CONGO, A CHEGADA DOS CHINESES – MINÉRIOS

 

Víctor Daltoé dos Anjos & Elaine Senise Barbosa

(Víctor é geógrafo pela Universidade Federal de Santa Catarina e professor de Geografia em Florianópolis/SC e Elaine é editora-executiva do site 1948)
8 de junho de 2020

 

Instabilidade política, disputa por minérios, violência e repressão estatal marcaram a história da República Democrática do Congo (RDC) desde a sua independência, em 1960. O país, que passou por duas guerras sangrentas em menos de dez anos, não foi completamente pacificado depois do acordo entre as partes, de 2002. Segue como uma das áreas campeãs em violação de direitos humanos no mundo, um lugar onde o uso da violência sexual como arma de guerra é especialmente brutal.

Daquele acordo, saiu apenas o apoio a Joseph Kabila como sucessor de seu pai e presidente da RDC. Assim como seu pai e, antes, o ditador Mobutu, Kabila governou com mão de ferro enquanto enriquecia seu clã. Como um autocrata do século XXI, um político globalizado, seu poder se sustenta por intermédio de relações estreitas entre as empresas de sua família e os interesses do Estado.

A chegada da China à África, nesse mesmo período, reorganizou mais uma vez a geopolítica do continente, largamente ignorado pelo sistema internacional após o fim da Guerra Fria. A China iniciava sua expansão ao exterior ávida por minérios e alimentos – e pouco preocupada com os direitos humanos. Hoje, é o canto de sereia chinês que enfeitiça governos africanos.

 

Kabila e Xi Jinping

Joseph Kabila é recebido por Xi Jinping na China, em 2015. Grandes ditaduras, grandes negócios

Nesse 2020, quando se comemora os 60 anos da independência do Congo, apresentamos uma série em cinco partes sobre a história desse país tão importante quanto pouco conhecido. Buscaremos compreender como chegou-se a tamanha tragédia humanitária, pontuando os dilemas políticos enfrentados pelo Congo da colonização à atualidade.

Nesse percurso, analisamos a complexidade da questão étnica e como ela se mistura às disputas políticas. São questões centrais a serem solucionadas para que a sociedade congolesa possa se constituir como nação, ente civil de fato, e não só como Estado, ente de direito público, emanado da megalomania de um rei ambicioso. 

  1. Congo, no coração da África – Origens
  2. Congo, nacionalismo e ditadura – Zaire 
  3. Congo, o fim de uma era – Mobutu
  4. Congo, coração das trevas – Violência
  5. Congo, a chegada dos chineses – Minérios

 

NEGÓCIOS DA CHINA

No alvorecer do milênio, enquanto as potências ocidentais e a Rússia se retiravam do espaço africano deixando um vácuo de poder, a China, sem alardes e não sendo ainda a força que se tornaria rapidamente, foi chegando e oferecendo parcerias comerciais muito vantajosas.

Os governos africanos eram cobrados por reformas, democratização, transparência, respeito aos direitos humanos como pré-requisitos para obtenção de ajudas e financiamentos junto às instituições multilaterais como ONU, FMI, Banco Mundial e muitas outras. O governo comunista chinês adotou postura oposta, tratando tais temas como questão de “soberania”: nenhum governo estrangeiro deveria interferir na maneira como cada governo se relaciona com os cidadãos. Um argumento em causa própria, sem dúvida. 

A China promove seus acordos comerciais pelo mundo “vendendo” esse “diferencial”, muito mais vantajoso do que as imposições e cobranças feitas por potenciais parceiros ocidentais. Pequim anuncia um modelo de negociação “win-win”, no qual ambos os lados vencem. A promessa de não-ingerência fez brilharem os olhos de líderes como Kabila, no Congo, Meles Zenawi, na Etiópia, e diversos outros autocratas africanos.

 

Estratégia global

De acordo com um estudo publicado pelo Instituto Sul-Africano de Relações Internacionais, a estratégia chinesa contribui significativamente para a corrosão da hegemonia americana no mundo e tem ocorrido principalmente em dois eixos: na Ásia Central (“Belt and Road Initiative”) e na África. Só para se ter uma ideia do quanto a influência dos EUA recuou no Congo, o antigo aliado da Guerra Fria, hoje responde por meros 0,94% das exportações congolesas e 1,3% de suas importações. Já a China se tornou a maior parceira comercial do país, sendo responsável por 21% de suas importações e 45% das exportações.   

