Soldados italianos analisam o campo de batalha para a artilharia, na Etiópia
O hábito de tratar fascismo e nazismo conjuntamente tem a desvantagem de ocultar sutilezas, que apontam diferenças de percurso entre essas duas ideologias, sendo a questão racial uma das mais importantes. O regime italiano, diferente do alemão, não flertou com o racismo em suas origens. Foi só uma década após a conquista do poder que os fascistas incorporaram o discurso racista, sobretudo para justificar a brutalidade colonial.
Cartaz e mensagem enaltecem a conquista do império
As gentes da península itálica eram, em sua diversidade de comunidades, o resultado do cruzamento de muitos povos, ao longo de séculos. E, para um racista, nada pior do que a miscigenação, a “mistura de raças”, por supostamente enfraquecer a “raça superior”. Daí que falar em “raça pura italiana” era algo problemático. Os fascistas apelavam à união do povo, aos trabalhadores e patriotas. Era preciso defender a Nação da divisão provocada pela “luta de classes” apregoada pela esquerda revolucionária.
Na década de 1930, em resposta à depressão econômica mundial provocada pela quebra da Bolsa de Nova York, os regimes de extrema-direita retomaram o expansionismo territorial. Foi nessa época que a “raça” ganhou espaço no discurso político fascista, preparando os atos de conquista. Esses atos foram de tal forma brutais que enfileiraram uma lista de crimes de guerra e crimes contra a humanidade, especialmente em terras africanas.
Em 1939, o império colonial italiano contava cerca de 12 milhões de habitantes distribuídos entre Eritreia (colônia desde 1883), parte da Somália (1886), Líbia (1911), Etiópia (1935) e Albânia (1939), uma área de quatro milhões de quilômetros quadrados, mais de dez vezes o tamanho da Itália. Cerca de 200 mil civis italianos viviam nessas terras, convencidos da superioridade dos homens brancos e da insignificância dos povos atacados.
A pergunta que hoje grita é por que esses crimes foram ignorados nos tribunais instituídos no final da guerra? As forças fascistas foram responsáveis pelo assassinato de milhares de civis, pelo bombardeio de bases da Cruz Vermelha, pelo uso de gás venenoso, por matar de fome presos em campos de concentração, por destruir bens culturais de povos considerados inferiores. Por que aos italianos – mas não aos alemães e japoneses – foi concedida a graça do esquecimento?
Capa da revista Africa Italiana de fevereiro-março de 1942
O projeto fascista apresentava-se como resposta à imensa emigração que, desde meados do século XIX, sobretudo após a unificação italiana, dirigia-se ao Brasil, Argentina ou Estados Unidos. Os italianos fugiam da pobreza intensificada pela concentração fundiária. O governo falava em colônias agrícolas habitadas e operadas por camponeses italianos, o que nunca aconteceu.
Repetindo o senso comum da época, os fascistas acreditavam que as dificuldades da Itália decorriam da falta de colônias para explorar, reativando a mesma lógica imperialista responsável pela Primeira Guerra Mundial (1914-1918). O complemento desse projeto expansionista era o militarismo. De fato, o recrutamento militar foi a solução para o desemprego, que saltou de 300 mil pessoas em 1929 para um milhão em 1933.
Apesar de falarem em império, nunca houve um estatuto colonial unificado para reger a relação entre a Itália e suas colônias. Não foi possível conciliar os princípios de igualdade civil, vigentes na metrópole, e outro direito, baseado numa hierarquia de raças. Cada governador ou ministro de colônia agia de acordo com orientações vindas de Roma e era a autoridade máxima. Para compensar a diferença numérica entre colonizadores e colonizados, a violência dava o tom. As penalidades para quem desobedecesse eram rápidas e exemplares.
Em 19 de abril de 1937 foi promulgado o Real Decreto Legislativo 880, convertido em lei em 30 de dezembro do mesmo ano. Foram as primeiras medidas orientadas para a “defesa da raça” e inspiravam-se nas Leis de Nuremberg, criadas pelos nazistas em 1935. O primeiro artigo estabelecia a prisão de até cinco anos para o cidadão italiano que mantivesse relação conjugal com um africano.
