Os países da África foram capturados pela dinâmica da Guerra Fria no momento em que se tornavam independentes e suas populações, agrupadas territorialmente em fronteiras inventadas pelos europeus, foram chamadas a se organizar como sociedades nacionais. Logo, o continente tornou-se palco de uma competição por esferas de influência que envolveu as duas superpotências rivais e, ainda, as antigas potências coloniais. Os atores externos selecionaram governos africanos aliados, não se importando em dar sustentação a tiranos de todo o calibre, desde que a “estabilidade” e a “paz” fossem mantidas nas áreas consideradas estratégicas por razões econômicas ou políticas.
É sobre esse pano de fundo que se desenrola o drama congolês, com o governo cleptocrático de Mobutu Sese Seko passando da fase da fantasia da união mobutista para a repressão explícita e brutal a qualquer forma de oposição política. O regime do Zaire logo entraria para a lista de sistemáticos violadores dos direitos humanos. A mudança deveu-se a dois fatores. De um lado, o encerramento da Guerra Fria, no início dos anos 1990, provocou a reorganização do tabuleiro político internacional, com a costura de novas alianças na África. De outro, o envelhecimento do ditador, que fazia crepitar as disputas sucessórias de bastidores entre os generais que o serviam.
Mas o principal terremoto a atingir o país veio de fora, dos vizinhos Burundi e Ruanda, países marcados por conflitos étnicos importantes. O genocídio de Ruanda, em 1994, destruiu a já frágil estabilidade do Zaire. A fuga de quase dois milhões de pessoas para o Zaire acabaria provocando a internalização do conflito entre tutsis e hutus e o ataque das forças militares ruandesas, que se aliaram a chefes políticos locais já insatisfeitos com o regime. Em 1997, Laurent-Désiré Kabila, um desses chefes, ocupou Kinshasa pondo fim à era do “Rei do Zaire”.
Laurent Kabila, um chefe de guerrilha, foi capaz de derrubar Mobutu graças ao apoio do governo tutsi de Ruanda
Nesse 2020, quando se comemora os 60 anos da independência do Congo, apresentamos uma série em cinco partes sobre a história desse país tão importante quanto pouco conhecido. Buscaremos compreender como chegou-se a tamanha tragédia humanitária, pontuando os dilemas políticos enfrentados pelo Congo da colonização à atualidade.
Nesse percurso, analisamos a complexidade da questão étnica e como ela se mistura às disputas políticas. São questões centrais a serem solucionadas para que a sociedade congolesa possa se constituir como nação, ente civil de fato, e não só como Estado, ente de direito público, emanado da megalomania de um rei ambicioso.
Desde a década de 1980 o sistema bipolar da Guerra Fria dava sinais de esgotamento. Na África, os regimes ditatoriais, contestados interna e externamente, começaram a desmoronar. A crise econômica e o endividamento corroeram o modelo de Estado intervencionista e desnudaram os gigantescos mecanismos de corrupção que enriqueciam seus líderes enquanto atiravam suas populações à miséria. Para piorar, as reformas liberalizantes sugeridas pelo Ocidente a partir dos anos 1990 reforçaram o patrimonialismo e a concentração de renda, ampliando as desigualdades sociais.
Nesse período, a África tornou-se a filha enjeitada da ordem internacional. Antigos líderes, considerados heróis da luta pela independência, transformaram-se em chefes impopulares e foram rejeitados. É o que ocorreu com Leopold Senghor (1960-1980), do Senegal; Julius Nyerere (1961-1985), da Tanzânia; e Sekou Touré (1958-1984), da Guiné. Nos anos 1990, as superpotências já não tinham mais interesse em sustentar regimes distantes e caóticos. Assim, caíram Mengistu Mariam (1977-1991), da Etiópia, e Kenneth Kaunda (1964-1991), da Zâmbia, antes sustentados pelo bloco soviético; e, no lado oposto, Houphouët-Boigny (1960-1993), da Costa do Marfim, e o próprio Mobutu.
No governo de Bill Clinton (1993-2001), os EUA começaram a apostar em uma nova geração de líderes africanos. Meles Zenawi, da Etiópia; Isaias Afwerki, da Eritreia; Yoweri Museveni, de Uganda; e Paul Kagame, de Ruanda, despontaram como símbolos dessa promessa. O apoio aos dois últimos se mostrou intenso; no caso de Ruanda, aparentemente como forma de compensar a inação frente ao genocídio. Perder o apoio do “amigo americano” enfraqueceu a resistência de Mobutu.
