BRASIL, CÚMPLICE

 

Demétrio Magnoli

24 de abril de 2023

 

O Brasil tornou-se cúmplice da Rússia. Cúmplice da invasão não provocada da Ucrânia e, ainda pior, dos crimes contra a humanidade cometidos durante a guerra imperial.

No final de fevereiro, a Assembleia Geral da ONU aprovou, por ampla maioria, resolução condenando a violação da soberania ucraniana e exigindo a retirada “imediata e incondicional” das forças russas. O Brasil votou favoravelmente à resolução, no que parecia ser uma correção do curso seguido por repetidas declarações ambíguas do presidente Lula da Silva.

Celso Amorim reuniu-se com Vladimir Putin, em Moscou, logo após a ordem de prisão emitida pelo TPI. O nome disso é solidariedade

Engano. Nas semanas seguintes, em três atos sucessivos, o governo brasileiro alinhou-se à Rússia. Celso Amorim, assessor presidencial especial, visitou Moscou em missão quase secreta, onde foi recebido por Vladimir Putin. A visita, uma inequívoca demonstração de solidariedade, deu-se pouco depois da ordem de prisão emitida contra o presidente russo pelo Tribunal Penal Internacional (TPI).

No ato seguinte, durante sua visita de Estado à China, Lula retomou a linha de suas declarações prévias à resolução da ONU. Mais uma vez, atribuiu responsabilidade compartilhada à Rússia e à Ucrânia pela guerra, recusando-se a distinguir a nação agressora da agredida. Foi além: atribuiu aos EUA e seus aliados europeus a culpa pela deflagração do conflito, que teria sido causado pelo alargamento da OTAN, e pela sua continuidade, que resultaria do auxílio militar ocidental à Ucrânia.

O ato conclusivo deu-se com a visita do chanceler russo Sergei Lavrov ao Brasil. Lavrov reuniu-se com o ministro do Exterior Mauro Vieira e foi recebido por Lula. Em Brasília, o visitante russo declarou que Rússia e Brasil adotam “posição similar” sobre a “gênese” da guerra na Ucrânia – e não foi desmentido por Vieira. Mais: no seu pronunciamento, o ministro brasileiro clamou por negociações baseadas nas “preocupações securitárias” das duas partes, abstendo-se de mencionar a soberania territorial ucraniana.

 

Ignorando a Carta da ONU

A linha geral dos pronunciamentos do governo brasileiro ignora a Carta da ONU e a própria Constituição brasileira, que acolhe explicitamente os princípios da sobrania e integridade territorial das nações. Numa prova radical de alinhamento com Moscou, Lula chegou a sugerir que a cessão definitiva da Crimeia à Rússia funcionaria como ponto de partida para futuras e hipotéticas negociações de paz.

Num tratado firmado em 1994, Moscou reconheceu as fronteiras da Ucrânia independente, em troca da entrega à Rússia das armas nucleares herdadas pela Ucrânia da antiga URSS. Putin jogou o tratado no lixo. A Crimeia foi ocupada e ilegalmente anexada pela Rússia em 2014. No ano passado, em meio à invasão, o governo russo decretou a anexação das províncias de Luhansk, Donetsk, Zaporizhia e Kherson – mesmo sem controle militar integral delas.

Fonte: Al Jazeera

Nenhum Estado tem a prerrogativa de sugerir a cessão de territórios estrangeiros a uma potência invasora. De fato, nem a China, aliada da Rússia, chegou a tal ponto: no seu vago “plano de paz” rejeitado pela Ucrânia, Xi Jinping propõe apenas um cessar-fogo (sem retirada das forças russas) como condição para negociações. Lula, porém, ultrapassou qualquer barreira.

A Carta da ONU reconhece o direito à “autodefesa coletiva” – ou seja, o direito dos Estados de prestar auxílio militar a uma nação vítima de invasão não provocada. A “autodefesa coletiva” não faz dos Estados que transferem ajuda bélica partes do conflito. O governo brasileiro ignora também isso, ao insistir na crítica ao auxílio militar à Ucrânia. Aparentemente, a “paz” de Lula resultaria da rendição ucraniana…

Os EUA e a União Europeia (UE) reagiram com um misto de surpresa, desolação e indignação, especialmente diante da acusação de que contribuem para a continuidade da guerra.  John Kirby, porta-voz do Conselho de Segurança Nacional da Casa Branca, afirmou que o Brasil repete propaganda russa. Peter Stano, porta-voz para Assuntos Externos da UE, insistiu no óbvio: somente a Rússia é responsável pela guerra.

