ORTEGA CASSA CIDADANIA DE OPOSITORES

 

Demétrio Magnoli

27 de fevereiro de 2023

 

Os sandinistas Hugo Torres e Dora María Téllez em 1978, após o assalto ao Palácio Nacional

Hugo Torres não teve sua cidadania cassada pelo ditador nicaraguense Daniel Ortega. É que, antes disso, morreu na prisão, em fevereiro de 2022, aos 73 anos. Mas outro antigo sandinista, Sergio Ramírez, o mais destacado escritor da Nicarágua e vice-presidente entre 1985 e 1990, já não tem cidadania do país em que nasceu. Nem ele, nem 93 outros ex-presos políticos, que integram um grupo de mais de 200 deportados pelo regime nas últimas semanas.

Entre as deportadas está Dora María Téllez, célebre ex-guerrilheira sandinista que, ao lado de Hugo Torres, participou do assalto ao Palácio Nacional, em 1978, uma operação decisiva na Revolução Nicaraguense. Ela passou 605 dias no centro carcerário de El Chipote, com dezenas de opositores à ditadura. Sua nacionalidade também foi retirada por uma Assembleia Nacional controlada por Ortega.

 

“Um equivalente à Coreia do Norte”

A América Latina é, entre os países em desenvolvimento, a região com os melhores indicadores de democracia. Contudo, ao mesmo tempo, exibe um triste recorde: no mundo inteiro, é a região que registrou maior queda nessa pontuação num horizonte de mais longo prazo. Entre 2008 e 2022, perdeu quase dez pontos percentuais, quase o dobro da segunda colocada (Oriente Médio e África do Norte).

Atualmente, a América Latina abriga apenas três democracias plenas (Chile, Uruguai e Costa Rica). Os países mais populosos da América do Sul (Brasil, Colômbia e Argentina) são classificados como democracias precárias, enquanto o México retrocedeu à condição de regime híbrido, classificação que compartilha com Peru, Equador e Paraguai, entre outros. Entretanto, apenas três países devem ser qualificados como regimes autoritários: a Cuba castrista, a Venezuela do chavismo fracassado e a Nicarágua de Ortega.

Fonte: Economist Intelligence Unit

O declínio das liberdades públicas e civis na Nicarágua acentuou-se desde 2016 e tornou-se catastrófico a partir de 2018, com a selvagem repressão às manifestações populares de protesto. Ortega concentrou todo o poder nele mesmo, em parceria com sua esposa, Rosario Murillo, fraudando abertamente as eleições, subordinando o Judiciário e destruindo a liberdade de imprensa. Os opositores, muitos deles antigos companheiros sandinistas, foram enviados à prisão.

Mesmo assim, a tática de supressão da cidadania e deportação assinala um mergulho mais profundo na lagoa da barbárie. No seu artigo 9º, a Declaração Universal dos Direitos Humanos diz que “ninguém pode ser arbitrariamente preso, detido ou exilado” e, no artigo 15º, depois de afirmar que “todo o indivíduo tem direito a ter uma nacionalidade”, diz que “ninguém pode ser arbitrariamente privado de sua nacionalidade”.

Ortega viola diretamente a Declaração Universal. Mas, como registra Sergio Ramírez, embrenha-se no absurdo jurídico: “A ideia de que possam te tirar o país é absurda, não tem nenhum sentido. Nenhum sentido legal, porque vai contra a Constituição da Nicarágua. Não existe nem mesmo a pena de desterro. São penas bárbaras que foram eliminadas desde o Iluminismo.”

A missão bárbara do ditador é, além de tudo, impossível no plano existencial. Ramírez: “E, ainda, a ideia de que alguém possa te arrancar algo que vive dentro de você, que é o teu país…”.

Ortega, à esquerda, com seu aliado, o ditador da Venezuela, Nicolás Maduro

O tirano tenta se livrar dos presos políticos, cedendo às pressões internacionais, mas para isso recorre a deportá-los e declará-los apátridas, o que horroriza o mundo e o isola ainda mais. Aquilo que parece um ato de força extrema representa, de fato, como assinala Ramírez, um “ato de debilidade”.

Juan Pappier, da Human Rights Watch, diagnosticou corretamente a implicação das táticas extremas de Ortega: “O país encontra-se à beira de se tornar um equivalente latino-americano da Coreia do Norte”. O presidente de esquerda do Chile, Gabriel Boric, não hesitou em condenar duramente o regime nicaraguense. Aguarda-se, ainda, uma palavra do brasileiro Lula, geralmente tão loquaz, que segue em obsequioso silêncio.

 

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