante motivou professores e alunos do Instituto de Geologia a realizarem uma assembleia, em 23 de março, que aprovou a formação de uma comissão para apurar as circunstâncias da morte do jovem e das prisões de outros estudantes, bem como uma paralisação simbólica de protesto junto com as demais faculdades da USP. Três dezenas de centros acadêmicos (dezoito da USP, três da PUC/SP e seis da PUC/RJ, além de outros do interior de São Paulo) lançaram um comunicado lamentando o episódio e declarando luto.

No congresso, o deputado Lisâneas Maciel (MDB-RJ) fez um emocionado discurso denunciando o crime de Estado. Artistas, como Gilberto Gil e Chico Buarque de Hollanda, driblando a censura, homenagearam o estudante em suas apresentações. Manifestos de repúdio foram lidos em peças de teatro, missas, portas de fábricas e pátios das universidades.

Por conta das pressões e com a intenção de mitigar a repercussão inesperada, um inquérito militar foi instaurado pelo governo em abril e contou com os depoimentos de supostas testemunhas do acidente: agentes do DOI-CODI, o balconista de um bar da rua Bresser e o próprio motorista do caminhão, que afirmava ter visto o rapaz correndo dos policiais e, sem que pudesse evitar, se chocado com a dianteira do veículo. Como era de se esperar, tudo havia sido composto para corroborar a versão oficial do atropelamento, inclusive um laudo de autópsia forjado pelo doutor Isaac Abramovitc. Para completar a vilania, sepultamento sem caixão, em cova forrada com cal para acelerar a decomposição do corpo. 

 

Cinquenta anos agora

A morte do estudante e toda a reação que se seguiu, representaram um marco na oposição ao regime que havia se instalado nove anos antes. Sobretudo em relação à postura da Igreja Católica que, a princípio, quando não defendia abertamente o golpe e o regime dele decorrente, vistos como instrumentos de salvação nacional das garras do demônio comunista, ao menos adotava uma posição de leniência, mesmo diante das barbaridades cometidas pelos órgãos repressão, ampliadas depois da decretação do AI-5, ao final do ano de 1968. Pela primeira vez, um integrante do alto clero católico do Brasil, como o cardeal arcebispo da maior cidade do país, liderou uma ação de desagravo contra a violência cometida pela ditadura. Não sem ter sido ameaçado de forma velada ou mesmo explícita por pessoas ligadas ao regime.

Integrante do núcleo duro do governo, o coronel Jarbas Passarinho, então Ministro da Educação, enviou uma carta aberta a dom Paulo Evaristo demonstrando toda a sua irritação: “a missa marcada por homilia extremamente severa para com os responsáveis (julgados, assim, à revelia) pela segurança do Estado, essa missa, Senhor Cardeal, poderia ter provocado um rio de sangue, agora sim de inocentes e de piedosos! Mercê de Deus e graças à prudência das autoridades, felizmente, não aconteceu. Mas a sua probabilidade era extremamente alta. Creio que Vossa Eminência considerou essa possibilidade, mas preferiu correr o risco, por motivos decerto ponderáveis, que me escapam”.

Gil_USP

O “show proibido” de Gilberto Gil na USP, em 1973, quando cantou a música “Cálice” a pedido dos estudantes. Gil nunca gravou a canção em álbum de estúdio e diz ter dificuldade de cantá-la.

Mesmo diante das ameaças, aqueles que combatiam a ditadura foram aos poucos buscando a coragem necessária e organizando os movimentos pela redemocratização do país. Seria uma caminhada longa, que faria dos estudantes atores muito importantes para a mobilização da sociedade civil. Desse processo, surgiu uma inédita aliança ecumênica, com outras lideranças religiosas se unindo à luta contra os crimes cometidos pela repressão.

Em setembro, seis meses após a morte de Alexandre Vannucchi Leme, o também militante da Ação Popular, Paulo Wright, foi morto após ser preso por agentes do DOI-CODI, em São Paulo. Ele era irmão do pastor presbiteriano Jaime Wright, o principal líder dessa denominação cristã no país. O fato repercutiu não só entre lideranças protestantes progressistas, como mobilizou a Comissão de Justiça e Paz da arquidiocese de São Paulo, além de outras entidades de defesa dos direitos humanos.

Dois anos depois, uma nova morte mal explicada promovida por agentes da repressão, a do jornalista Vladimir Herzog, envolveu a comunidade religiosa dos judeus.  Milhares de pessoas se reuniram no interior e nos arredores da Catedral da Sé, na capital paulista, no ato inter-religioso presidido pelo Cardeal Arns, pelo Pastor Wrigth e pelo residente da Congregação Israelita do Brasil, Henry Sobel. E apesar do forte aparato policial nas ruas tentando bloquear os acessos ao centro da capital, os manifestantes foram chegando em pequenos grupos, formando uma massa de quase dez mil pessoas que cantavam e gritavam slogans em defesa da democracia.

Hoje, os inimigos da liberdade ainda estão à espreita, agindo contra as leis e o Estado de Direito. Cinquenta anos depois, a morte brutal do jovem Minhoca provocada por agentes de segurança do Estado será relembrada em ato ecumênico no próximo dia 17, em missa às 19 horas na Catedral da Sé, em São Paulo.

A celebração deve ser encarada por todos que amamos a liberdade, não apenas como a lembrança de um luto negado a uma família por um governo ditatorial, mas sobretudo como reafirmação de continuidade da luta pacífica pela autêntica democratização do nosso país.

 

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