REINO UNIDO DESVIA REFUGIADOS PARA RUANDA

 

Elaine Senise Barbosa

30 de maio de 2022

 

Mohammed (nome fictício) é um jovem refugiado sudanês que fugiu de seu país em 2019, após um brutal ataque à sua aldeia do qual poucos saíram vivos. Como tantos outros africanos motivados por conflitos civis em seus países de origem, ele decidiu partir para o Reino Unido onde, diziam, poderia recomeçar a vida e seria tratado como ser humano.

Sua aventura durou mais de três anos, antes que finalmente alcançasse o seu objetivo. Primeiro Mohammed caminhou de sua aldeia destruída até a Líbia, atualmente o país com a rota mais procurada para cruzar o Mediterrâneo e atingir o sul da Europa. Lá, como tantos outros migrantes vindos principalmente do Sudão e da Eritréia, acabou nas mãos de traficantes de pessoas e ficou retido por um ano, sujeito a trabalho em condição análoga à escravidão. A viagem do sudanês só prosseguiu porque ele conseguiu fugir.

Em 2020, alcançou a Europa ao chegar na ilha de Malta. De lá, partiu para a Itália e depois para a França, até ser levado para o campo de refugiados de Calais, à beira do Canal da Mancha, e ficar retido por oito meses. Durante esse tempo, dormiu nas ruas e sofreu bastante com o frio. Sem dinheiro para pagar um atravessador clandestino, ele e mais um pequeno grupo de sudaneses improvisaram caiaques para cruzar o Canal da Mancha e atingir o porto de Dover, em solo inglês. Foram várias tentativas, entre naufrágios e afogamentos de companheiros, até que Mohammed chegasse ao país onde esperava ser recebido com humanidade para, finalmente, poder recomeçar deixando para trás os traumas que carregava.

O que o desafortunado Mohammed não poderia imaginar é que tomaria parte do primeiro grupo de pessoas que, tendo entrado ilegalmente na ilha britânica, será enviado para um campo de trânsito de refugiados e imigrantes em Ruanda, de acordo com a nova política imigratória implantada pelo governo do primeiro-ministro Boris Johnson, do Partido Conservador. A história de Mohammed foi contada em uma reportagem do jornal The Guardian.

 

De volta ao passado

Ao desembarcar em Dover, Mohammed foi recebido pelas autoridades imigratórias, fez um teste de Covid e preencheu papéis para ser reconhecido como refugiado e poder ficar no país. Dias depois, foi avisado de que será enviado para Ruanda, com outros 49 indivíduos que também entraram ilegalmente no Reino Unido. Esses 50 solicitantes de refúgio deverão aguardar o processamento de seus pedidos no país africano, a praticamente dez mil quilômetros de distância.

O governo britânico deu duas semanas para os selecionados se manifestarem, caso tenham razões fortes o suficiente pelas quais não devam retornar à África. Aparentemente, a única preocupação do Ministério do Interior em relação a essa política diz respeito aos refugiados atingidos por políticas homofóbicas, uma vez que em Ruanda prevalece a discriminação e leis homofóbicas vigoravam há poucos anos, como na maioria dos países africanos.

Não é o caso de Mohammed, mas mesmo assim ele decidiu preencher o  formulário de contestação explicando seus traumas e como a sua saúde, muito debilitada pelo tempo em que esteve na Líbia, está piorando diante da possibilidade de retorno. O jovem sudanês não consegue entender como a realidade pode ser tão distinta de tudo o que ele sonhou.  

“Estou chocado que o Home Office (Ministério do Interior) não esteja me tratando como um ser humano. Não consigo dormir desde que cheguei aqui. Meu trauma está piorando e tenho tido mais flashbacks sobre o que aconteceu comigo no Sudão e na Líbia desde que cheguei ao Reino Unido. Foi muito difícil para mim escapar da África e agora o governo do Reino Unido quer me mandar de volta para lá.”

 

Direito humanitário é coisa de “esquerdista”?

Os sucessivos governos do Partido Conservador têm defendido que é preciso colocar um freio na entrada de imigrantes ilegais no país, juntando no mesmo balaio refugiados e imigrantes econômicos. O discurso de tons xenófobos das atuais lideranças, começando por Boris Johnson, tenta justificar a necessidade de medidas duras para lidar com o problema. Dizem que os britânicos, além de estimularem a crescente estrutura de traficantes de pessoas ao buscarem soluções legais para aqueles que entraram no país burlando as regras, ainda financiam, via impostos, a alocação dos solicitantes de asilo em pequenos hotéis pelo país enquanto aguardam o processamento de seus pedidos.

