CUBA: CRÍTICA À RAZÃO DESPÓTICA

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O Capitólio, em Havana, sede do poder legislativo cubano

 

Armando Chaguaceda

(Cientista político e historiador cubano)

 

“A perda da liberdade, a tirania, os maus-tratos e a fome teriam sido mais fáceis de
suportar sem a obrigação de chamá-los de liberdade, justiça ou bem do povo”.
Aleksander Wat, Meu Século

 

Quando os críticos ao regime cubano – entendido tanto em sua dimensão conceitual, alusivo a qualquer ordem política institucional, como em seu uso coloquial, como sinônimo de poder repressivo – expõem publicamente seus julgamentos sobre os saldos negativos desse mesmo regime, em termos de supressão de liberdades e atraso socioeconômico, recebem dois tipos de resposta.

A primeira, claramente política e evocadora do legado stalinista, costuma culpá-los por suas ligações ideológicas e éticas com as causas mais obscuras: mercenários ambiciosos, agentes do imperialismo, fascistas, etc. Trata-se de epítetos facilmente refutáveis, quando são demonstradas tanto a diversidade de identidades, trajetórias e ideologias dos oponentes do castrismo quanto a natureza reacionária, economicamente exploradora, culturalmente conservadora, socialmente exclusiva e politicamente autoritária desse regime.

A segunda posição, aparentemente neutra e sofisticada, desqualifica os críticos a partir da superioridade intelectual, apontando como exagero (“não há tanta repressão”) ou dogmatismo (“repetem o léxico da Guerra Fria”) os questionamentos sobre como o regime e suas políticas são feitas. Amparadas por uma configuração ideológica/identitária sobre-representada na esquerda hegemônica dentro da academia e intelectualidade latino-americanas, essas respostas são refratárias à verdade. Não mudam diante da crise multidimensional marcada por fracasso econômico, protestos sociais, repressão estatal e debandada migratória que sacode Cuba nos últimos dois anos.

É em resposta às afinidades despóticas da intelectualidade filo-tirânica – velada em suas intenções mas, independentemente de sua intencionalidade, prejudicial em seus efeitos – que este texto foi escrito.

 

Cuba, mito revolucionário e autocracia

Reconheço, desde logo, que não escrevo de forma imparcial. Cuba – sua crise, seu regime e destino – foi circunstância vital para a minha própria existência, como também foi para outros colegas. Entretanto, a clara escolha de um lado não pode se confundir com  paroquialismo. Compreendo 0 castrismo como uma forma particular de deriva totalitária – como expressão do Mal radical e do controle total – das grandes revoluções populares do século XX. O regime instituído por Fidel Castro foi o único experimento triunfante neste hemisfério, mas não a única forma que adota a tirania contemporânea no Ocidente.

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Caricatura de Fidel Castro em seu traje militar habitual em um palco com microfones, exortando as massas

É desse ponto que assumo, como um dado histórico, a simultaneidade de histórias e memórias de outros povos latino-americanos, expostos a formas opressivas e criminosas que negam a condição humana. Desde a repressão sistemática implementada pelas Ditaduras de Segurança Nacional até os crimes necropolíticos do narcotráfico que assolam amplas áreas da região latino-americana.

Diante dessa realidade, o intelectual pode reconhecer as distinções analíticas das diversas expressões do autoritarismo político. Mas isso não se deveria traduzir, eticamente, em algo que não seja o repúdio contra as mais diversas formas de opressão politicamente motivadas. Seja qual for a causa (normativa ou pragmática) que as motive e a natureza (social e ideológica) de suas vítimas.

Para o caso cubano, nos referimos a um regime pós-revolucionário de matriz leninista que mostra, por 60 anos, habilidade em administrar o mito revolucionário, sustentar uma eficaz repressão interna e ampliar a sua influência internacional. O que faz dele um caso histórico que se idealiza, um modelo estatal que se replica e um agente geopolítico influente a nível regional e global. Uma trindade autocrática que se autonomiza à medida que se estende no tempo, bem como seu alcance geográfico e sua penetração em sociedades e grupos específicos, como políticos, ativistas e intelectuais progressistas latino-americanos.

Vale a pena ilustrar, com exemplos pontuais, como esse legado político intelectual autoritário ainda permeia a discussão sobre a realidade cubana em âmbito regional.