A transição para o multipartidarismo, anunciada por Mobutu em 1990, foi um enorme fracasso. A pressão pouco convicta de Estados Unidos, França e Bélgica pela democratização do Zaire permitiu que o ditador barrasse o processo via corrupção e manipulação de rivalidades regionais. Tentativas de organizar uma oposição pacífica resultaram em prisões arbitrárias e detenções, como a de Étienne Tshisekedi, um dos principais políticos do país, um Luba da província de Shaba (antiga Katanga).
Como os Luba são originários da região do Kasai, o regime lançou mão da velha tática de cooptar lideranças não-Luba para cindir a oposição. Em 1991, o governador da província conclamava a população a reagir contra os “insetos” – como ele se referia às pessoas provenientes do Kasai. Foi atendido pela Juventude da União dos Federalistas e Republicanos Independentes (JUFERI), que passou a perseguir kasaianos promovendo deslocamentos forçados, ameaças e assassinatos, especialmente contra os Luba.
Inúmeros casos de tortura, execuções extrajudiciais e prisões arbitrárias foram denunciados pela Anistia Internacional.
O mundo descobriu a existência de Ruanda e Burundi quando, entre abril e julho de 1994, 700 mil pessoas foram assassinadas em Ruanda. A chegada massiva dos refugiados agravou a já instável situação no Zaire, onde também viviam tutsis e hutus, muito antes do genocídio. A politização das identidades étnicas provocou o entrelaçamento com os problemas do vizinho e cruzou fronteiras.
No período colonial, tutsis de Ruanda foram levados pelos belgas para trabalhar no vizinho Congo, nas províncias do Kivu do Norte e Kivu do Sul. Ficaram conhecidos como Banyamulenge e, quando da independência, receberam a cidadania congolesa.
As tensões entre hutus e tutsis em Ruanda e Burundi tiveram reflexos diretos no leste do Zaire, para onde corriam as vítimas de massacres em seus países. Cerca de 250 mil tutsis deslocaram-se de Ruanda apenas em 1959; milhares de hutus chegaram do Burundi entre 1972 e 1978. Esses refugiados ficaram conhecidos como Banyarwanda e não obtiveram cidadania.
Para os zairianos, de modo geral, tanto fazia: na esteira do nacionalismo mobutista eram todos “estrangeiros”. Na região dos Kivus, Mobutu favoreceu a minoria Banyamulenge, na expectativa de usá-los contra forças de oposição. O efeito foi provocar mais tensão, especialmente no Kivu do Norte, onde os “nacionais” acusavam os “estrangeiros” de terem ocupado “suas terras”.
Mobutu deu, então, meia-volta e, em 1981, o Parlamento do Zaire aprovou uma lei negando cidadania indistintamente a Banyamulenges e Banyarwandas e falando em extradição. Apesar de não ter sido aplicada, a lei instalou um foco de desconfiança que alimentava ressentimentos recíprocos, principalmente entre os tutsis Banyamulenge.
Desde 1981, Mobutu apoiava o regime ruandês de Juvenal Habyarimana, um supremacista hutu, e fazia vista grossa à violência cotidiana que os tutsis sofriam no Kivu. Na década seguinte, sem surpresa, os Banyamulenge se uniriam à Frente Patriótica Ruandesa (FPR), um exército de tutsis em luta contra o regime de Habyarimana.
O genocídio de Ruanda, praticado pelos hutus contra os tutsis, só teve fim quando a FPR ocupou a capital, Kigali, derrubando o governo hutu. Em desespero, uma maré humana de aproximadamente dois milhões de hutus, temerosos pela retaliação, se lançou em direção ao Zaire, desencadeando uma dramática crise humanitária.
Já havia alguns anos que jovens tutsis do Kivu estavam se unindo à FPR e a adesão se intensificaria depois do genocídio. Em resposta, os hutus residentes dos Kivus, passaram a se definir como “nativos”, acusando os Banyamulenge de não serem leais ao Zaire. Entre 1993 e 1996, jovens das etnias Hunde, Nande e Nyanga, do Kivu do Norte, atacaram regularmente os Banyamulenge deixando 14 mil mortos.