Sergei Lavrov com Mauro Vieira, em Brasília, abril de 2023. Lavrov disse que o Brasil concorda com a Rússia sobre a gênese do conflito na Ucrânia. Não foi desmentido

As reações provocaram um recuo parcial, puramente retórico, do governo brasileiro. Sem retirar nenhuma de suas declarações pró-russas, Lula repetiu o trecho mais fraco e óbvio da resolução da ONU: a condenação da violação de soberania ucraniana. Contudo, nem mesmo mencionou a parte substancial da resolução, isto é, a exigência de retirada das forças russas.

Toda a sequência coloca um ponto de interrogação sobre a sinceridade da campanha de Lula para participar de uma eventual mediação de paz. Como a Ucrânia pode aceitar um mediador que reproduz a propaganda russa? Como mediar hipotéticas negociações sugerindo de antemão a cessão de territórios à potência invasora? Aparentemente, Lula apenas sequestra a palavra paz para conferir legitimidade às falsas narrativas e alegações do Kremlin.

 

Ignorando crimes contra a humanidade

A sentença de 25 anos de prisão decidida por um tribunal amestrado russo contra o defensor de direitos humanos Vladimir Kara-Murza, pelo “crime” de criticar a guerra imperial na Ucrânia, coincidiu com a visita de Lavrov ao Brasil. Não se ouviu protesto algum do governo brasileiro.

O assessor especial Amorim estabeleceu, já nos mandatos anteriores de Lula, a tradição de rejeitar qualquer crítica a violações de direitos humanos por ditadores “amigos”. Seria, segundo explicou, várias vezes, violação da “soberania” de outros países.

Sob esse curioso paradigma, o governo do Brasil silencia diante das arbitrariedades cometidas em Cuba, na Venezuela, na Nicarágua e, agora, na Rússia. Ironicamente, porém, o governo brasileiro não se furta a criticar os EUA ou os países europeus pelo auxílio militar à Ucrânia ou pelas sanções aplicadas à Rússia.

Ao que parece, a invocação seletiva da “soberania” impede o governo brasileiro de dar atenção à ordem de prisão do TPI. Trata-se, no caso, de crime contra a humanidade: o sequestro e deportação em massa de crianças ucranianas para a Rússia. Putin e sua comissária para os Direitos das Crianças (isso mesmo!), Maria Lvova-Belova, são os alvos da ordem do tribunal de Haia.

De acordo com a Ucrânia, são no mínimo 19,5 mil crianças. Elas foram sequestradas em áreas ocupadas pela Rússia e transferidas para escolas e famílias adotivas russas. Até o momento, apenas 328 delas foram recuperadas, em geral por meio de ousadas incursões de seus familiares.

Putin com Lvova-Belova, sequestradores de crianças ucranianas

A ucraniana Natalia Zhornyh, por exemplo, conseguiu recuperar seu filho Artem, de 15 anos, depois de viajar centenas de quilômetros e atravessar as fronteiras da Polônia, da Belarus, da Rússia e da província ocupada de Luhansk. Mas, na imensa maioria dos casos, mães e pais nem mesmo sabem para onde foram levados seus filhos.

Putin não faz segredo do empreendimento criminoso, que é celebrado pela mídia oficial e oficiosa russa. No final de maio de 2022, assinou decreto destinado a acelerar a naturalização de crianças ucranianas deportadas à força. Os menores, de acordo com o decreto, podem ser adotados por famílias russas ou até por diretores de orfanatos ou agências de serviço social. O fundamento ideológico do crime encontra-se na noção de que a Rússia tem o dever de “proteger” os ucranianos russófonos “oprimidos” pelo “regime nazista” da Ucrânia.

O chefe do Kremlin segue precedentes. Durante a Segunda Guerra Mundial, as forças nazistas sequestraram crianças polonesas para “germanizá-las”. As deportações de crianças ucranianas destinam-se a restaurar o Volk russo. O governo brasileiro não se interessa por nada disso. No fundo, Amorim visitou Putin para veicular a mensagem de que o TPI deve ser solenemente ignorado. “Soberania”.

 

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