Diante da pandemia de Covid-19, a Rússia passou a fazer um controle rígido da quarentena se utilizando de tecnologias de hipervigilância. Na capital, Moscou, epicentro da doença no país, o governo se utilizou do aparato de vigilância por câmeras da cidade, incrementando-o com inteligência artificial para identificar as pessoas potencialmente infectadas pelo vírus e rastrear seus movimentos. A princípio, o sistema serviu para identificar e vigiar toda a população, tendo em vista que qualquer pessoa era um potencial portador do coronavírus. Conforme o avanço da epidemia, mais medidas de controle epidemiológico foram desenhadas, mas tendo como alvo os imigrantes. A vigilância deixava de ser puramente epidemiológica, adquirindo teores de controle social.
Segundo um relatório da Human Rights Watch, a Rússia tem um projeto de aplicativo exclusivo para trabalhadores imigrantes, que devem baixar o app assim que cruzarem a fronteira do país. Com a perspectiva de retomada das atividades econômicas que dependem da força de trabalho imigrante, o governo russo justifica o aplicativo como instrumento para evitar que novos focos da doença estourem ao longo das fronteiras russas e migrem para os grandes centros urbanos.
Pouco se sabe a respeito do funcionamento do aplicativo. Relatos indicam que ele reuniria as informações médicas e biométricas, além de passagens pela polícia dos imigrantes. Não há qualquer tipo de especificação na lei russa sobre quais tipos de informação biométricas podem ser levantadas, sintoma da insegurança quanto a direitos na Rússia de Vladimir Putin. Sem definição legislativa, o governo pode angariar basicamente todo tipo de identificação biométrica.
Os imigrantes da Ásia Central são os maiores afetados pela implementação desse sistema invasivo de vigilância através de aplicativos, pois formam, de longe, o maior contingente de imigrantes do país. As repúblicas da Ásia Central figuram como as principais origens de mão de obra imigrante por conta do passado soviético comum. Todos os países daquela região foram repúblicas soviéticas e, portanto, ficaram por muito tempo sob a égide de Moscou. Com o fim da União Soviética, em 1991, muitos trabalhadores centro-asiáticos mantiveram vínculos de emprego na Rússia, tendo de cruzar a fronteira diariamente para trabalhar em território russo.
Fonte: Radio Free Europe
Criou-se um discurso xenófobo em torno desses imigrantes, que passaram a ser vistos como o principal alvo a ser securitizado durante a epidemia, pois supostamente serão os principais indivíduos a cruzarem as fronteiras, na hora da reabertura. Eles se transformariam, portanto, nos principais vetores de transmissão da doença.
A imprensa russa, controlada quase totalmente pelo governo, veicula a noção de que os imigrantes da China e da Ásia Central são uma ameaça à saúde pública em si, como se o vírus não tivesse sido levado ao país também por homens de negócios e turistas em suas viagens internacionais. Vários incidentes de agressões a imigrantes dessas regiões aconteceram no transporte público de Moscou desde março. Neles, os agressores utilizaram frases como “os chineses trouxeram o vírus para a Rússia”, informa um segundo relatório da HRW.
O exclusivismo da vigilância sobre os imigrantes na proposta do aplicativo é evidente. A pergunta é: será que ele serve exclusivamente ao alegado controle da pandemia? Existiria, por trás da iniciativa, um interesse do governo Putin de estender o mecanismo de vigilância para além do período mais crítico de circulação do vírus?
Vigilância étnica, justificativa sanitária
Passaporte Interno russo. Desde 2007, quando foi reformulado, o documento funciona como uma espécie de carteira de identidade
A questão preocupante é o histórico de controle das minorias nacionais, extremamente forte na Rússia. Por muito tempo, na antiga URSS, a nacionalidade dos cidadãos figurou como traço de discriminação nos documentos de identificação da população chamados de Passaportes Internos. Hoje, o documento não existe mais como forma de impedir a circulação de pessoas em território russo, mas algumas pessoas ainda se orgulham de seus passaportes ostentarem a identificação nacional.
Isso nos remonta à tradição imperial russa, posteriormente atualizada pelo ditador soviético Joseph Stalin, que agia para afirmar a hegemonia política e cultural russo-eslava. Putin, o novo czar, assume cada vez mais seu perfil autocrático, e com a recente vitória legislativa, poderá estender seu reinado até pelo menos 2036. Quase sem oposição, o autocrata russo reavivou a tradição czarista de russificação, abafando qualquer contestação regional ao poder de Moscou, como os movimentos separatistas nas repúblicas do Cáucaso.
