Mohamed Bazoum permanece refém da junta militar que tomou o poder
O Níger, país de 25 milhões de habitantes, é o novo alvo da onda de golpes de Estado que varre o Sahel. A extensa área, que percorre vários países, é hoje palco da maior ofensiva jihadista da África. Nesse arco semiárido ao sul do Saara, juntas militares utilizam o cenário de insegurança como salvo-conduto para o golpismo. Primeiro foi o Mali, em 2020, depois Burkina Faso, em 2022, agora o Níger – sem contar os casos específicos de Guiné e Sudão. Resultado: um ciclo de autoritarismo e instabilidade política no qual o jihadismo prospera ainda mais. Sem falar na possível entrada em cena de um novo personagem, cada vez mais atuante, o Grupo Wagner, mão invisível da Rússia.
Em 26 de julho, Mohamed Bazoum, presidente do Níger, foi preso no palácio do governo pela própria Guarda Presidencial. Uma tempestade de areia alaranjava a capital, Niamei, enquanto ocorria o quinto golpe de Estado na história do país. Rodeado por homens fardados, o coronel-major Amadou Abdramane anunciou, na emissora estatal TV Sahel, o fim da “sétima república” e a instalação do Conselho Nacional pela Salvaguarda da Pátria (CNSP), nome oficial da junta militar que tomou o poder de assalto. O general Abdourahamane Tchiani, ex-chefe militar de Bazoum, assumiu o comando do governo golpista.
Protestos espalharam-se pela capital nas horas seguintes, mas foram dispersados pela polícia. Já a França, a ex-metrópole onipresente e aliada do governo deposto, condenou a ação dos militares. No dia seguinte, os apoiadores do golpe saíram às ruas da capital bradando “Abaixo a França! Viva a Rússia! Viva Putin!”. A sede do Partido Nigerense pela Democracia e o Socialismo (PNDS), do presidente civil deposto, foi saqueada e a embaixada da França, cercada.
Bazoum tornou-se presidente em abril de 2021, na primeira transferência de poder pacífica da história do Níger. Ele apostou em acordos para desmobilizar integrantes de grupos jihadistas e, de fato, o nível de violência vinha caindo no país. Em 2022, somadas as mortes por violência armada em Níger, Mali e Burkina Faso, o primeiro foi responsável por apenas 10%. No primeiro semestre de 2023, o número de mortos pelos conflitos armados foi o menor nos últimos cinco anos.
O Níger enfrenta duas insurgências simultâneas. No sudoeste, grupos ligados ao Estado Islâmico e à Al-Qaeda agem na região das “três fronteiras”, limite com o Mali e Burkina Faso. Como já estão presentes no Benin, alcançaram o Golfo da Guiné. A outra frente de conflito localiza-se a sudeste, na fronteira com a Nigéria, de onde o Boko Haram conquista espaço e avança, especialmente na região do Lago Chade. Esses grupos jihadistas deformam os princípios do islamismo e os impõem às populações sob seu controle.
Pela sua posição estratégica, o Níger tornou-se um parceiro importante das potências ocidentais no Sahel, com destaque para a base aérea americana em Agadez, no centro do país. Já a França, depois de perder apoio do novo governo golpista do Mali, transferiu para o Níger a Operação Barkhane, cuja missão era conter o jihadismo, instalando uma de suas principais bases militares em Niamei.
A sustentação do novo governo militar, por hora rechaçado pelos países da Cedeao/Ecowas e pelas potências ocidentais, pode ampliar ainda mais a influência da Rússia no Sahel. O Níger conecta o Mali à Líbia, países onde os mercenários russos do Grupo Wagner já estão presentes, apoiando governos que os remuneram. O chefe da milícia, Yevgeny Prigozhin, comemorou o golpe no Níger, país que dispõe de vastos recursos energéticos, sendo o segundo maior produtor de urânio da África e o sétimo do mundo.
Por enquanto, não há indícios da presença russa nos acontecimentos. Mas, há duas semanas, ocorreu em São Petersburgo uma conferência África-Rússia, com promessas de amizade, de um lado, e cobranças para a liberação de grãos que abastecem vários países africanos, agora afetadas pelos bloqueios de portos ucranianos pelos russos. O ditador russo Vladimir Putin garantiu que não faltará grãos para aos amigos, embora os analistas questionem a viabilidade de tal promessa. Já os presidentes de Mali e Burkina-Faso declararam apoio explícito à guerra imperial russa na Ucrânia.
Apesar de suas imensas riquezas minerais, o Níger exibe um dos piores Índices de Desenvolvimento Humano (IDH) do planeta. Na intersecção entre o Sahel e o Saara central, é o sexto país mais extenso da África. Seus vizinhos alcançam tanto o Golfo da Guiné (Nigéria e Benin) como o Mar Mediterrâneo (Argélia e Líbia). Seu território possui maioria islâmica em todas as regiões e guarda as marcas da colonização francesa, como quase todos os países da região.