Capa da revista La difesa della Razza, com o clássico desenho que sugere uma comparação “evolutiva” cujo ápice é o padrão europeu
A discussão sobre as leis raciais deu origem ao Manifesto da Raça ou Manifesto dos Cientistas Racistas, embora o título original seja mesmo Fascismo e os problemas raciais. Publicado na primeira página do Giornale d’Italia, em 15 de julho de 1938, o documento foi subscrito por um grupo de cientistas, professores e intelectuais a pedido do Ministério da Cultura Popular. Estava escrito: “a população da Itália atual é principalmente de origem ariana” e “É hora dos italianos se proclamarem francamente racistas”.
Surgiram diversas publicações destinadas à disseminar as teorias raciais, como a revista La Difesa della Razza (A defesa da raça), controlada pelo Ministério da Cultura Popular. O “racismo científico” justificava o império e ajudava a persuadir os italianos de que o colonialismo, a eugenia (pureza racial) e a segregação racial eram escolhas políticas amparadas nas leis da Natureza.
A primeira declaração antissemita feita pelo Duce ocorreu em 14 de julho de 1938, pegando de surpresa os judeus italianos, cujas comunidades se concentravam em Roma, Turim e Veneza. Em setembro entraram em vigor as chamadas Leis Raciais e os judeus perderam o direito de frequentar as escolas e as sociedades científicas e culturais ou de ocupar cargos públicos e exercer certas profissões. E, o mais importante, para evitar a mistura do sangue, os casamentos com não judeus foram proibidos.
A história do cristianismo está umbilicalmente ligada à criação do antissemitismo. Em 1938 podia-se ouvir o cardeal de Veneza reafirmando, no púlpito da igreja, em pleno domingo de Páscoa, que os judeus eram “assassinos de Cristo” e, por isso, estavam condenados a vagar pela Terra “envolvidos nas seitas mais obscuras, desde a maçonaria até o bolchevismo”.
A judia italiana Margaritha Sarfatti foi a mais importante das amantes de Mussolini e teve papel decisivo em sua chegada ao poder. Ela escreveu a primeira biografia do Duce
No século XIX, o antissemitismo foi reciclado pelo discurso racial. Segundo tal discurso, os judeus seriam uma raça branca distinta dos europeus, os semitas. E os nazistas associaram a nacionalidade – e os direitos civis decorrentes – ao sangue, que transmite a carga racial. Porém, depois que Mussolini se aproximou de Hitler e passou a adotar leis discriminatórias contra os judeus baseadas na raça, a Igreja se viu diante de questões teológicas.
Para os católicos simpáticos ao fascismo, que buscavam se distinguir dos nazistas, os judeus não eram parte do “povo italiano” por constituírem “outra nação”, mais ligada à ideia de história e cultura. Não eram razões “vulgares”, eles diziam, como o “sangue”. Já o governo fascista fazia malabarismos para conciliar a afirmação da natureza ariana do povo italiano e, ao mesmo tempo, driblar o argumento do sangue. Para a Igreja tratava-se de tema fundamental: a universalidade da salvação da alma. O que fazer com os judeus convertidos?
Frente à cobrança pela crítica a Hitler acompanhada do apoio a Mussolini, vozes oficiais da Igreja usavam as revistas católicas, como La Civiltá Cattolica, para enfatizar a diferença entre os dois regimes. “Hitler busca unificar o povo alemão sob uma nova religião pagã, com o lema da divindade do sangue e do solo. Mussolini faz o oposto, unificando os italianos sob a religião católica.” (citado por David Kertzer, p. 281).
Não que a Igreja Católica tenha sido uma combatente do fascismo, muito pelo contrário. Até hoje, ela é cobrada a assumir responsabilidades e a figura de Pio XI segue polêmica. Fascistas e nazistas ganharam a cumplicidade da Igreja Católica mais pelo anticomunismo do que pelo antissemitismo. Também é preciso reconhecer a diferença entre as decisões do Vaticano e as ações de boa parte do clero. Na casta clerical, além de incontáveis entusiastas do regime, muitos eram abertamente contra os judeus e os ciganos.
