TECNOLOGIAS DA INFORMAÇÃO: CORONAVÍRUS E PRIVACIDADE

 

André França Cardoso, Flávio de Almeida Pires & Mario Fernando Cervi

(André França Cardoso é diretor-executivo da Assesso, empresa de Gestão da Informação e Qualidade de Dados. Flávio de Almeida Pires é diretor de operações e Mario Fernando Cervi é diretor de Qualidade de Dados da Assesso) 
20 de abril de 2020

A humanidade jamais contou com tantos recursos de tecnologias da informação para enfrentar uma pandemia tão grave como a do novo coronavírus. Seja para as ações de prevenção ou a busca da cura, a tecnologia está sempre presente nas pesquisas promovidas e nas soluções adotadas por órgãos governamentais, profissionais da saúde e comunidade científica.

Tecnologias da Informação: o vírus e a privacidadeUma das frentes que mais utiliza a tecnologia é a da prevenção da disseminação do coronavírus. Várias instâncias de governo, no mundo todo, adotaram medidas de isolamento social e passaram a monitorar a concentração de pessoas em suas cidades. Uma das formas mais empregadas para fazê-lo é capturando informações de localização dos aparelhos celulares e outros dispositivos portáteis utilizados pela população.

A tecnologia por trás da determinação do local onde se encontram os celulares está na comunicação destes aparelhos com as redes das operadoras de telefonia móvel e com o sistema mundial de GPS.

No primeiro caso, quando os usuários utilizam o seu telefone, as operadoras determinam a localização aproximada a partir da antena com a qual o aparelho se conectou, podendo ainda usar a intensidade e a velocidade do sinal de comunicação para refinar o cálculo. Nos grandes centros urbanos, uma antena pode calcular esta localização com uma precisão em torno de 300 metros – ou seja, esta é a margem de erro entre a localização real e a calculada.

Para maior precisão, é possível combinar dados de três antenas, uma técnica chamada de triangulação, que reduz a margem de erro para 100 metros. Mas esta técnica é mais complexa e requer mais tempo e processamento dos dados. Por isto, em prol da rapidez, os mapas de calor geralmente são produzidos com dados captados de uma só antena. Nas regiões com baixa densidade populacional, onde não há a necessidade de instalação de muitas antenas pela menor quantidade de usuários, a precisão é menor, podendo a margem de erro corresponder a quilômetros.

No Brasil, isto já é praticado em vários estados, como em São Paulo, onde o Instituto de Pesquisas Tecnológicas (IPT), órgão vinculado ao governo estadual, firmou parceria com as principais operadoras que atuam no estado para obter os dados produzidos por elas. Inicialmente, o monitoramento cobre 47 cidades com mais de 200 mil habitantes e a ideia é estendê-lo para cidades com população a partir de 30 mil habitantes.

O GPS, por sua vez, é um sistema baseado em satélites que orbitam em torno da Terra e trocam sinais com aparelhos capazes de recebê-los – como os smartphones. Aqui também é empregada a técnica de triangulação, agora com satélites, para registrar o posicionamento dos aparelhos móveis a todo instante. A precisão gira em torno de 20 metros.

Fonte: Google COVID-19 Community Mobility Report

Desta forma, é possível criar gigantescos bancos de dados com o histórico da movimentação dos telefones – e seus usuários – ao longo do tempo. O Google utiliza os dados de localização coletados dos celulares para mostrar a variação da concentração de pessoas pelos diversos tipos de locais, como mercados, parques, escritórios e residências, antes e durante o período de isolamento social, produzindo relatórios estatísticos de mobilidade em mais de 130 países.

Uma nova tecnologia de localização foi desenvolvida pela empresa pernambucana In Loco. Segundo a empresa, trata-se de um módulo de software embutido em mais de 600 aplicativos que utiliza as tecnologias embarcadas nos celulares para descobrir onde eles se encontram e como se movimentam: wi-fi, acelerômetro, giroscópio e magnetômetro. Interpretando e combinando as informações geradas por estes recursos, o programa monitora a localização do aparelho com precisão de 2 a 3 metros.

A técnica é muito utilizada para enviar ofertas comerciais relevantes, considerando a proximidade do usuário aos pontos de venda. A empresa afirma que seu software está instalado em 60 milhões de aparelhos, que geram diariamente um volume de dados superior a 16 Terabytes. As informações capturadas pela In Loco estão sendo utilizadas para monitorar a concentração e o deslocamento da população brasileira. A empresa apresenta em seu site um mapa com o índice de isolamento por unidade da federação. Com base nesses dados, a prefeitura de Recife, capital de Pernambuco, monitora cada bairro da cidade e toma ações como o envio de viaturas com alto-falantes às regiões da cidade com maior movimentação, para alertar a população sobre a importância de aderir ao isolamento.