A França desenhou a colônia do Níger com o Sahel no centro, o Saara ao norte, o Lago Chade no sudeste e o rio Níger no sudoeste. Ali viviam os zarma-songai, priorizados pela França na montagem do aparato colonial. A maioria haussá, numa estreita faixa meridional que se estendia também pelo norte da Nigéria britânica, detinha o controle do comércio. Os seminômades tuaregues ficaram à margem, no vasto interior semiárido ou desértico.
Forças tuaregues, os “homens azuis” do deserto
A era das independências chegou na África após a Segunda Guerra Mundial, sob o signo da autodeterminação dos povos, mas deixou os tuaregues divididos entre Argélia, Líbia, Mali e Níger. O novo Estado nigerense os integrou melhor que os vizinhos, mas isso não aplacou o ressentimento face a um pacto de fundo étnico: a elite zarma-songai manteve o controle da política, enquanto os haussás dominam a economia.
Desde a independência, em 1960, o líder Hamani Diori alinhou-se com a França e instituiu um regime de partido único. Ditaduras militares sucessivas não modificaram a marginalização tuaregue. Quando o ditador líbio Muammar Kadhafi (1969-2011) buscou fortalecer o próprio poder por meio de um projeto expansionista denominado “Grande Saara”, os tuaregues foram instrumentalizados politicamente, passando a questionar a validade das fronteiras, enquanto Kadhafi lhes oferecia treinamento militar.
A primeira rebelião tuaregue (1990-1995) chegou ao Níger a partir da região Azawad, no Mali, foco da insurgência. O cenário de violência regional ampliou-se com a eclosão da guerra civil na Argélia (1992-2002), um conflito marcado entre radicais muçulmanos e forças militares. Na última década, novas revoltas tuaregues tem servido de correia de transmissão para o jihadismo no Sahel, como ocorre no Mali desde 2012.
O plano de combate francês ao jihadismo no Sahel assentou-se em cinco países: Chade, Mauritânia, Mali, Burkina Faso e Níger, o chamado “G5”. Contudo, o esforço desmorona aos poucos, sob o impacto de cada golpe militar na região. Mali e Burkina Faso já romperam com a ex-metrópole. Agora, se a junta militar nigerense conseguir se manter no poder, a política francesa dependerá ainda mais do Chade, governado pelo ditador amigo Mahatma Déby.
O presidente francês, Emmanuel Macron, coleciona fracassos em sua política africana
A ONU e a União Africana condenaram o golpe no Níger. França, União Europeia e EUA suspenderam programas de auxílio econômico ao país, mas os EUA prometem manter os programas humanitários. Para os europeus, a instabilidade no Níger, vizinho da Líbia e Tunísia, significa uma avenida aberta para a chegada de novos imigrantes.
Contudo, o principal ator regional hoje é a Comunidade Econômica dos Estados da África Ocidental (Cedeao ou Ecowas, na sigla em inglês), um bloco de 15 países do Sahel e do Golfo da Guiné. Criado em 1975, sob impulso da Nigéria, maior população e economia da região, destina-se a promover ações conjuntas pró-desenvolvimento e pró-estabilidade política regional. Os governos do Mali, de Burkina Faso, da Guiné e, agora, do Níger, foram suspensos da organização devido às suas origens golpistas.
Nas décadas de 1990 e 2000, as guerras civis na Libéria colocaram o tema da segurança regional no centro das preocupações do bloco. Os “capacetes brancos” da Cedeao tornaram-se forças de manutenção da paz, associando-se à ação dos “capacetes azuis” da ONU. A organização interviu diplomaticamente ou com tropas na Costa do Marfim e na Libéria, em 2003, na Guiné-Bissau, em 2012, no Mali, em 2013, e na Gâmbia, em 2017.
Desde a prisão do presidente Bazoum, o atual líder da Cedeao, Bola Tinubu, que é também presidente da Nigéria, condenou o golpe, apelando à resolução pacífica do problema. Em seguida, um comunicado da organização falou em “uso da força” para restituir o poder ao presidente ilegitimamente deposto. O primeiro prazo dado pela aliança da África Ocidental para a saída dos militares golpistas venceu em 6 de agosto e foi solenemente ignorado pelo general Tchiani e seus homens.
Os governos do Mali e de Burkina Faso anunciaram que a hipotética intervenção no Níger por forças da Cedeao seria considerada uma agressão aos dois países. A junta militar nigerense fechou o espaço aéreo do país fechado e recusou-se a receber enviados diplomáticos europeus. Em 10 de agosto, uma nova reunião da Cedeao anunciou mobilização de tropas para “prontidão”.
Guerra na África Ocidental? Infelizmente, para milhões de pessoas, o Sahel já é um campo de batalha há muitos anos.
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