A PARTILHA IMPERIALISTA E AS FRONTEIRAS DA ÁFRICA

 

21 de junho de 2021

A PARTILHA DA ÁFRICA

A expressão “partilha imperialista da África” sintetiza o rápido movimento de ocupação e controle direto sobre as terras do continente ocorrido de meados dos anos 1870 até o início da Primeira Guerra Mundial, em 1914. A disputa europeia sobre novos territórios além-mar a serem explorados – África e Ásia, além da recém-descoberta Oceania  – caracteriza a segunda fase de globalização do sistema capitalista, cuja primeira etapa correspondeu à colonização da América.

Encerrada a fase de acumulação primitiva do capital associada ao Estado mercantilista, o sistema produtivo baseado nas plantations e no trabalho escravo nas Américas passou a sofrer a concorrência dos novos modelos de negócio propiciados pela revolução industrial na Europa. A exploração mais ampla dos recursos naturais da África exigia que a mão de obra deixasse de ser permanentemente desviada para o tráfico e pudesse ser utilizada localmente. E exigia uma partilha territorial.

O Estado liberal, erguido sobre os fundamentos iluministas de “liberdade, igualdade e propriedade”, abraçou o movimento abolicionista e fez dele seu argumento moral para ocupar e “civilizar” a África “selvagem”. O surgimento do pensamento racista, de supostos fundamentos científicos, forneceu uma justificativa benévola para a imposição das vontades europeias, mascarando que as desigualdades entre as sociedades e indivíduos decorriam de fatores políticos e não, como eles diziam “natural” (no fundo, determinado por Deus). 

bandeira união africana

Bandeira da União Africana. Com a descolonização, os líderes dos novos países reconheceram a validade das fronteiras estabelecidas pelo colonizador europeu. Refazê-las, imaginavam, seria ainda mais conflitivo

O racismo é a mais perversa herança a atingir os povos da África, Ásia ou América. Nosso foco aqui, entretanto, estará em outra herança da colonização, tão problemática quanto o racismo: a “partilha” político-territorial do continente. Ao adotarem o modelo dos Estados Nacionais europeus para organizarem as áreas que iriam explorar, os colonizadores ignoraram as realidades políticas, étnicas e sociais das populações africanas produzindo dificuldades em relação à estabilização política que ainda hoje afetam muitos desses países. 

É com o objetivo de entender como a política europeia determinou o traçado das fronteiras africanas e como isso explica certos posicionamentos das potências ocidentais sobre temas africanos que apresentamos um breve painel dessa história.

 

O liberalismo e as desigualdades naturais

Na Europa liberal pós-1848, o pensamento anterior de escravizar alguém havia se tornado intolerável. A colonização imperialista promovida pelos europeus é filha do seu tempo e justificava sua ocorrência por meio de tratados “assinados” com reis e outros potentados locais, na Ásia ou África, convenientemente interpretados como detentores de direitos soberanos, que cediam aos parceiros europeus aos quais “escolhiam” se associar.

Darwin

Charles Darwin. A transposição para a sociedade de sua teoria sobre a natureza amparou o projeto imperial

Os obstáculos derivados das dificuldades de comunicação, conceitos e expectativas – e, portanto, legalidade de tais documentos foram ignorados. O colonizador, homem branco, trouxe novas formas de organizar e pensar o espaço, o tempo, as ideias de leis, moedas, tributos. Os problemas decorrentes da imposição de poder efetivo sobre aquelas populações, necessariamente por meio da violência, encontravam tranquilizadoras respostas no “darwinismo social”, ideologia política supostamente derivada da Teoria da Evolução, de Charles Darwin, publicada em 1859.

As diferenças fenotípicas entre povos, sobretudo a cor da pele, deram sentido à ideia de raça, postas por sua vez em uma linha progressiva da pele mais escura à mais clara, onde os brancos eram definidos como mais desenvolvidos. A genética estava sendo descoberta e a ideia é que o “sangue” explicava as diferenças sociais era confortável para o discurso igualitário iluminista e cristão: os missionários levariam a “palavra de Deus” e a “civilização”. A desigualdade entre “raças” era um fato imposto pela “natureza” – ou por Deus. Colonizar povos “atrasados” contribuiria para a sua evolução, medida pelos padrões ocidentais.