A questão adicional, quando se fala em China, é a percepção crescente de que o país comandado pelo Partido Comunista cresce, enriquece, e não dá sinais de democratização. No século XXI, estamos descobrindo que o capitalismo pode conviver bem com a falta de liberdade individual. Pelo contrário: a China vem empregando cada vez mais as novas tecnologias de controle para evitar contestações ao poder totalitário do aparato burocrático.   

O poder político chinês tem se caracterizado por adotar formas cada vez mais invasivas de intervenção política e vigilância sobre os governos de países africanos com os quais estabelece parcerias comerciais e de infraestrutura, numa evidência da enorme assimetria de poder presente nesses acordos. Um artigo da The Heritage Foundation mostrou que empresas chinesas participaram da construção e renovação de pelo menos 186 prédios governamentais na África, em alguns casos com a instalação de infraestruturas de comunicação baseadas em tecnologias de empresas como a Huawei. Seria a expansão dos mecanismos de espionagem do Estado chinês sobre suas novas esferas de influência? Na República Democrática do Congo foram construídos ao menos dois edifícios governamentais a partir desse modelo, segundo o estudo.

 

“O acordo do século”     

A partir de 2007, China e República Democrática do Congo tornaram-se parceiras na exploração da inesgotável riqueza mineral existente no subsolo do país africano, algumas delas estratégicas para a economia da quarta revolução industrial, baseada em inteligência artificial movida a baterias de lítio. Cobre, cobalto e coltan são primordiais para a produção desses componentes usados em smartphones, laptops e veículos.

O Congo é um alvo geopolítico de primeira magnitude. Ocupa posição estratégica, em plena África Equatorial; possui o segundo maior território do continente e a quarta maior população, de quase 90 milhões; 80 milhões de hectares de terras aráveis, das quais só se explora 10%; além de imenso potencial econômico escondido na área de floresta densa que margeia o rio Congo em seu terço final, na fronteira com a República Centro-Africana e o Congo-Brazaville

Mobutu e Mao

Mao Tsé-Tung recebe Mobutu Sese Seko na China, em 1973

A história das relações entre China e Congo começou na época da independência, quando Pequim patrocinou movimentos armados nas selvas do país, incluindo o do jovem guerrilheiro Laurent Kabila (1967), que mais tarde retribuiria mandando o filho Joseph receber instrução militar no país amigo. O ditador Mobutu se aproximou de Mao Tsé-Tung nos anos 1970 e até obteve financiamento para a construção do parlamento do Congo-Zaire (“Palácio do Povo”) e do estádio nacional. Depois, vieram duas décadas marcadas por grandes mudanças nos dois países e, então, o abraço de panda do amigo chinês.

Ele veio na forma de um acordo, anunciado por Kabila como o “acordo do século”, que teria o condão de promover a “revolução da modernidade”. O slogan sugeria um rápido processo de desenvolvimento e modernização a ser financiado pela maciça entrada de capitais provenientes da criação de uma joint-venture. O esquema concedia à China o controle sobre a produção mineral em certas áreas do país, especialmente na região de Katanga, onde estão localizadas algumas das maiores minas de cobre e cobalto do mundo.

O “acordo do século” é a roupa nova da velha sanha extrativista que se abate sobre o Congo, onde nem as pessoas nem o meio ambiente importam, apenas os ganhos obtidos pela mineração. A modernidade anunciada por Kabila já pode ser vista em grandes autoestradas que correm próximas à fronteira com a Zâmbia e seguem rumo aos portos. Mas elas servem apenas aos caminhões: os congoleses seguem pelas estradas de terra esburacadas.

 

Sicomines 

No início de 2008, implementando o “acordo do século”, o governo congolês firmou um consórcio com empresas chinesas, privadas e estatais, batizado Sicomines (Sino-Congolais des Mines). A joint-venture, formada com 68% de participação acionária chinesa, prevê investir US$ 6 bilhões no Congo. Metade seria destinada à infraestrutura e a outra metade, a projetos de mineração, principalmente de cobre e cobalto.