 

Cuba é o Vaticano das esquerdas

No grupo dos três regimes plenamente autocráticos na América Latina (Cuba, Nicarágua e Venezuela), a hierarquia simbólica e política se faz notar pelo tratamento diferenciado quanto à crítica.

As esquerdas democráticas latino-americanas e espanholas denunciam o nicaraguense Daniel Ortega por sua repressão contra antigos camaradas do sindicalismo dissidente. Também o fazem contra o venezuelano Nicolás Maduro, com menos veemência, fazendo uso dos relatórios do Alto Comissariado de Direitos Humanos das Nações Unidas. Já ao presidente de Cuba, Miguel Díaz-Canel, se há crítica, surge esporadicamente por meio de reprimendas genéricas que ajudam a ocultar a natureza e responsabilidade repressiva do seu regime.

Metaforicamente falando, a Nicarágua parece uma igrejinha distante onde há um sacerdote que comete excessos e que todos reprovam. A Venezuela lembra uma arquidiocese de média importância, cujo funcionamento é digno de certas críticas. Cuba… é o Vaticano, cuja santidade e dogmas são inquestionáveis.

Nos mais diversos espaços políticos e acadêmicos da esquerda regional, a influência do regime cubano foi presente de modo palpável, porém desigual, sendo possível identificar dois aspectos. Primeiro, é direta a relação entre autocratização nacional, profundidade e alcance da influência do regime cubano. No caso venezuelano, a influência cubana foi determinante. Segundo, a aposta geopolítica de Havana parece ir além de construir alianças conjunturais, desembocando em alianças autoritárias de caráter muito mais estrutural, com vocação de permanência, para assegurar a própria sobrevivência do regime.

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À esquerda o presidente cubano Miguel Díaz-Canel e seu grande aliado, Nicolás Maduro, presidente da Venezuela

 

Intelectualidade militante e pró-ditaduras

Essa atitude se verifica em fóruns como a Conferência Permanente de Partidos Políticos da América Latina e Caribe (COPPPAL), que reúne uma maioria de partidos da esquerda democrática com seus pares autoritários: o Partido Comunista Cubano (PCC), o nicaraguense Frente Sandinista de Libertação Nacional (FSLN) e o Partido Socialista Unificado da Venezuela (PSUV). Em sua 39º Reunião Plenária,  ao abordar o caso cubano, a entidade se limitou a pedir, em uma recente declaração focada no discurso da soberania nacional, a não ingerência externa e  o fim ao embargo imposto pelos EUA. Tal declaração nada teria de censurável se fosse acompanhada (como corresponderia a formações da esquerda democrática) por uma reclamação simétrica no que diz respeito à soberania popular violada pela autocracia cubana.

Por sua parte, o chamado Grupo de Puebla denunciou o autoritarismo da direita, enquanto manteve seu apoio aos governos de Ortega e Maduro, respaldado no discurso da soberania nacional. A expressão genérica de solidariedade para com o povo cubano – reconhecendo o mal-estar existente perante as mobilizações históricas do 11J (11 de julho de 2022) – se fez, porém, deixando invisível a repressão desatada pelo regime de Havana. A repressão atingiu, nesse início de 2023, níveis recordes em escala regional, com mais de mil presos e processados por razões políticas.

Na mesma direção, o anúncio fundacional do Observatório da Internacional Progressista, que cobiça as novíssimas esquerdas (fundamentalmente ocidentais) não mostrou preocupação alguma pela desaparição da democracia na Nicarágua ou na Venezuela. E muito menos pela sua inexistência em Cuba.

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Manifestantes do “11J” em um bairro de Havana

Por sua parte, na academia vemos convocatórias como a do Centro Maria Sibylla Merian de Estudos Avançados em Humanidades e Ciências Sociais (CALAS) para estudar o “Autoritarismo na Democracia. Perspectivas transregionais e históricas sobre espaços em disputa” que não mencionam os expedientes mais estruturais de tendências autocráticas na região relacionados à esquerda iliberal.

Consultados pelo autor, participantes no Foro alegaram que se tratava de “processos autoritários em gestação dentro das democracias existentes”, o que justificaria a exclusão dos regimes de Caracas, Manágua e Havana. No entanto, no programa final foram incluídas referências (apresentações) à Nicarágua e à Venezuela, mas não a Cuba, demonstrando uma decisão discricionária, não justificada em critérios analíticos, sobre a suposta excepcionalidade do caso cubano.