A atuação missionária de diferentes Igrejas Cristãs foi decisiva na ocupação e partilha da África. São histórias de aventuras, descobertas, aprendizado e tradução das línguas, descrição de costumes e fornecimento de informações sobre riquezas a serem exploradas. Suas campanhas para arrecadar fundos na Europa se tornaram fenômenos de sucesso e patrocinaram escolas, creches, hospitais, fornecendo uma aparência de benevolente empreendimento moral ao ato de invadir e dominar.

 

missão protestante escocesa

Discurso do médico e pastor David Livingstone em uma das missões escocesas na África

O abolicionismo e a “missão civilizadora do homem branco”

É uma ironia amarga que o combate à escravidão e ao tráfico de escravos tenha sido a causa humanitária a chamar a atenção do homem comum europeu para a existência da África. Foi o que aconteceu, por exemplo, com William Wilberforce (1759-1833), um cidadão que via a política como meio para reformar a sociedade segundo o Evangelho. Ele iniciou uma longa campanha contra a escravidão na Inglaterra, que teve como desdobramento a lei votada pelo Parlamento em 1807 pondo fim ao tráfico de escravos em todos os territórios britânicos. Em 1834, veio a lei que aboliu a escravidão em terras da Coroa.

Com a vantagem de berço da Revolução Industrial, o Reino Unido encampou o movimento abolicionista que crescia no país. No Congresso de Viena, em 1815, após a derrota de Napoleão, um novo equilíbrio de forças foi pactuado entre as potências europeias. O Reino Unido emergiu como potência inquestionável e usou essa força para obter compromissos dos demais Estados participantes no sentido de lutarem contra o tráfico de escravos em todas as partes, inclusive no império português.

William Wilberforce

William Wilberforce, líder da campanha antiescravista na Inglaterra

A Marinha britânica passou a reprimir o tráfico no Atlântico, especialmente para o persistente Império do Brasil, ao mesmo tempo em que estabelecia novas bases na costa africana, de onde atacava os portos de escravos. As pessoas resgatadas em alto-mar e os libertos foram levados para esses territórios, como Freetown, em Serra Leoa.

Quando a França aboliu a escravidão nas suas colônias, em 1848, adotou medida semelhante com seus libertos, enviados para Libreville, no Gabão. Idem para os Estados Unidos, onde a American Colonization Society, uma companhia privada, foi criada para ajudar a devolver para a África aqueles que a elite branca não se desejava ver como parte da nova nação independente. Assim foi criada a Libéria, para onde levaram milhares de antigos escravos nas décadas de 1830 e 1840.

 

O estratégico Cabo da Boa Esperança

A primeira colônia europeia na África foi, de fato, a colônia do Cabo, situada no extremo sul do continente, onde os oceanos Atlântico e Índico se encontram. Descobrir esse local estratégico, em um mundo que se descobria redondo e ligado por oceanos, foi façanha do navegador português Bartolomeu Dias, que ali esteve pela primeira vez no ano de 1486. O “caminho das Índias” foi, desde então, alvo de disputas entre as potências europeias.

Coube à Holanda, em 1652, por meio da Companhia de Comércio das Índias Orientais, estabelecer ali o primeiro núcleo de povoamento e entreposto para seus navios, batizado de cidade do Cabo e majestosamente emoldurado pela Table Mountain. No contexto das guerras religiosas na Europa, grupos de calvinistas holandeses e franceses ali se instalaram decididos a seguir uma vida autônoma.

Um século e meio depois, valendo-se da desorganização política provocada pelas Guerras Napoleônicas, o Reino Unido tomou a Cidade do Cabo, e a Holanda aceitou essa mudança de domínio no Congresso de Viena. Contudo, os descendentes dos colonizadores, os bôeres, não aceitaram a chegada dessa nova autoridade e, em 1837, empreenderam uma grande migração (Grand Trek) para as terras altas, instalando-se além do rio Orange, deixando o litoral para os britânicos. Outra parte do grupo rumou para o leste até alcançar o litoral do Índico, onde fundaram Porto Natal (atual Durban).