O sistema de poder nacionalista de Putin ancora-se, cada vez mais, na fusão do Estado com a Igreja Ortodoxa Russa. Inspirado nos antigos czares, ele difunde uma visão universalista sobre a identidade cristã-russa, pois enxerga como elemento crucial para sua sobrevivência a relação umbilical do “trono” com a Igreja. O poder de Putin exige a supressão da pluralidade política dentro e no entorno da Rússia, pela retomada da “russificação” étnica e cultural. Um dos objetivos estratégicos é abafar pulsões identitárias que possam gerar reações em cadeia no interior da Rússia, onde os russos coexistem com diversas minorias nacionais.
O uso de tecnologias de hipervigilância sobre os imigrantes não-russófonos ou não-eslavos é um instrumento para esse controle social, evitando que a imigração transitória se torne permanente. O fechamento de fronteiras provocado pela pandemia obrigou os imigrantes transitórios a permanecerem na Rússia, um cenário perigoso, segundo o discurso oficial, pois criaria incentivos para o enraizamento desses trabalhadores estrangeiros. Daí, também, o grande interesse em vigiá-los.
Imigrantes fazem fila para prolongarem seu status legal diante do centro de controle de imigração em São Petersburgo
Manifestações xenófobas vieram de moscovitas que diziam, durante a quarentena, que finalmente podiam ver “quem realmente comanda a capital russa”: de suas janelas, avistavam-se apenas trabalhadores imigrantes dos chamados “serviços essenciais”. Segundo o vice primeiro-ministro Marat Khusnullin, com um contingente de um a dois milhões de imigrantes “presos” na Rússia, o governo prefere que continuem trabalhando, não que permaneçam nos alojamentos. Ele quer dizer que é trabalhando, se expondo ao público e ao aparato de vigilância, que podem ser controlados.
Um exemplo de que a motivação para a implantação do aplicativo vai além do controle da pandemia foi a declaração do parlamentar russo Frantz Klintsevich, aliado de Putin e integrante do comitê parlamentar de Defesa e Segurança. Ele afirmou: “isso irá resolver todos os problemas com os migrantes na Rússia. Nós deveríamos ter feito isso há muito tempo, mas por causa do ‘politicamente correto’ e da tolerância, perdemos soluções para muitos problemas.”
A crescente concentração de poder nas mãos de Putin encontra, na pandemia, um novo instrumento de hipervigilância. Hoje são os imigrantes; amanhã, quem mais? Pela lógica de Putin, os próximos poderiam ser os LGBT, descritos na linguagem oficial como inimigos plantados pelo Ocidente contra a coesão nacional russa.
Hipervigilância pré-pandemia
Mesmo antes da pandemia, diversos governos vinham adotando cada vez mais aparatos de hipervigilância nas grandes cidades como forma de “melhorar” a segurança urbana. Ao longo dos últimos anos, as tecnologias de vigilância foram associadas às tecnologias de inteligência artificial criando, por exemplo, sistemas de reconhecimento facial para a identificação de criminosos nas ruas de forma instantânea pelo armazenamento de dados da população.
Steven Feldstein, no artigo “Como a Inteligência Artificial está Reformulando a Repressão”, explica que, “ao redor do mundo, sistemas de IA estão demonstrando seu potencial de serem cúmplices de regimes autoritários e reconfigurando o relacionamento do cidadão com o Estado, e assim acelerando uma ressurgência global do autoritarismo”. O autor ainda aponta a China como a principal proliferadora desses modelos de hipervigilância para regimes autoritários como um componente chave da estratégia geopolítica chinesa.
Os governos tenderão a investir mais, na próxima década, em recursos para implantação de tecnologias de inteligência artificial na vigilância urbana, pois isso reduz os custos do aparato de repressão estatal. Feldstein argumenta que a violação perene do direito à privacidade e a tensão de estar sendo constantemente vigiado para seguir um determinado comportamento ou conduta esperada já são suficientes para que o Estado não tenha que aplicar tantos recursos em agentes policiais. É, num certo sentido, a materialização da distopia 1984, de George Orwell.
Exemplo de sistema de reconhecimento facial em câmera de cidade chinesa. Observe a quantidade de informações sobre as pessoas captadas pela imagem
O principal modelo repressivo com base na hipervigilância urbana na China emerge na província de Xinjiang, onde os uigures, minoria étnica muçulmana, são o principal alvo de controle social estatal. A capital da região, Urumqi, é a 14ª cidade mais vigiada do mundo, com 12,4 câmeras para cada mil habitantes, em um ranking no qual cidades chinesas ocupam oito das dez primeiras posições. Xinjiang funcionou como um verdadeiro laboratório das tecnologias de hipervigilância chinesas voltadas ao controle social das minorias étnicas e políticas. Associada ao projeto dos campos de reeducação social, a hipervigilância dos uigures serve a um propósito de redução dos custos da coerção estatal.
