REFUGIADOS DA SÍRIA, RETORNO INCERTO

 

Álvaro Anis Amyuni

(Mestrando em Relações Internacionais e pesquisador do site 1948)
30 de agosto de 2021

 

A guerra civil na Síria completou dez anos em março de 2021. Nesse período, produziu a cifra de 5,6 milhões de refugiados, segundo dados do ACNUR. Sem contar os 6,7 milhões de deslocados internos e desabrigados, também forçados a abandonarem suas moradias pela destruição da infraestrutura, por atos de limpeza étnica e pela difusão da miséria, entre outras mazelas típicas de um conflito na escala vista na Síria. Mais de 12 milhões de pessoas tiveram suas vidas completamente desorganizadas. Nem falamos de mortos. 

Os refugiados encontram-se espalhados ao redor do mundo, mas concentram-se sobretudo nos vizinhos Síria, Líbano, Turquia, Iraque e Jordânia. Os países da Europa ficam bem atrás, segundo dados de 2020 e 2021, que mostram um milhão de refugiados ou solicitantes de asilo batendo às portas dos órgãos responsáveis pela entrada regular. Dois países, a Alemanha e a Suécia, abrigam 70% de todos os refugiados sírios na Europa.

países receptores de refugiados Sírios

Fonte: BBC Brasil/Eurostat/ACNUR

 

Vencedor sobre escombros 

Com a retomada das áreas controladas por rebeldes e pelo Estado Islâmico, o ditador sírio Bashar Assad já pode se declarar vencedor, embora a paz ainda não tenha sido plenamente restabelecida. Apresenta-se agora o problema do retorno das milhões de pessoas que foram obrigadas a partir em decorrência do conflito. Mas está na hora dos refugiados retornarem à Síria? Para o governo sírio, a resposta é óbvia: sim. Antes da guerra, o país tinha uma população de 22 milhões de pessoas, reduzida hoje a menos de 50% desse número. O país está devastado. Para governar, Assad precisa reconstituí-lo e, para isso, precisa de gente.

Em novembro do ano passado, Assad tentou promover uma cúpula internacional para debater o retorno dos refugiados à Síria. Com o apoio do líder russo Vladimir Putin, seu maior aliado durante a guerra, o ditador sírio conclamou os governos dos principais países receptores dos refugiados para a reunião, destinada a traçar estratégias para promover o retorno. No entanto, o boicote foi generalizado: apenas o Líbano, país que abriga o segundo maior contingente de refugiados do vizinho, além da Rússia e da própria Síria, participaram do evento, que teve a ONU como observadora. 

Assad aproveitou a oportunidade para negar a crise de refugiados, acusando o Ocidente de fabricá-la. O governo sírio, segundo ele, está disposto a receber “qualquer refugiado que deseje regressar e contribuir para a construção da sua pátria” – e isso inclui aceitar integrar o exército e participar das últimas frentes de batalha. Para o ditador, o refugiado não é um cidadão, mas um súdito obrigado a servir à pátria, sob a pena de ser considerado oposicionista. Nesse caso, o risco é somar-se aos quase 160 mil mortos por responsabilidade direta do governo Assad, em um universo de 387 mil mortes ao longo de toda a guerra.

 

Quem quer voltar?

De 2016 até maio de 2021, segundo o ACNUR, apenas 282 mil refugiados regressaram voluntariamente. O baixo número indica falta de estímulo para o repatriamento. Sondagens feitas pela agência da ONU confirmam que a imensa maioria dos refugiados e solicitantes de asilo nos países do entorno da Síria e na Europa não têm intenção de retornar em futuro próximo. 

mortes guerra da síria

Fonte: BBC Brasil/Centro de Documentação de Violações

Segundo a 6ª Pesquisa Regional Sobre as Percepções e Intenções dos Refugiados Sírios Sobre Retorno à Síria, 90% dos refugiados que vivem no Líbano, no Iraque, na Jordânia e no Egito não pretendem retornar à Síria nos próximos 12 meses, e apenas 2,4% possuem planos de retorno no próximo ano. Quando perguntados se têm esperanças de voltar a morar na Síria algum dia, a tendência se inverte, com 70% afirmando que desejam realizar esse sonho algum dia. 