Família boer

Uma família bôer, em 1886. Atualmente há 1,5 milhão de descendentes deste povo na África do Sul

O novo interesse europeu pelo continente e a posição estratégica no extremo meridional fizeram Londres agir rapidamente contra esse arroubo de independência. Em 1843, o Parlamento decidiu enviar tropas e anexar Porto Natal e região.

A tensão entre britânicos e bôeres prosseguiu até 1876, quando a descoberta de ouro e diamantes nas terras boeres produziu uma corrida do ouro e uma questão de soberania sobre os territórios e suas rendas. Esta foi a questão que conduziu a duas guerras anglo-bôeres, concluídas com o extermínio de civis bôeres presos em campos sem água, comida ou higiene. Hannah Arendt, em Origens do Totalitarismo, afirma que os campos de concentração foram inventados pelos britânicos naquele momento.

No caminho dos homens brancos, bôeres ou britânicos, zulus, matabeles, shonas e outros foram dizimados pelas armas de fogo, pela perda de suas terras e modos de vida ou transformados em trabalhadores escravizados. A questão racial na África do Sul seguiria até o final do século XX, com o apartheid.

 

AVENTURAS NO CORAÇÃO DA ÁFRICA

As sociedades ocidentais do século XIX acompanharam com verdadeiro entusiasmo as histórias de exploradores que chegaram a lugares inéditos e deixaram seus nomes para a posteridade. É o tempo da britânica e respeitável Royal Geographical Society, patrocinadora de muitas dessas viagens que mesclavam interesse científico e prospecção de negócios. Na África, até então desconhecida pelos europeus – mas não pelos árabes, que detinham muito mais informações – esses exploradores foram cruciais. Descobrir primeiro dava ponto em futuras partilhas.

Desde a expedição de Napoleão Bonaparte ao Egito, em 1798, os europeus eram fascinados por aquele lugar tão antigo quanto a Bíblia. No mapeamento do mundo que estava em curso, logo se indagou de onde vinham as águas perenes do rio Nilo, e uma série de expedições foram realizadas para chegar à resposta. Richard Burton e John Speke localizaram as nascentes do Nilo, em 1860, nas terras altas de Uganda, batizando seu lago formador de Vitória.

dr. Livingstone

David Livingstone (1813-1873), uma vida de aventuras no interior do “continente selvagem” acenderam a curiosidade de um público ávido por suas histórias

O mais célebre explorador da época foi o médico e missionário David Livingstone, que viajou durante anos na faixa de terras entre Angola e Moçambique e navegou pelo rio Zambeze. Foi atrás de uma boa história sobre o misterioso paradeiro de Livingstone que o jornalista Henry Morton Stanley, do New York Herald, descobriu a ligação entre a costa oriental (por onde entrou) e a costa ocidental da África (por onde saiu). A viagem começou no lago Tanganica, em 1874, seguiu por um rio que nascia no lago, o Lualaba, até desembocar no gigantesco rio Congo, por onde a expedição de Stanley prosseguiu até atingir o Atlântico, em 1877.

Desvendado o mistério do acesso ao interior do continente, outras expedições foram realizadas por franceses, britânicos, portugueses e alemães. Elas mapearam as rotas do Saara; os rios Níger, Gabão e seus principais afluentes; avançaram pela África Austral e Oriental.

 

Apetites imperiais

A conquista da Argélia pela França, em 1831, inaugurou a nova fase imperialista de exploração e integração da África ao mercado mundial, descortinando novos territórios a serem explorados e ajudando a desviar a atenção para os reveses da política francesa na Europa. A região recebeu muitos colonos franceses e se tornou relevante para a economia da metrópole a ponto de passar a ser diretamente governada por Paris.

Mas coube ao rei Leopoldo II, da Bélgica, o papel de protagonista na “partilha” da África. Empolgado com as riquezas extraídas dos novos territórios, decidiu criar sua própria colônia. A exploração do marfim de elefantes e, depois, da borracha, nas terras cedidas ao rei, o Congo Belga, constitui um capítulo singular de terror na história colonial.

Primeiro, Leopoldo II fundou a Associação Internacional Africana (AIA), em Bruxelas. A entidade se organizou para captar recursos e estabelecer postos entre a costa de Zanzibar e a foz do rio Congo, a fim de “civilizar os nativos e combater a escravidão”. Empresários britânicos e holandeses logo se tornaram acionistas da entidade.