Por isso, a chegada dos refugiados hutus foi vista como uma nova ameaça à segurança dos Banyamulenge, ainda em choque com as notícias do genocídio. Ao mesmo tempo, em Ruanda, o recém-estabelecido governo tutsi da FPR lhes oferecia um novo lar. O leste do Zaire tinha sido incorporado, definitivamente, ao teatro de conflito ruandês entre tutsis e hutus.
As cidades de Goma e Bukavu, capitais do Kivu do Norte e do Sul, receberam boa parte dos refugiados hutus, instalando-os em campos em Kibumba, Katale e Mugumga, onde epidemias logo se instalaram. Com o calor, a falta d’água e a grande densidade demográfica, o número de vítimas era alto. No primeiro mês, julho de 1994, a organização Médicos Sem Fronteiras estimou em 14 mil o número de vítimas da cólera.
Em meio ao caos da maré de fugitivos famintos, tanto tutsis quanto hutus foram atacados nos Kivus, sob a acusação de serem agentes de Estados estrangeiros. De modo geral, as Forças Armadas Zairenses pouco fizeram para impedir esses massacres. Pelo contrário, o exército de Mobutu foi uma parte bastante brutal dessa guerra, com resultados reportados pela Anistia Internacional e sintetizados em listas de massacres com milhares de mortos.
Refugiados hutus chegando a Goma, capital do Kivu do Norte em 1994. Ao fundo, caminhões pipa abastecem os campos com água potável. A água não-tratada era uma das causas da epidemia de cólera que, junto com a disenteria, ceifou milhares de vidas
Em 1995, o parlamento do Zaire ordenou o repatriamento de todos os que tivessem origem ruandesa ou burundiana, não importava há quanto tempo estivessem no país. Nos primeiros meses de 1996, os Banyamulenge restantes foram expulsos para o campo de refugiados de Gisenyi.
O Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR) elaborou, à época, um relatório dos massacres nos Kivus cometidos contra e por Banyarwandas e Banyamulenges. Nos anos seguintes, o número de mortos por execuções suplantaria o de doentes e, com a eclosão da guerra civil, os campos de refugiados foram transformados em alvos nas zonas de batalha. Nenhum lado ficou bem na foto.
Boa parte dos que chegavam eram hutus, que temiam as represálias após o genocídio contra os tutsis. Entre eles, contavam-se cerca de 20 mil soldados das antigas Forças Armadas de Ruanda, além de incontáveis integrantes da milícia Interahamwe, ferramenta principal do genocídio. Não demorou para os homens da Interahamwe se reorganizarem e começarem a arregimentar combatentes nos campos de refugiados. Dali, pretendiam lançar ataques-surpresa contra o território de Ruanda, com o apoio das Forças Armadas Zairenses.
As Nações Unidas desempenharam um triste papel naquele drama. O ACNUR tomou a fatídica decisão de reconhecer os extremistas hutus como líderes dos campos de refugiados e deu a eles o controle da distribuição de alimentos. Isso garantiu que os militares permanecessem bem alimentados e em boa forma, e lhes deu um controle considerável sobre os vastos campos que logo foram transformados em bases armadas para continuar a guerra contra o novo governo instalado em Ruanda.
O reestruturado exército ruandês, agora controlado pela FPR, começou a incursionar clandestinamente em território zairiano para abafar os ataques, enquanto milícias Banyamulenge atacavam os homens da Interahamwe. A caça se dava nos campos de refugiados.
A violência foi tal que a Médicos Sem Fronteiras se retirou da área no fim de 1995. Os refugiados ficaram, então, sem qualquer ajuda. Enquanto isso, Mobutu falava na televisão contra os “estrangeiros” que “enfraqueciam” o Zaire, alimentando a xenofobia que eclodia nas cidades, com agressões e expulsões de tutsis e hutus.
Em 1995, o governo ruandês de Paul Kagame estabeleceu três metas ambiciosas: a destruição dos campos de refugiados hutus nos países vizinhos e sua repatriação; a caça à Interahamwe; e a derrubada do regime de Mobutu.
Para realizar tal projeto, o governo ruandês se aliou ao veterano rebelde zairense, Laurent-Désiré Kabila, que fomentava a oposição armada a Mobutu na área do Kivu do Sul desde 1960. Kagame colocou à sua disposição um exército tutsi arregimentado dos dois lados da fronteira. Assim formou-se a Aliança das Forças Democráticas pela Libertação do Congo-Zaire (AFDL), em outubro de 1996.