 

De pulseiras eletrônicas a alertas no celular

App Corona100, usado na Coreia do Sul para indicar que o usuário encontra-se num raio de 100 metros de onde esteve um potencial transmissor do vírus

Em várias regiões do mundo, diferentes tecnologias têm sido aplicadas com sucesso para monitorar e impedir a circulação de pessoas que tenham testado positivo para o coronavírus ou estejam em quarentena compulsória por terem visitado regiões com alta incidência de casos. O governo de Hong Kong criou pulseiras de rastreamento eletrônico para garantir que as pessoas em quarentena obrigatória não se afastem dos limites de suas residências. Sincronizada com um aplicativo no smartphone, a pulseira emite sinais transmitidos pelos recursos de rede disponíveis na residência do indivíduo. Caso a pulseira venha a ser detectada além dos limites da residência – ou seja, transmita sinais por uma rede diferente – um alerta é emitido para as autoridades.

O governo de Cingapura criou o aplicativo Trace Together, que usa sinais de bluetooth para rastrear a proximidade entre os dispositivos. A tecnologia bluetooth utiliza uma frequência de rádio de onda curta para criar uma comunicação entre aparelhos próximos entre si, já que seu alcance é curto, com baixo consumo de energia. Por razões de privacidade, o sucesso da iniciativa depende de adesão: as pessoas devem baixar o aplicativo e aceitar que ele se comunique com outros usuários do programa. Quando dois usuários se aproximam, cada smartphone recebe e armazena a chave de identificação anonimizada do outro.

O usuário que for testado positivo para o novo coronavírus deve permitir o uso pela autoridade de saúde das informações armazenadas em seu aparelho, para envio de mensagens de alerta aos usuários com quem ele teve contato. Com isso, os agentes de saúde podem identificar e contactar as pessoas que estiveram próximas de quem testou positivo para a Covid-19. Estima-se em 12% a taxa de adesão da população ao programa.

Apple e Google acabam de anunciar uma parceria para criar uma solução semelhante que possa ser adotada em qualquer país. A proposta é permitir que aparelhos das plataformas iOS e Android possam registrar e compartilhar entre si informações de proximidade, inicialmente por meio de aplicativos criados por autoridades de saúde, via API (Application Programming Interface), e em um segundo momento via bluetooth. Quando um usuário informar que foi infectado, os usuários com quem teve proximidade serão alertados, com seu consentimento, mas ele permanecerá anônimo. Recursos de geolocalização têm sido empregados com o mesmo objetivo em países europeus, em Taiwan e Israel.

 

Na trincheira da medicina

Outra frente fundamental é a da pesquisa para a criação de uma vacina contra o coronavírus e de terapias para a cura da Covid-19. A IBM firmou uma parceria com o governo dos Estados Unidos para disponibilizar seus supercomputadores a cientistas e pesquisadores no combate à Covid-19. O projeto apoiará os pesquisadores na análise da progressão da doença e no desenvolvimento de tratamentos ou de uma vacina contra o coronavírus, oferecendo recursos de computação de altíssimo desempenho para reduzir drasticamente o tempo de experimentos que executam cálculos complexos em epidemiologia, bioinformática e modelagem molecular.

A DeepMind, braço de inteligência artificial do Google, afirma que sua tecnologia pode ser utilizada para análises preditivas da estrutura de várias proteínas associadas ao SARS-CoV-2, o vírus que causa o Covid-19, e que ainda são pouco estudadas. Com isso, pretende contribuir com a pesquisa científica sobre o funcionamento do vírus, servindo como uma plataforma de geração de hipóteses para futuros trabalhos experimentais no desenvolvimento de terapias para a doença.

A inteligência artificial é um ramo da tecnologia que combina alta capacidade de processamento, grandes volumes de dados e algoritmos matemáticos sofisticados destinados a estudar e aprender padrões para imitar a inteligência humana na tomada de decisões. Em outra aplicação de inteligência artificial, o AliBaba, grupo chinês de e-commerce e tecnologia, desenvolveu um sistema para detectar o novo coronavírus em tomografias computadorizadas do tórax de pacientes que analisa as imagens e aponta o resultado em apenas 20 segundos, com 96% de precisão.

No Brasil, como em outros países, universidades e institutos de pesquisa empregam largamente a tecnologia de dados para o sequenciamento genético e o desenvolvimento de métodos de diagnóstico e tratamento. Teve grande repercussão o sequenciamento genético do primeiro caso do novo coronavírus detectado em São Paulo, feito no tempo recorde de dois dias por pesquisadores da Universidade de São Paulo e do Instituto Adolfo Lutz, em parceria com a Universidade de Oxford.