Nessa época, Henry Stanley viajava pela Europa dando palestras sobre suas aventuras na África e a navegação no rio Congo. Leopoldo não deixou passar a oportunidade, associando-se ao explorador em 1878.  Juntos, criaram o Comitê de Estudos do Alto Congo (CEAC), com finalidades filantrópicas e comerciais. Mas o CEAC precisava ser reconhecido pelos demais governos da Europa para que as reivindicações territoriais do soberano fossem aceitas.

Por isso Stanley retornou ao Congo em 1879, com a missão de criar três Estados politicamente independentes ou formar pequenos Estados sob a suserania do CEAC, para depois agrupá-los num Estado Livre do Congo. O que não estava nos planos era a presença do explorador francês, o tenente Pierre de Brazza-Savorgnan, responsável pela exploração do rio Ogué, no Gabão. Brazza fundou uma base na margem direita da foz do Congo, Franceville, em 1880, a fim de garantir uma boa situação de negociação para a França quando a região viesse a ser disputada e ocorresse a partilha.

Stanley e Brazza adotaram a mesma estratégia, empregando formulários a serem preenchidos por chefes locais e assinados com termos de cessão de soberania, num sistema de protetorado. O desconhecimento das línguas europeias produzia assinaturas em textos de validade legal bastante discutível mas em momento algum contestadas por juristas ou governantes europeus.

 

Portugal, o ocaso do império  

Portugal, que desbravou a costa ocidental africana desde o século XV, mantinha-se nas antigas posições, como o porto de escravos de Cabinda, próximo à foz do rio Congo, transformado em objeto de disputa franco-belga. Invocando seu pioneirismo, o governo português reivindicou o direito sobre as terras que se estendiam da foz do rio Congo, até a costa de Moçambique, do outro lado do continente, uma larga faixa contínua que daria a Portugal o controle sobre o centro do continente.

Desenho de medalhão abolicionista inglês

Portugal pagou a conta de sua oposição ao movimento abolicionista. Aqui, o desenho de um dos símbolos do movimento britânico traz a pergunta de fundo bíblico: eu não sou um homem e um irmão?

O problema ficou por conta da persistente atitude anti-abolicionista lusitana. Acima de tudo, ela serviu de pretexto para os países mais fortes ignorarem as pretensões do decadente reino de Portugal. Para o Reino Unido, rendeu um tratado, assinado em 1884, definindo as fronteiras entre Moçambique e a Colônia do Cabo, com grandes cessões de terra a seu favor, em troca do reconhecimento sobre os direitos de Portugal no estuário do Congo.

O governo francês contestou tal acordo. Leopoldo II apoiou a França, enquanto garantia a todos que no futuro Estado Livre do Congo não haveria taxa alfandegária alguma, o que muito agradou ao governo britânico.

O governo português passou a sugerir uma conferência para discutir a situação do Congo. O chanceler Otto von Bismarck, que acompanhava as questões na África de olho no equilíbrio de poder europeu, viu ali a chance de afirmar a liderança diplomática alemã.

 

A Conferência de Berlim

Até então pouco interessado em aventuras coloniais, Bismarck rendeu-se às pressões no início de 1884, após ser convencido a adotar o sistema de concessões às grandes companhias de comércio como meio de “ocupação sem custos”. Então, entre julho e outubro, enquanto reuniões preparatórias para a conferência sobre o Congo eram realizadas, o chanceler ordenou a exploradores alemães irem à África e assinarem o maior número possível de tratados de cessão de soberania nas áreas do Togo, Camarões e Sudoeste Africano, onde grupos missionários já marcavam presença.

A conferência sobre África não foi vista, naquele momento, como algo de grande peso – é o que se conclui do fato de nenhuma autoridade importante ter comparecido às reuniões, basicamente realizadas por diplomatas que já residiam na capital alemã. A reunião iniciou-se em meados de dezembro de 1884 e terminou no começo de janeiro de 1885. Participaram representantes da Alemanha, França, Reino Unido, Bélgica, Portugal, Itália, Espanha, Áustria-Hungria, Holanda, Dinamarca, Rússia, Suécia e Noruega, além dos Estados Unidos e do Império Turco-Otomano.