Se observarmos eventos, documentos e pronunciamentos públicos do Conselho Latino-Americano de Ciências Sociais (CLACSO), a crise cubana – incluindo os protestos populares de 11 e 12 de julho de 2021, assim como sua repressão – brilha pela ausência, gerando repúdio dentro da comunidade acadêmica regional. E quando se pronuncia, em consonância com a narrativa oficial de Havana, é para denunciar o “bloqueio imperialista” e celebrar os vínculos com autoridades políticas e acadêmicas da ilha. Os sujeitos, discursos, conflitos e processos que confrontam essa visão são “escondidos” pela entidade que agrega a maior quantidade de centros de investigação e ensino de Ciências Sociais e Humanidades na região.

Como recentemente lembrou Timothy Snyder, em sua crítica à postura de Habermas em relação à invasão russa na Ucrânia, “uma vez que compreendemos o poder do discurso, compreendemos o poder das autoridades morais respeitadas que vigiam seus limites, manipulam a memória histórica e excluem as vozes dos vulneráveis”. As atitudes vigilantes do dogma, manipuladoras da realidade e excludentes da solidariedade para com os oprimidos do autoritarismo cubano seguem vigentes em um setor da academia latino-americana, gerando impacto negativo em múltiplos níveis.

Primeiro, enfraquece as convicções democráticas da cidadania, ao introduzir um relativismo partidário que pode se reproduzir graças à polarização, em vários níveis e polos ideológicos, o que fortalece os atavismos autoritários de cada sociedade. Segundo, fortalece os processos regionais de “autocratização”: muitos que no campo da esquerda, na Nicarágua e na Venezuela, aplaudiram ou calaram sobre os abusos do regime cubano acabaram sendo perseguidos quando o autoritarismo se impôs em seus países. Em terceiro lugar, ao contribuir para a perda da racionalidade no debate político, bloqueia as vias de diálogo com outras forças políticas e sociais, destruindo o campo comum que a democracia requer para consolidar-se.

Grupo de Puebla

Foto oficial do Grupo de Puebla, em encontro realizado em 2021. Entre os principais integrantes: José Luis Zapatero, ex-premiê da Espanha; e Dilma Rousseff, ex-presidente do Brasil

 

Uma mudança em construção

A incapacidade em reconhecer o caráter autoritário do regime que impera em Cuba desde 1959 fez com que sua influência sobre distintos movimentos progressistas não fosse bloqueada pela esquerda latino-americana. A preguiça mental, as cumplicidades partidárias ou a nostalgia de velhas militâncias não justificam a negação de parte importante da esquerda regional perante a violação sistemática de direitos humanos que acontece na Ilha. Abordagens críticas feitas por intelectuais e ativistas de esquerda, casos de Cláudia Hilb, Carlos Liscano e Rafael Uzcátegui, ainda são recebidas com reserva e negações dentro do campo progressista.

Padrões duplos parecem ser mantidos para não incomodar a própria tribo, evitando exposição a críticas ou, in extremis, a acusação de traição. Eles não se limitam às forças políticas, pois se estendem a boa parte da academia. Chega ao ponto em que o giro decolonial e a crítica ao conhecimento eurocêntrico têm sido empregados para justificar ou negar a existência de processos autocráticos desenvolvidos por um governo que diz representar as “causas progressistas”.

É imperativo construir a crítica a essa razão filotirânica (Mark Lilla dixit) por meio de uma resistência dual: às saudosistas obsessões ideológicas e afetivas e à influência política presente do (tardo) castrismo. São custos os silêncios, as meias-verdades escamoteadas e os costumes esbanjados pelas esquerdas da região aos seus pares críticos na Ilha e, em geral, a toda a população. Impactam milhares de existências concretas escoradas na prisão ou no exílio. Comprometem o futuro da nação cubana, deixando unicamente nas mãos das direitas as bandeiras da solidariedade. Complicam, além disso, a renovação futura das causas e métodos que essas mesmas esquerdas dizem defender.

 

SAIBA MAIS 

  • Armando Chaguaceda, “El Estado cubano y la academia latinoamericanista” IN: Revista Iberoamericana, Universidad de Pittsburgh, Vol LXXXVI, N. 270, Enero-marzo 2020, Pg. 343-358

 

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