Na Europa, a tendência é bem parecida. Cerca de 66% dos refugiados residindo na Alemanha, na França, Holanda e Suécia não pretendem retornar para a Síria a não ser que a situação se estabilize no futuro próximo, segundo uma compilação de pesquisas realizada pelo Escritório Europeu de Suporte ao Asilo (EASO). Outra pesquisa semelhante na Holanda revelou que 99,5% pretendem ficar no país pelos próximos dois anos. 

Os principais motivos apontados pelos próprios sírios para não retornar neste momento são: 1) a falta de oportunidade de trabalho e da possibilidade de manter boas condições de vida devido à devastação econômica; 2) a falta de segurança diante do fogo cruzado persistente em determinadas regiões; 3) a falta de moradia e preocupação com o direito à propriedade; 4) evitar o alistamento ao exército; 5) serviços básicos inadequados devido à fragilidade do Estado. 

Na ponta oposta, as razões para retornar incluem a percepção de que a situação da segurança no país melhorou a partir dos avanços do governo contra os rebeldes. Em segundo lugar, aprecem razões variadas. Apenas em terceiro lugar aparecem oportunidades de trabalho na Síria; seguido diretamente por saudade de familiares e, por último, a pressão social nos países de refúgio motivada por xenofobia, negligência ou falta de oportunidades de trabalho.

Fonte: ACNUR

Refugiados, “go home”

O projeto restaurador de Assad conta com a xenofobia de alguns governos populistas europeus que exploram a ideia de que os problemas do país decorrem dos gastos públicos para manter refugiados e imigrantes indesejados. A última década marcou as sociedades europeias com as imagens de imigrantes desesperados no Mediterrâneo tentando chegar à Europa. O espanto abriu a porta (e os ouvidos) para um antigo discurso nacionalista extremista, que exerce influência sobre o eleitorado em todo o continente. 

Mesmo em países que receberam número expressivo de refugiados, há governos aproveitando a redução da escala do conflito e a existência de zonas pacificadas na Síria, como a própria região da capital Damasco, para cancelar os vistos temporários de solicitantes de asilo. A Dinamarca foi além e se tornou o primeiro país a ordenar o retorno de refugiados à Síria. Enquanto isso, nos dois primeiros meses de 2021, mais de 10 mil sírios já solicitaram asilo na União Europeia. É um número muito menor do que o registrado no auge da crise dos refugiados, entre 2015 e 2016, mas persiste o desafio das autoridades em conter o chauvinismo nacionalista contra esses novos recém-chegados. 

Expulsar os refugiados sírios pode ser uma tendência de outros governos num futuro próximo, ainda mais com a pressão socioeconômica causada pela pandemia de Covid-19. No último mês de julho, o ACNUR fez um apelo pela proteção econômica e social daqueles sírios que pretendem retornar, especialmente os residentes nos países vizinhos, muito mais afetados economicamente pela pandemia do que os países europeus e com uma quantidade muito maior de refugiados vivendo em seu território. 

Fonte: BBC Brasil, 15 de março de 2021

Mesmo com as ações para proteger os direitos de retorno dos refugiados sírios, para que não sejam tratados como “oposicionistas” e “traidores”, a tendência é que esse regresso ocorra de modo muito lento. Afinal, a guerra ainda não terminou, pois o governo sírio não controla totalmente o território: algumas regiões do norte seguem em mãos de forças curdas, enquanto persistem bolsões rebeldes e jihadistas.

Seja como for, as condições para o retorno pleno ainda não estão plenamente estabelecidas. Assad, o principal responsável pela situação caótica e belicosa que já perdura dez anos, segue tentando se eximir das responsabilidades sobre os crimes de guerra cometidos sob seu comando, incluindo o uso de armas químicas contra opositores civis.

Parte importante dos refugiados não pensa em voltar porque não há garantia de que seus direitos serão respeitados. Essa é a verdadeira explicação para a persistência da crise humanitária que o ditador diz ser “fabricada pelo Ocidente”. 

 

 

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