 

Big Data e qualidade dos dados

O já célebre site da Universidade John Hopkins cartografa a difusão geográfica da pandemia

Na internet, surgiram diversos painéis com estatísticas mundiais sobre a evolução da doença, com atualização dinâmica. Um dos mais populares é mantido pela Universidade John Hopkins, que tem recebido mais de um bilhão de acessos por dia. O painel é construído com base em dados capturados de diversas fontes, incluindo mídias sociais, Organização Mundial da Saúde, centros de controle e prevenção de doenças americano e europeu e órgãos de saúde ao redor do mundo. A coleta dos dados é feita por meio de web scraping, uma técnica de varredura e captura automática de dados na internet.

A unidade da Clínica Mayo no estado americano da Flórida colocou em operação quatro veículos autônomos que transportam material coletado em um local de testes de coronavírus no modelo drive-thru para o laboratório da clínica, sem a presença de nenhum atendente a bordo. O método proporciona rapidez e segurança para a equipe de profissionais. Veículos autônomos reúnem diversos tipos de tecnologia combinados, como sensores, câmeras, radares, GPS e inteligência artificial.

Tais iniciativas têm em sua base uma coisa em comum: todas dependem de um grande volume de dados, coletados de inúmeras fontes, nos mais variados formatos, cuja qualidade precisa ser aferida para servir como filtro de uso, o que é fundamental para proporcionar confiabilidade às análises e conclusões dos pesquisadores.

A qualidade de dados, de modo geral, é uma demanda presente em todas as atividades que utilizam informações em larga escala, sejam elas operacionais, analíticas ou de tomada de decisão. Para aprimorá-la, é preciso empregar técnicas adequadas e boas práticas em todo o ciclo de manipulação dos dados, desde sua coleta até a sua utilização, passando pela validação, padronização, consolidação e preparação para uso. Ter uma ideia clara da qualidade dos dados é imprescindível para se decidir qual é a melhor forma de utilizá-los e otimizar o resultado das tecnologias empregadas.

 

Privacidade e democracia

Com a manipulação intensa de tantas informações, uma discussão se impõe: como garantir a privacidade e a proteção de dados pessoais, em boa parte sensíveis, da população ao redor do mundo?

Leis e regulamentos recentemente estabelecidos, como o europeu Regulamento Geral de Proteção de Dados (GDPR), a Lei de Proteção dos Consumidores (CCPA), do estado americano da Califórnia, e a brasileira Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD), que ainda não entrou em vigor, garantirão a proteção de dados ora compartilhados entre tantas organizações e órgãos públicos?

Desenho da edição ilustrada de 1984, de George Orwell, publicada em 2014 pela Folio Society

São direitos humanos que estão em jogo. Na Alemanha, governo e oposição debatem sobre a conveniência do relaxamento da proteção dos dados pessoais durante a crise do coronavírus. Este relaxamento é admitido pelo Information Commissioner’s Office (ICO), autoridade independente do Reino Unido para defesa dos direitos públicos de informação, que considera não penalizar organizações por atrasos em atender solicitações de direitos de informação durante a pandemia.

No Brasil, tramita no Congresso Nacional um projeto para adiar até janeiro de 2021 a entrada em vigor da LGPD. O projeto já foi aprovado pelo Senado e deve agora passar por votação na Câmara dos Deputados.

Governos, instituições e empresas ao redor do mundo garantem respeitar as regras da proteção de dados pessoais, em conformidade com as leis e os regulamentos existentes. É bom lembrar que a tecnologia para a coleta de informações e a montagem de bancos de dados não foi criada agora. Com ou sem coronavírus, recursos tecnológicos para a proteção dos dados existem. Torná-la efetiva depende do compromisso e da conduta de cada organização.

O arsenal tecnológico que hoje temos à nossa disposição certamente será decisivo para que a humanidade encontre rapidamente uma solução para a pandemia, restaurando a normalidade para nossas vidas. Por outro lado, a própria urgência na busca desta solução servirá como forte impulso para o avanço da tecnologia neste momento.

Uma reflexão a se fazer é como podemos aproveitar da melhor forma o mundo que já é digital, enquanto as organizações ainda precisam adequar-se para tirar dele o máximo proveito, uma vez que muitos dos seus processos ainda se baseiam em tecnologias tradicionais, que não respondem na mesma velocidade. A transformação digital é o grande desafio dos nossos dias.

 

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