O acordo draconiano deixou sob controle chinês as decisões relativas a operações de produção, exportações, importações de equipamentos e uso de mão de obra chinesa nos empreendimentos. Nenhuma legislação trabalhista ou ambiental futura poderá alterar as regras inscritas em pedra. No núcleo da operação de investimentos estão os empreendimentos de mineração e cultivo de óleo de palma.

Os resultados não tardaram. Entre 2007 e 2018, a produção anual de cobre saltou de 200 mil para 1,2 milhão de megatoneladas. No mesmo intervalo, a produção de cobalto triplicou, passando de 30 mil para 90 mil megatoneladas anuais. Cada megatonelada equivale a um milhão de toneladas de mineral. Em 2015, o Congo ultrapassou a vizinha Zâmbia e se tornou o maior produtor de cobre do continente africano.

Kabila visita Sicomines

Kabila é recepcionado em instalação da Sicomines, em 2018

 

Patrimonialismo

Joseph Kabila tornou-se presidente com apenas 29 anos  porque foi conveniente a todos os envolvidos na Segunda Guerra do Congo que a transição se desse rapidamente e, na estrutura pouco democrática daquela sociedade, ser filho do líder que deixava o poder representou credencial suficiente. O Acordo Global e Inclusivo de Paz, de 2002, confirmou-o presidente até que eleições fossem realizadas, o que aconteceu em 2006.

Kabila foi eleito num pleito cercado de controvérsias. Com o acordo de paz numa mão e o argumento do voto popular na outra, podia reivindicar-se legítimo líder da República Democrática do Congo. Assim como Mobutu, o jovem presidente procurou resgatar o discurso da unidade nacional em resposta às divisões existentes no país. O acordo com a China foi a cereja no bolo de uma imensa riqueza que ele e sua família trataram de explorar em benefício próprio.

Os contratos governamentais impulsionaram as empresas do clã presidencial. Os Kabila investiram em empresas ligadas à mineração e às telecomunicações, mas também em companhias aéreas e bancos. Além disso, tornaram-se proprietários de terras em larga escala. Controlando tamanha riqueza, o presidente organizou sua rede de patronagem, compartilhando poder e riqueza com seus na elite política, frequentemente envolvida com a violência armada regional e o clientelismo tribal que, supostamente, o governo central deveria combater.

 

Quis o destino que a área de maior interesse para os chineses fosse a província de Katanga, exatamente de onde provém a família Kabila e onde se concentram seus investimentos. Em Katanga está o imenso cinturão de jazidas de cobre do planalto de Shaba, que se estende pelo território da Zâmbia. Em 2010, 80% das empresas de processamento mineral na região pertenciam a companhias chinesas e 90% dos minerais extraídos eram exportados para a China.

Obrigado a aceitar a realização de eleições, Kabila montou sua base eleitoral na província. Não demorou muito para que ministérios importantes, como mineração, infraestrutura, defesa e finanças fossem aparelhados pelos parceiros katangueses do clã presidencial.

Uma reforma administrativa e territorial das províncias congolesas, prevista desde 2006, foi efetivada somente em 2015. Sob o argumento de descentralizar o poder, a fragmentação das províncias destinava-se a acomodar os interesses das elites regionais, mas também das diferentes milícias, permitindo a cada ator encontrar seu lugar no grande condomínio da pilhagem institucionalizada do país. A nova divisão territorial, batizada découpage produziu uma colcha de retalhos e, no caso de Katanga, serviu muito bem para separar os distritos diretamente explorados pelos chineses daqueles controlados mais efetivamente pelo clã de Kabila.  

Mapa Nova divisão territorial do Congo

 

Sem oposição

Quanto mais se aproximava da China, menos pressão externa Kabila sentia para dar continuidade ao processo de democratização da sociedade. Pelo contrário, desde o início silenciou opositores, com perseguição e repressão especialmente duras contra jornalistas e defensores de direitos humanos. Os serviços de inteligência, a polícia, as Forças Armadas e a Guarda Republicana foram instrumentos da dura repressão que se abateu contra qualquer forma de oposição.