Eritreia e Somália (cujo território foi dividido com os britânicos, em 1889) foram conquistadas em grande medida por acordos diplomáticos. Mas a tentativa de ocupação da Abissínia (Etiópia), um dos dois únicos Estados africanos não colonizados, foi interrompida depois da humilhante derrota na Batalha de Adowa, em 1896.
Então, as ambições italianas se voltaram para a Líbia, um reino formalmente ligado ao enfraquecido Império Turco-Otomano. Em 1911, França e Itália assinaram um tratado reconhecendo a Líbia como colônia italiana. Os otomanos reagiram à chegada dos italianos, que só conseguiram se impor em 1914, deixando um rastro de milhares de combatentes italianos, turcos e árabes mortos.
Marechal Graziani, Marquês de Negele, vice-rei da África Oriental Italiana, carniceiro e demônio – os muitos títulos de um homem
Com a chegada dos fascistas, o imperialismo italiano tornou-se ainda mais violento. Em 1930, confrontado pela resistência líbia encabeçada pela etnia Senussi e seu líder Omar Al-Mukhtar, o Grande Conselho Fascista enviou o marechal Rodolfo Graziani para impor a ordem a qualquer preço. Graziani ordenou o deslocamento de 20 mil beduínos para campos de concentração abertos no meio do deserto, onde a fome, as más condições de higiene e a superexploração do trabalho provocaram a morte de aproximadamente quatro mil presos. Ao todo, estima-se em mais de 80 mil líbios, a maioria civis, o número de vítimas os italianos.
Para um governo imperialista e racista, a Abissínia ocupava um lugar especial no imaginário político. Tratava-se de vingar a derrota em Adowa e restaurar o orgulho nacional. Em 1935, Mussolini anunciou com grande pompa a ocupação da Abissínia, ignorando o Tratado de Amizade assinado em 1928 com o rei Haile Selassie, que manobrava diplomaticamente para não ver seu país atacado pelas potências europeias.
Usando como pretexto uma disputa pelo controle de fontes de água próxima à fronteira com a Eritréia, o exército italiano partiu para o ataque no início de outubro e só parou em maio do ano seguinte. Foram empregados 110 mil soldados, 2,3 mil metralhadoras, 230 canhões e 156 tanques. O comando foi entregue ao marechal Emilio de Bono, um dos mentores da Marcha sobre Roma e, em 5 de maio de 1936, Adis Abeba, foi ocupada. O rei Selassie fugiu para Londres, de onde retomou a luta contra a ocupação .
Mussolini anunciou a anexação da Abissínia e a criação da África Oriental Italiana (como ficou conhecida a junção de Eritreia, Somália e Abissínia) com grande pompa, em 9 de maio, e entregou o comando nominal ao rei Vitor Emanuel III, declarando-o imperador.
Num bom exemplo de como a narrativa histórica é construída, aprende-se na escola que o bombardeio de Guernica, na Espanha, pela aviação nazista, foi o ato inaugural do terror bélico que seria utilizado durante a Segunda Guerra Mundial contra civis. Mas os italianos fizeram isso antes, duas vezes: em Adis Abeba e Barcelona.
A primazia coube à Força Aérea italiana, em sua guerra de vingança contra os etíopes. Sob o comando do marechal Pietro Badoglio, os aviões lançaram bombas incendiárias e bombas de gás mostarda (de 280 quilos) sobre Adis Abeba, não apenas para conquistar, mas para aterrorizar a população e fazê-la sofrer. A cidade foi arrasada e seu hospital, reduzido a cinzas. Nessa época, o uso de armas químicas já estava proibido, pelo primeiro tratado internacional assinado após a Primeira Guerra Mundial. Portanto, quando os comandantes fascistas decidiram usá-las, violavam conscientemente as Convenções de Genebra.