Apesar da imagem da “partilha”, o tratado final assegurou o compromisso com a livre navegação dos rios e com as questões humanitárias, que possuíam grande apelo junto à opinião pública. A Ata Geral assegurava a continuidade do combate ao tráfico de escravos, a liberdade religiosa e a concessão de direitos especiais de proteção aos missionários e exploradores. 

Desenho Conferência de Berlim

Desenho publicado, à época da Conferência de Berlim por uma revista alemã. Bismarck aparece em posição central. O mapa da África, ao fundo, ajudou a consolidar a imagem de partilha do continente

 

A “partilha” e as fronteiras

Leopoldo II obteve o reconhecimento do seu Estado Livre do Congo, visto como um conveniente território-tampão por França e Reino Unido, impedindo que as disputas territoriais no continente afetassem a paz na Europa. Portugal perdeu o controle sobre a margem direita do rio Congo para a França, embora preservasse a região de Cabinda. A criação do Congo Belga desfazia definitivamente as pretensões portuguesas de dominar o interior do continente.

No dia seguinte ao encerramento da Conferência de Berlim, Bismarck anunciou o protetorado sobre partes da África oriental, uma área que se estendia das terras ao sul do porto de Mombasa até Moçambique, incluindo as ilhas de Zanzibar e, para o oeste, até o lago Vitória (basicamente, Quênia e Tanzânia atuais). Mas a partilha das terras da África ocorreu, de fato, nas duas décadas seguintes, quando dezenas de outras conferências e tratados assinados entre as potências europeias criaram as fronteiras políticas que representam o mapa contemporâneo da África.

O historiador Henri Brunschwig fornece alguns números: “entre 12 de janeiro de 1869 e 3 de junho de 1907, o Reino Unido firmou 30 tratados de delimitação com Portugal. Houve 25 entre Reino Unido e Alemanha de 29 de abril de 1885 a 11 de junho de 1907, e 249 com a França sobre a África Ocidental e Central.” (A partilha da África negra, p. 58)

  

A GEOPOLÍTICA AFRICANA

O Egito estava sob controle britânico desde as Guerras Napoleônicas. Quando estourou a Guerra Civil nos Estados Unidos (1861-1865), as indústrias de tecidos britânicas descobriram o algodão egípcio. A nova tecnologia dos navios a vapor tornava possível navegar pelo mar Vermelho. O objetivo era atingir o porto de Alexandria, no Mediterrâneo.          

A decisão de abrir o Canal de Suez foi um arroubo de engenhara e demonstração da autoconfiança daquela figura liberal-burguesa da época. Britânicos e franceses disputaram intensamente o controle sobre o canal, cuja navegação revolucionava o sistema de transportes e custos em escala mundial ao reduzir a necessidade de contornar toda a África para atingir a Europa. Na geopolítica mundial que se desenhava, em uma era anterior aos aviões, o Canal de Suez era um dos lugares mais estratégicos do mundo.

 

O Egito e a rivalidade anglo-francesa

Os franceses foram bem sucedidos em vender o projeto de engenharia para a construção do canal ao sultão otomano, mas não conseguiram manter o controle sobre a empresa quando a falência do Estado egípcio levou o sultão a vender suas ações da Companhia do Canal. Naquele momento, a França pagava indenizações à Alemanha pela Guerra Franco-Prussiana (1871) e não pode impedir que empresários britânicos comprassem aquelas ações. 

A reação à presença estrangeira e a seus valores desencadeou um movimento de resistência islâmica, com grande influência no Exército, que se conecta com alguns grupos fundamentalistas atuais. Em 1881 explodiu uma revolta antiocidental e ficou evidente que o poder do sultão turco sobre aquelas terras era uma ficção. No ano seguinte, forças britânicas promoveram uma intervenção militar e fizeram do Egito, na prática, um protetorado.

Desde Heródoto, o Egito era uma dádiva do Nilo e, portanto, controlar suas nascentes era crucial. Mas elas vinham de terras muito mais distantes, cruzando todo o Sudão – como a África Negra foi genericamente chamada durante séculos – para chegar às altas montanhas de Uganda, onde fica o Lago Vitória. Nesse caminho, registra-se uma clara distinção de regiões e sociedades, com o Alto Nilo mais animista e o Baixo Nilo mais integrado ao mundo árabe-islâmico.

