DO VOTO À PRESIDÊNCIA, A EMANCIPAÇÃO DA MULHER

 

Elaine Senise Barbosa

24 de agosto de 2020

 

Kamala Harris é o nome da senadora californiana escolhida para disputar o governo dos Estados Unidos como vice do democrata Joe Biden. Ela é uma síntese de uma parcela importante da população que a “América branca” de Trump tenta deslegitimar com seu discurso xenófobo. Filha de imigrantes (pai jamaicano, mãe indiana), negra, mulher, Kamala é a expressão de pessoa bem-sucedida, competente, contrariando os estereótipos. Um exemplo e uma imagem importante no espelho dos EUA.

Ao escolhê-la, Biden mira essa nação multirracial refletida em todas as estatísticas populacionais, procurando atrair esse eleitorado para o Partido Democrata. É o oposto da ideologia nativista dos Wasp, que o Partido Republicano abraça desde o movimento Tea Party, de 2009, agora expressa por Donald Trump, que já associou imigrantes a criminosos e desdenhou das imensas manifestações do Black Lives Matter dos últimos dois meses.

Kamala é a segunda senadora negra dos Estados Unidos. Quando se afirma que sua escolha visa a conquistar o eleitorado negro, é preciso ser mais específico. Como grupo, são as mulheres negras a fatia de votantes que mais cresce. Elas foram decisivas para a vitória de Barack Obama em 2008 e as mulheres, em conjunto, foram responsáveis pelos três pontos percentuais de vantagem que Hillary Clinton obteve na votação popular em 2016, apesar da derrota para Trump no Colégio Eleitoral.

As mulheres negras votam consistentemente no Partido Democrata e, junto com outras eleitoras “de cor” – como também são classificadas pelo censo americano as de origem asiática ou latina – já demonstraram sua força eleitoral. Agora, essas mulheres podem decidir as eleições nos chamados swing states – os estados oscilantes, disputados palmo a palmo pelos dois grandes partidos, fundamentais para o resultado final.   

A maior participação das mulheres na vida política dos Estados Unidos reflete os avanços de duas gerações, desde a Lei dos Direitos Civis e a segunda onda do movimento feminista. Ela decorre do acesso à educação e ao voto, da conscientização da importância de se registrar para votar e da luta contra os muitos obstáculos que as leis de vários estados criam para dificultar o voto de minorias.

As mulheres negras estão na linha de frente dessa organização política porque sentem as consequências da realidade econômica como ninguém, uma vez que integram as bases da pirâmide socioeconômica. São arrimos de família e ganham menos. Num país onde o voto é facultativo, a campanha dos democratas, Kamala à frente, deve focar essa fatia do eleitorado para convencer essas mulheres a sair de casa para votar.

 

Cem anos do voto feminino

Mulheres em campanha pelo voto

Representantes de mulheres de diferentes estados protestam em frente à Casa Branca. As mulheres tiveram que aprender a se organizar para alcançarem seus objetivos

É o looping da montanha russa. Está nas mãos das mulheres o poder de decidir as eleições nos Estados Unidos, no ano da celebração do centenário do voto feminino naquele país.

A conquista do voto e, portanto, o reconhecimento da independência civil das mulheres, foi o primeiro capítulo da história do movimento feminista. Como no restante do Ocidente, a Primeira Guerra Mundial (1914-1918) foi o divisor de águas a partir do qual, gradativamente, os parlamentos aprovaram leis a favor do direito de voto para as mulheres, em reconhecimento a seu papel cada vez mais ativo na sociedade.

Nos Estados Unidos, em setembro de 1918, o presidente Woodrow Wilson falou perante o Senado: “Fizemos das mulheres parceiras nessa guerra; devemos admiti-las apenas em uma parceria de sofrimento, sacrifício e labuta e não para uma parceria de privilégio e direitos?”. O alto engajamento das mulheres trabalhando como enfermeiras já havia despertado respeito junto à opinião pública, mas a epidemia de gripe espanhola em 1917-18 trouxe essa imagem e esse reconhecimento para muito mais perto.

A 19ª Emenda à Constituição, aprovada pelo Senado em junho de 1919, proibiu os estados e o governo federal de negarem o direito de voto a cidadãos com base no gênero. Em 1920 as mulheres votaram pela primeira vez.

A nova lei, contudo, não garantia a universalização do direito, contornado pelos mesmos mecanismos usados contra outras minorias: provas de alfabetização, pagamento de impostos eleitorais, provas de residência fixa. Foi necessário um século de atuação política das mulheres para superar esses obstáculos; agora elas já sonham com a Casa Branca. 

 

Ontem e hoje

A história do movimento feminista nos Estados Unidos se desenvolveu em paralelo com a luta abolicionista. Os dois movimentos decorreram das ideias liberais que se espalhavam durante o século XIX, baseadas na crença de autonomia dos indivíduos e igualdade de capacidades entre os seres humanos. Muitas mulheres, esposas e filhas de líderes religiosos e abolicionistas não tardaram a notar que os argumentos usados em favor da libertação dos escravos – ou contra a abolição – podiam ser aplicados quase integralmente à condição das mulheres: sujeitos sem autonomia sobre seus próprios corpos ou ideias, apenas trocando de mãos de senhores. 

Associação Nacional Contra o voto feminino

Diretório da Associação Nacional Contra o Voto Feminino. Adivinhe quem era contra 

 

Em julho de 1848 foi realizada a primeira reunião em prol dos direitos das mulheres, a Convenção de Seneca Falls, no estado de Nova York. Um dos nomes de destaque desse período foi Elizabeth Cady Stanton, a responsável por direcionar o movimento para uma atuação mais politizada, sem a qual jamais atingiriam seus objetivos, e para o que a conquista do voto tornava-se uma arma fundamental. Stanton e outras mulheres organizaram entidades, reuniões, palestras e foram semeando pelo país o desejo de serem tratadas como patrióticas cidadãs, não como gente que desejava destruir a harmonia das famílias e dos lares, como apregoavam os opositores.

Em 1913 houve o Congressional Union for Woman Suffrage (CU), do qual saiu o National Woman’s Party (NWP). Inspiradas nas experiências das sufragistas britânicas, as militantes do NWP buscavam atrair o interesse público e pressionavam os representantes eleitos a apoiar o sufrágio feminino. Suas táticas englobavam panfletagens, desfiles, petições, instalação de outdoors em rodovias públicas, organização de viagens para oradores defenderem a causa do sufrágio por todo o país, piquetes frente à Casa Branca,  greves de fome com direito a prisão e alimentação forçada. 

O engajamento dos EUA na Primeira Guerra Mundial deu o empurrão final na opinião pública a favor do voto feminino. Um século depois, as mulheres representam 53% do eleitorado, enquanto os homens são 47%. Nesse amplo conjunto feminino, o aumento na participação eleitoral registrado na última década reflete uma participação crescente das millennials, bastante superior à das mais idosas, como evidencia uma pesquisa da Pew Research. Na disputa de 2020 por cadeiras no legislativo registra-se um recorde de mulheres inscritas: 574, contra as 476 que concorreram há dois anos, conforme noticia a revista Valor.

Joe Biden é um candidato em idade avançada. Caso vença as eleições desse ano, é improvável que concorra à reeleição. Até onde a vista alcança, Kamala Harris seria uma candidata natural dos Democratas à presidência, em 2024. 

 

SAIBA MAIS 

  • Uma página voltada às comemorações do centenário do voto: WVCI

 

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