Suas duas eleições, em 2006 e 2011, foram contestadas e serviram de pretexto para a ressurgência de revoltas armadas no sempre conturbado leste, enquanto o governo fechava emissoras de televisão e desligava o sinal de internet. O aumento da repressão nos últimos anos de seu governo correspondeu ao crescimento da atividade oposicionista no país, enquanto sua antiga coalizão exibia fissuras. O segundo mandato terminaria em dezembro de 2016, mas Kabila manobrou a lei e assegurou sua permanência até a eleição de janeiro de 2019, provocando intensos protestos.

 

QUESTÃO DE ORDEM

Há praticamente 30 anos a história da República Democrática do Congo é refém das questões políticas relacionadas aos vizinhos orientais, Ruanda, Uganda, e em menor grau, Burundi. O capital internacional do setor da mineração é outro personagem oculto, mas de grande influência no desenrolar dos acontecimentos. Essas interferências alimentam o ambiente de crise política e instabilidade permanente que têm produzido ditaduras corruptas em série e ajudam a transformar o país em um campeão de violação dos direitos humanos.

Bahirize

Floribert Chebeya Bahirize (1963-2010), um dos líderes na defesa dos direitos humanos no Congo, integrante da organização La Voix des Sans Voix (A Voz dos Sem Voz), foi encontrado morto em junho de 2010 após ser convidado a visitar a sede da polícia em Kinshasa, segundo denúncia da Human Rights Watch

Enquanto Kabila falava em “revolucionar a modernidade”, os congoleses continuavam sob a mira da guerra entre as milícias. Os dois últimos anos de seu governo, 2017 e 2018, foram palco do agravamento da crise humanitária nas províncias do leste, produzindo algo entre 1,5 milhão e dois milhões de deslocados internos.

Um informe da Human Rights Watch listou ao menos 130 grupos armados ativos em 2019, principalmente nos Kivus do Norte e do Sul e em Ituri. A destruição causada pela guerra permanente transformou essas regiões no epicentro da epidemia de ebola iniciada em agosto de 2018. Até abril de 2020, a taxa de mortalidade por ebola na área era de quase 70%.

Os dados obtidos pela Human Rights Watch, contudo, indicam que o aumento da violência nessas regiões nos últimos anos não está diretamente relacionado às áreas mineradoras, onde ocorrem apenas 20% desses incidentes violentos. Isso indicaria uma diversificação dos focos e das fontes de renda das milícias, que enfrentam dificuldades crescentes de atuação nas áreas controladas pelos chineses.

Agora os grupos mayi-mayi se concentram na produção e venda de carvão, na caça, em sequestros e na cobrança de taxas sobre a circulação de bens e pessoas. Esse deslocamento dos negócios, extremamente relevante, pode sinalizar o caminho dos futuros distúrbios. Porque dificilmente eles crescerão em área “chinesa”.

 

Um Congo reconciliado?

Tshisekedi e Kabila

Félix Tshisekedi é o primeiro presidente da RDC a receber a faixa do antecessor, Joseph Kabila

Félix Antoine Tshisekedi Tshilombo venceu as eleições de dezembro de 2018, também cercadas por fortes controvérsias, e assumiu a presidência do Congo em janeiro de 2019, na primeira transição pacífica de poder na história do país.

No seu discurso de posse, Tshisekedi dedicou um “instante privilegiado” a louvar uma linhagem que começava com Lumumba mas passava por Mobutu e os dois Kabilas. Os três últimos governantes, nomes ligados ao autoritarismo e à corrupção, eram assim alçados à condição de patronos da unidade nacional.

Tshisekedi decretou, no terceiro mês  de mandato, um perdão a 700 prisioneiros, inclusive lideranças políticas de oposição a Kabila. O discurso de posse e o perdão talvez indiquem a intenção de pacificar o país e superar o passado de intermináveis conflitos sectários. Há, ainda, o temor de confrontar a elite política ligada ao ex-presidente, que controla o maior grupo parlamentar e os principais governos provinciais. Daí o cuidado em exaltar todas as partes, que sustentam suas influências por meio tanto das forças armadas oficiais quanto das diversas milícias atuantes no país.

A guerra, ao que parece, está longe de acabar…

 

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