 

O Nilo e o Mar do Norte

A política imperial britânica avançava sobre áreas de interesse da Alemanha, onde missões germânicas atuavam desde o início do século XIX. A pressão da revolta no Egito empurrou o governo britânico para uma negociação com o Império Alemão sobre a área do Lago Vitória.

Naqueles anos, a Alemanha estava construindo o Canal de Kiel, que permitiria a passagem entre os mares Báltico e do Norte sem que os navios deixassem seu território nacional. O problema é que, logo na saída do canal, situava-se a pequena ilha britânica de Heligolândia, que poderia ser usada para atacar os navios alemães na boca do porto. O britânico Salisbury propôs a troca da Heligolândia pelos territórios do Quênia, Uganda e Zanzibar, com o que o domínio sobre as nascentes do Nilo ficaria assegurado. O acordo incluía também a delimitação das fronteiras na região do rio Níger, entre Camarões (alemã) e Níger (britânica). O tratado foi firmado em 1890 e a tensão anglo-germânica na África oriental se dissipou.

 

A rivalidade franco-britânica

Já a tensão com a França aumentou, porque o governo francês protestou contra esse acordo anglo-alemão, lembrando a Londres que havia uma influência compartilhada sobre Zanzibar desde meados do século XIX. A solução proposta por Londres, em agosto de 1890 era deixar Zanzibar para o Reino Unido em troca de ceder a ilha de Madagascar para a França. As reuniões sobre esses acertos incluíram a partilha e demarcação de terras na África Ocidental, nas bacias dos rios Senegal, explorado pela França, e Níger, de bandeira britânica, novamente refeitos pela Convenção do Níger, de junho de 1898.

A França, contudo, insistia em ter alguma vantagem no Egito, assunto considerado encerrado por Londres. O governo de Paris decidiu voltar à carga e ocupar terras do Sudão – de onde os britânicos haviam sido praticamente expulsos pelo movimento islâmico mahadista, desde a Batalha de Cartum (1884-85) – para controlar o Alto Nilo e forçar Londres a negociar.

A operação militar francesa foi rebatida por uma nova expedição britânica. Entre junho e julho de 1898, ambas as forças se encontraram em Fachoda e temeu-se por uma guerra em solo europeu. A crise terminou com um acordo, assinado em março de 1899, demarcando as zonas de influência a partir do divisor de águas que alimentava a bacia do Alto Nilo e o lago Chade. Estava feita a partilha e definida a África Equatorial Francesa.

 

História de uma miragem: a ferrovia Cairo-Cabo

Charge Rhodes, CairoCabo

Cecil Rhodes, símbolo da ambição imperialista britânica

Por volta de 1884 tornou-se popular a ideia de concentrar as colônias inglesas na costa oriental africana, sob o argumento de estarem unidas pelas águas do oceano Índico à Índia, à Austrália e Hong Kong. Era o mare nostrum britânico.

Daí nasceu outra ideia imperial: construir uma estrada de ferro ligando toda a África oriental, da cidade do Cairo, no Mediterrâneo, à cidade do Cabo, no extremo sul. Apesar de ter caído no gosto do público, o projeto era visto como estapafúrdio por técnicos e investidores, uma vez que o custo do transporte marítimo era muito menor, especialmente com a chegada dos navios a vapor.

Enquanto tudo eram possibilidades, um dos homens-símbolo de era imperialista, Cecil Rhodes agarrou-se à miragem da ferrovia para justificar o avanço por ele capitaneado sobre os territórios bôeres, onde se concentravam as ricas minas de ouro. Rhodes havia se tornado milionário graças às minas de diamantes que explorou; depois, foi ministro da Colônia do Cabo de 1890 a 1895 e fundou a Rodésia (atual Zimbábue).

A resistência resultou na Guerra Anglo-Bôer (1899-1902) e no reconhecimento definitivo da soberania britânica sobre as terras da África do Sul.