O Novo Plano de Imigração, aprovado no Parlamento por 70 votos a favor e apenas 24 contra, vai além no quesito “como desestimular a vinda de imigrantes para o Reino Unido”, ao admitir pagar para que outros países recebam essas pessoas. O direito a refúgio político faz parte do Direito Humanitário internacional. Existem definições e regras claras sobre quem pode ser classificado como refugiado e como deve ser acolhido pelo país que aceita conceder asilo e o recebe. A ideia de terceirizar o problema não faz parte das regras.

CAPADover

Centro de processamento de imigrantes em Calais (França)

 

O que o governo do Reino Unido está fazendo é mudar a lei de imigração em alguns pontos, tornando-a ainda mais dura, sobretudo para os que pisaram ilegalmente em solo britânico. Como? Enviando-os para milhares de quilômetros de distância do território britânico, para campos de trânsito, ou seja, locais provisórios onde deverão aguardar o processamento de seus pedidos – o que tem demorado períodos cada vez mais longos.

O plano sofre duras críticas da ONU, da Comissão Europeia e de grupos de direitos humanos. Todos apontam o descumprimento das leis internacionais de refúgio e a falta de garantias de proteção aos direitos humanos dos solicitantes, que incluem crianças e mulheres, nesses campos off-shore.

Boris Johnson, o mesmo que encaminhou o xenófobo Brexit para isolar o Reino Unido e barrar a livre entrada de cidadãos europeus, disse que está pronto para enfrentar a batalha jurídica contra “advogados esquerdistas” e ONGs que atuam sistematicamente para “frustrar a vontade do povo e do Parlamento”.  Trata-se do mesmo chefe de governo que acaba de ser condenado por fazer festa durante a pandemia em pleno local de trabalho. Parece ser um traço comum a governantes populistas criar inimigos “esquerdistas” para distrair a população com “inimigos do povo”.

Acontece que as críticas estão vindo até mesmo de dentro do Partido Conservador, de vozes como as da antiga primeira-ministra Teresa May, que não pode ser acusada de simpatia pelos imigrantes, e do o arcebispo de Canterbury, uma das figuras centrais da Igreja Anglicana. Para eles, a medida é “desumana, eticamente questionável e de eficácia duvidosa”. Além de implicar em custos elevadíssimos que também sairão do bolso dos contribuintes a curto e médio prazo.

 

Pagando para não receber 

A responsável pela implantação da política de “terceirizar” imigrantes que entraram ilegalmente no Reino Unido é a ministra do Interior, Priti Patel, que há três anos se empenha muito eficazmente em fazer do Reino Unido um país mais branco.

PritiPatel e PaulKagame

Priti Patel e Paul Kagame, a ministra do Homme Office (Ministério do Interior) no Reino Unido e o presidente de Ruanda.  

Uma provável inspiração é a Austrália, que há anos faz exatamente isso, pagando aos governos das ilhas de Naurus e Manus (essa pertencente à Papua-Nova Guiné) para que recebam esses imigrantes indesejados do Sudeste Asiático, sobretudo islâmicos. Nelas, formaram-se campos de refugiados que são verdadeiras prisões off-shore, como sabem os australianos. O que os olhos não vêm o coração não sente, diz o ditado.

Patel esteve em Ruanda no início de abril, onde se encontrou com o presidente Paul Kagame para finalizar uma “parceria de migração e desenvolvimento econômico”. A parceria renderá 120 milhões de libras ao governo de Ruanda, para começar.  Proposta semelhante foi recusada pelos governos da Albânia e Gana.

No anúncio do plano, o governo britânico explicou que Ruanda é “uma das economias com crescimento mais rápido na África e que é reconhecida globalmente por seu histórico de acolhimento e integração de migrantes”. Ruanda também é lembrada pelo genocídio de 1994, esqueceram de dizer. Contudo, um relatório da Human Rights Watch de 2020, afirma que os presos em Ruanda sofrem com detenção arbitrária, maus-tratos e tortura em instalações oficiais e não oficiais.

O governo não explicou se esses campos de refugiados e imigrantes estarão sob supervisão do Reino Unido, ou como serão asseguradas as condições de bem estar daqueles enviados para lá. O ACNUR, órgão da ONU responsável pelo tema, emitiu a seguinte declaração: “O ACNUR não apoia a externalização das obrigações de asilo dos Estados. Isso inclui medidas tomadas pelos Estados para transferir requerentes de asilo e refugiados para outros países, com salvaguardas insuficientes para proteger seus direitos, ou quando isso leva à transferência, no lugar do compartilhamento, de responsabilidades para proteger os refugiados”, informou reportagem do The Guardian.

 

                        

Parceiros

Receba informativos por e-mail