Já os países membros da Liga das Nações invocaram o direito à autodeterminação dos povos para condenar a invasão, lançando algumas sanções econômicas pouco eficazes. O único efeito imediato foi a Itália abandonar a organização, criada em 1919 para zelar pela paz mundial.
A ocupação do território etíope não foi menos brutal do que a conquista. Deslocado da Líbia para a Etiópia, no início de 1937, o marechal Graziani sofreu um atentado mal sucedido. Enfurecido, autorizou o saque de Adis Abeba por suas tropas. Entre 19 e 21 de fevereiro a cidade viveu o horror. Estudos recentes estimam em 19 mil as vítimas daqueles dias. Os etíopes guardam como data de luto nacional o Yekatit 12 (19 de fevereiro).
Vítimas do Yekatit 12, em Adis Abeba, um dia gravado a sangue na memória nacional
A ordem era eliminar a elite escolarizada, mentora da resistência popular. Primeiro foram executados os Jovens Etíopes, um grupo financiado pelo rei Selassie para cursar faculdades nos Estados Unidos e Europa e trazer ideias de modernização para o reino. Mas a perseguição se voltou com especial furor contra o clero cristão copta. Os coptas formam uma das mais antigas correntes do cristianismo e são parte fundamental da identidade etíope. Mosteiros foram destruídos e monges, assassinados.
Chamado tanto na Líbia quanto na Etiópia de “carniceiro”, Graziani nunca foi processado pela Comissão de Crimes de Guerra da ONU, apesar de seu nome encabeçar algumas listas de líderes fascistas a serem levados aos tribunais. A justiça para um “povo colonial” sucumbiu aos imperativos de combater o comunismo na Europa.
O acordo de paz assinado pela Itália em 1947 apresentou vários artigos referentes à restauração das soberanias dos territórios subjugados (Líbia, Eritreia, Somalilândia); direitos civis; fronteiras; e devolução de bens saqueados. A Etiópia foi tratada em seção própria, dos Artigos 33 a 38, que especificam a devolução de propriedades, obras de arte e bens culturais e religiosos retirados desde 1935, além de abdicação de qualquer direito de influência sobre o país.
O governo etíope acreditou que não teria dificuldade de levar altos oficias italianos a julgamento devido à abundância de evidências. No entanto, os Aliados primeiro invalidaram a reclamação da Etiópia com todo um debate se os crimes cometidos em 1935 eram parte do escopo temporal da Segunda Guerra e, portanto, se o tribunal militar deveria aceitar o caso. Depois, alegaram ser impossível identificar os responsáveis diretos que haviam emitido as ordens criminais. Enquanto isso, a imprensa italiana cerrava vozes contra a possibilidade de oficiais serem julgados por crime de guerra.
Haile Selassie, rei da Etiópia, denunciou os crimes da Itália, desde 1936, na Liga das Nações
O governo da Etiópia insistiu e o processo foi reapresentado em 1948, dessa vez à Comissão de Crimes de Guerra das Nações Unidas, que aceitou as acusações contra Graziani e mais sete autoridades. Um vasto levantamento mostrou que a invasão italiana provocou, diretamente, mais de 382 mil mortes de civis. Desse total, 30 mil foram mortos no massacre de fevereiro de 1937, outros 35 mil em campos de concentração e 300 mil morreram de fome.
A lista de destruição material inclui duas mil igrejas, quase meio milhão de casas e as criações de animais, base da atividade econômica local. O trabalho de pesquisa e documentação de Richard Pankhurst (citado abaixo), oferece a explicação detalhada de todo esse processo.
Para frustração dos etíopes, surgiram inexplicáveis argumentos jurídicos e processuais impedindo os julgamentos. O governo etíope ainda admitiu negociar, deixando de lado os subordinados para concentrar as acusações nos chefes supremos, Badoglio e Graziani, mas nem assim conseguiram um julgamento.
A falta de reconhecimento dos crimes contra a humanidade praticados pela Itália fascista contra a sociedade etíope foi a primeira grande falha do novo sistema internacional, que se reorganizava sob a batuta dos Estados Unidos e da nascente Organização das Nações Unidas. No fim de tudo, o racismo persistia.
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