 

A questão marroquina e a Entente Cordial

Em 1878, no quadro da conferência de paz da Guerra Russo-Turca, Bismarck decidiu assegurar à França algum ganho territorial, entregando-lhe a Tunísia, então parte do Império Turco. Em 1881, 35 mil soldados franceses desembarcaram na Tunísia; dois anos depois foi assinada a Convenção de La Marsa, estabelecendo um regime de protetorado. Em seguida, os franceses voltaram-se para o Marrocos, na fronteira com a Argélia, onde a influência espanhola declinava depois de séculos.

Charge Entente Cordial

O indelicado cavalheiro alemão se intromete na conversa entre Mr. England e Miss France

No cenário europeu, a França aproveitou para tratar o Marrocos como uma compensação necessária pela perda do Egito. Ao mesmo tempo, os britânicos começaram a perceber o poder real que a Alemanha estava constituindo, muito mais perigoso que a sempre vacilante França ou a obsoleta Rússia czarista. Um realinhamento político reconfigurou, a partir de então, o equilíbrio de forças dos últimos quatro séculos: Londres começou a se aproximar de Paris, sua rival histórica, de olho na força da indústria alemã.

Foi esse pensamento que conduziu À assinatura da Entente Cordial, em abril de 1904: o Reino Unido aceitava o controle francês sobre o Marrocos; em troca, a França reconhecia o que já era um fato consumado, o controle britânico sobre o Egito.

Berlim contestou o acordo. A “questão marroquina” provocou duas crises, em 1905-06 e em 1911-12, quando o governo reconheceu, pelo Tratado de Fez, o Marrocos como protetorado francês. Durante a segunda crise marroquina, a Itália negociou seu apoio à França, numa cada vez mais provável guerra desta contra a Alemanha pelo direito de ocupar a Líbia, o que ocorreu em 1911.

 

A exceção etíope

A Etiópia foi o único país cuja reação aos ataques de conquista foi bem sucedida. O antiquíssimo reino cristão reagiu à presença europeia e ao seu abolicionismo. Dessa luta emergiu a liderança de Melenik II (1844-1913), aclamado rei dos etíopes. Ele foi o responsável pela modernização do país baseada na centralização do poder e na criação de um exército fiel e bem armado. Ergueu também uma nova capital, Adis-Abeba (Nova Flor).

Em 1887 as tropas de Melenik conseguiram impor uma humilhante derrota aos italianos, na Batalha de Dogali. A Itália voltou-se então para o mar Vermelho, onde estabeleceu protetorados sobre a Eritréia (1890) e a Somália (1891). Pouco depois, decididos a dominar a Etiópia, os italianos atacaram novamente em 1896, para serem novamente derrotados na Batalha de Adowa. Em outubro daquele ano foi firmado o Tratado de Adis-Abeba, pelo qual a independência da Etiópia acabou sendo reconhecida pela Itália e, posteriormente, pelos demais Estados europeus.

Mapa Divisão colonial da África

 

SAIBA MAIS

  • Scramble for Africa (10:33) – Documentário na forma de animação, pontua a ocupação da África (em inglês)
  • Dr. Livingstone Museum  (3:22)  Acervo do museu oficial dedicado ao missionário, na Tanzânia, com escritos, objetos e mapas
  • The life of David Livingstone (6:05) Uma breve biografia do explorador; destaque para os mapas das terras por ele percorridas (em inglês)

 

  • BRUNSCHWIG, Henri. A partilha da África Negra. São Paulo: Editora Perspectiva, 1974
  • GOULD, Stephen Jay. The mismeasure of man. London: Penguin Books, 1996.
  • HERNANDEZ, Leila Leite. A África na sala de aula. Visita à história contemporânea. São Paulo: Selo Negro, 2005.             
  • HOCHSCHILD, Adam. O fantasma do rei Leopoldo. São Paulo: Cia das Letras, 1999.
  • KI-ZERBO, Joseph. Historia del Africa Negra. Madrid: Alianza Editorial, 1980 (2 v).
  • McEVEDY, Colin. The Penguin Atlas of African History. London: Penguin Books, 1995.
  • RICE, Edward. Sir Richard Francis Burton. São Paulo: Cia das Letras, 1992.
  • SAID, Edward W. Cultura e imperialismo. São Paulo: Cia das Letras, 1995.
  • WESSELING, H. L. Dividir para dominar. A partilha da África 1880-1914. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, Editora Revan, 1998.

 

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