Começava a denominada Primeira Guerra do Congo (1996-1997). Embora as operações militares tenham se concentrado no território do Zaire, o conflito envolveu os países vizinhos, com repercussões importantes em Uganda e Sudão. Burundi, Eritreia, Uganda e Angola apoiavam o novo governo ruandês e aderiram à invasão, enquanto Mobutu contava com suas tropas e o apoio do Sudão.
Fonte: The Economist
A marcha da AFDL em direção a Kinshasa foi marcada por execuções em massa de refugiados hutus, acusados de colaborarem com a Interahamwe. Torturas, estupros, repatriação forçada e recrutamento de crianças estão no rol das violações de direitos humanos praticadas sistematicamente como armas de guerra.
Rapidamente, centenas de milhares de refugiados e deslocados internos se dispersaram em meio à guerra civil. Muitos tentavam voltar para seus países de origem, onde sofreriam retaliações e de onde voltariam a fugir, se espalhando pelo Zaire, Angola, República Centro-Africana e República do Congo.
As Forças Armadas do Zaire, na defensiva, também promoveram massacres contra civis. Foram reportados inúmeras acusações de tortura e estupros, revelando uma das faces mais terríveis do conflito: a violência sexual como arma de guerra.
A Primeira Guerra do Congo deixou estimados 300 mil mortos. Segundo o Escritório do Alto Comissário das Nações Unidas para Direitos Humanos (OHCHR), pelo menos 238 incidentes de graves violações ocorreram durante o conflito, marcando os dois anos mais violentos de todas as guerras em solo congolês.
A maior parte das forças leais a Mobutu estava concentrada em Kinshasa e arredores: cerca de três mil soldados da Divisão Especial da Presidência, além de ex-soldados da angolana UNITA e ex-soldados e milicianos hutus.
Ainda houve tempo para um encontro entre Mobutu e Kabila, em 4 de maio de 1997, mediado por Nelson Mandela, para negociar um acordo. Nada feito, o efetivo militar do desafiante era muito superior. Dez dias depois, em um segundo encontro, Kabila deixou Mobutu esperando…
A AFDL de Kabila conseguiu tomar Kinshasa em 17 de maio de 1997. Um massacre foi evitado quando os generais mais próximos a Mobutu aconselharam-no a não resistir, pois não poderiam garantir sua segurança. Vencido, o ditador octogenário partiu para o exílio, onde imaginava que desfrutaria de toda a riqueza que desviou dos cofres do país.
No fim das contas, o “rei do Zaire” falhou em entender a determinação dos tutsis em perseguir os assassinos de seu povo e proteger o poder que agora exerciam. Da mesma forma, Mobutu não conseguiu entender o quanto o mundo havia mudado – e como a França e os EUA não mais protegeriam seu regime apodrecido.
No final de maio, Kabila prestou juramento como presidente da República, contando com a presença de representantes de Angola e Zimbábue. Seu primeiro ato foi restaurar o nome República Democrática do Congo.
Na mesma noite, autocraticamente, assumiu completa autoridade legislativa e executiva, até que uma nova Constituição fosse adotada, desprezando toda a negociação anterior pactuada com diversos grupos políticos que haviam combatido o governo deposto. Foram tornadas ilegais todas as organizações políticas, exceto a AFDL. Em uma semana, voluntários da Cruz Vermelha recolheram mais de 318 corpos espalhados pela capital e seus arredores.
Apesar da frustração, muitos preferiram dar um tempo para ver que mudanças efetivamente o novo governo traria. Logo iriam se frustrar…
Laurent Kabila e suas tropas, a verdadeira fonte do poder
Kagame, então vice-presidente de Ruanda, imaginava Kabila como seu homem em Kinshasa, um instrumento para esmagar os extremistas hutus e proteger as fronteiras ruandesas. Mas Kabila provou ser menos fantoche do que o governo ruandês esperava e enfureceu seu antigo padrinho ao não só demonstrar pouco empenho em perseguir os genocidas hutus como também ao oferecer-lhes abrigo entre suas tropas.
Estavam criadas as condições para uma nova guerra. Em 1998, forças ruandesas invadiriam o Congo pela segunda vez.
Audiovisual:
Δ
Quem Somos
Declaração Universal
Temas
Contato
Envie um e-mail para contato@declaracao1948.com.br ou através do formulário de contato.
1948 Declaração Universal dos Direitos Humanos © Todos os direitos reservados 2018
Desenvolvido por Jumps