Há diversos exemplos de flerte com as novas tecnologias de inteligência artificial e com o modelo chinês – e não estão muito distantes da realidade brasileira. No início de 2019, uma comitiva de parlamentares do PSL, então partido do presidente Jair Bolsonaro, viajou à China para conhecer o sistema de vigilância com reconhecimento facial. Buscava-se parcerias com empresas chinesas para implementar um projeto piloto no Rio de Janeiro, com a perspectiva de expansão a todas as grandes cidades brasileiras, para “auxiliar no combate ao crime”. A implementação do projeto piloto justamente no Rio de Janeiro revela a progressiva transformação da cidade – e, especialmente, de suas favelas – em laboratório de experimentos de táticas e tecnologias de segurança.
Cidade chinesa sob a vigilância de câmeras. A quantidade de equipamentos espalhada pelas ruas é assustadora.
Outro exemplo é o caso de Israel, um polo de tecnologias de segurança que utiliza sistemas de hipervigilância contra os palestinos. A startup AnyVision, com investimento da gigante Microsoft, implementou um sistema de segurança por reconhecimento facial para monitorar as áreas ocupadas por assentamentos israelenses na Cisjordânia, ganhando um prêmio do governo israelense de melhor projeto de defesa em 2018.
A pandemia como oportunidade de negócio
Na pandemia, há um potencial enorme para a expansão de tais dinâmicas. Isso engorda os olhos de regimes que apostam no controle social para governar, não hesitando em se utilizar do pretexto sanitário para controlar populações indesejadas ou vistas como inimigas do Estado.
O avanço da pandemia e o desejo de rastrear os contágios proliferou o uso de tecnologias da informação para cartografar os deslocamentos da população em quarentena. Dois exemplos são a Noruega e o Bahrein que evidenciam como o clamor por segurança contra a “ameaça invisível” provoca na população um movimento de recorrer ao paternalismo estatal.
Em ambos os casos foram criados apps para verificar se as pessoas permaneciam em casa durante a quarentena. Os apps agridem o direito à privacidade de seus usuários, pois possuem uma estrutura centralizada de armazenamento de dados do sinal de GPS dos smartphones, permitindo observar ao vivo a circulação de pessoas infectadas e criar um histórico dos seus deslocamentos recentes. Diante da denúncia, a Noruega anunciou que não mais utilizará o aplicativo e procurará outros meios de vigilância epidemiológica.
Aplicativo da Noruega mostrou-se invasivo e inseguro quanto ao uso de dados da população para além do contexto sanitário. A sorte dos noruegueses é viver num país democrático, onde essas denúncias têm efeito
Já o Bahrein introduziu um elemento a mais nessa estrutura de vigilância: um programa de TV associado ao app que acionava entradas ao vivo das câmeras de smartphones aleatórias de cidadãos para checar se estavam em casa. Aqueles que estivessem e fossem sorteados, ganhavam um prêmio. Os demais, flagrados fora, tinham suas privacidades violadas e ainda eram humilhados em rede nacional. No fim, o governo desistiu de impor a participação dos usuários do app no programa de TV.
Há um crescente temor entre estudiosos da hipervigilância sobre como a pandemia poderá servir de oportunidade para expandir modelos repressivos baseados em tecnologias de inteligência artificial. Companhias que vendem tais tecnologias já identificaram o contexto de angústia causado pela pandemia como uma oportunidade para a expansão de seus negócios.
Essas empresas agora tentam emplacar o conceito de “biossegurança” para esconder os reais usos de suas tecnologias. A empresa israelense Cellebrite tentou vender seu aparato de vigilância utilizado para procurar fugitivos da polícia às autoridades de Nova Délhi, na Índia. Apresentou sua tecnologia como ferramenta para rastrear o comportamento de infectados por Covid-19.
As grandes crises tendem a gerar importantes avanços na ciência e na tecnologia – e, dessa vez, não é diferente. A pandemia tem servido não só para melhorar o nosso entendimento acerca dos comportamentos de doenças infecciosas, mas também para desenvolver tecnologias destinadas a ceifar direitos fundamentais. A pandemia serve como uma catalisadora do autoritarismo no mundo, pretexto perfeito para a expansão de um modelo de hipervigilância estatal que dificilmente poderá ser desmontado após o fim da crise.
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