Narendra Modi, primeiro-ministro da Índia, com Donald Trump
As gotas de ódio religioso ficaram além do perímetro da festa estatal. Na arena de cricket da cidade de Ahmedabad, no estado de Gujarat, o primeiro-ministro indiano Narendra Modi reuniu 100 mil espectadores para uma triunfal recepção a Donald Trump, no final de fevereiro.
Simultaneamente, a 800 quilômetros dali, em Delhi, a capital, um segundo dia de confrontos entre hindus e muçulmanos deixou saldo de 13 mortos. A contabilidade trágica se elevaria, nos dias seguintes, para perto de 40.
A Índia tem uma longa, trágica história de confrontos sectários. Mas, há muitos anos, não se via nada parecido com essas batalhas de rua de Delhi. As cenas de violência que irromperam em periferias pobres da capital reavivaram as memórias de 1984 e 2002.
A mais antiga: o massacre de quase 3 mil pessoas em motins contra a minoria religiosa Sikh após o assassinato da primeira-ministra Indira Ghandi por seus guarda-costas Sikhs. A mais recente: mais de mil pessoas, quase todos muçulmanos, morreram em motins provocados pelo incêndio de um trem que vitimou peregrinos hindus em Gujarat. A Corte Suprema de Delhi declarou que não permitirá “outro 1984”. Os motins em curso, contudo, têm semelhança maior com os eventos de 2002.
Modi, o chefe de governo nacionalista hindu, era o primeiro-ministro do estado de Gujarat em 2002. Uma reportagem do jornal britânico The Guardian, entre várias outras, apontou os fortes indícios da mão dos governantes estaduais nos ataques a muçulmanos. Provas de instruções de políticos ligados a Modi e de policiais aos líderes dos motins emergiram no rastro dos inquéritos. No fim, a Corte Suprema encerrou o caso alegando inexistirem evidências conclusivas.
A carreira política de Modi começou na RSS (Organização Nacional Patriótica), uma organização radical hindu, e decolou no Bharatiya Janata Party (BJP), o grande partido nacionalista hindu. Os motins de 2002 iniciaram-se depois de seu discurso sobre o incêndio do trem de peregrinos, que ele classificou como um ato terrorista promovido por muçulmanos. Ao dirigir a acusação contra uma comunidade religiosa inteira que forma quase 15% da população indiana, o governante incitava a violência. Agora, uma vez mais, ele carrega a responsabilidade política pelos sangrentos conflitos.
Há cinco anos, no estado oriental de Assam, o governo indiano iniciou a atualização do Registro Nacional de Cidadãos (RNC). Envolta sob o manto de ato meramente administrativo, a iniciativa tem a finalidade de revogar a cidadania de milhões de muçulmanos indianos. A campanha discriminatória atinge os muçulmanos pobres, que carecem de certificados de nascimento na Índia e, por isso, correm o risco de serem rotulados como imigrantes ilegais.
Motins em Delhi, 26 de fevereiro de 2020
A extensão do novo RNC para toda a Índia deflagrou os protestos de muçulmanos de Delhi – e, como reação, os motins anti-muçulmanos que acompanharam a visita de Trump. Mais uma vez, como em Gujarat, a responsabilidade política é do governo de Modi.
As turbas atacaram lojas, veículos e mesquitas, ateando fogo a tudo que pertence aos muçulmanos. Não agiram espontaneamente, mas seguiram os chamados de autoridades e políticos do BJP que descreveram como “sedição” os protestos dos muçulmanos. Repórteres em diferentes locais de Delhi informam que os agressores beneficiaram-se da inação das forças policiais.
Em meio à explosão de ódio religioso, destacaram-se gestos de bravura anônima. Mohinder Singh, um Sikh, e seu filho Inderjit, usaram suas motocicletas para, durante horas, transportar vizinhos muçulmanos ameaçados a lugares seguros, longe de suas casas. “Fizemos isso para honrar a humanidade”, explicou o pai. Simetricamente, registraram-se casos em que vizinhos muçulmanos protegeram hindus das ondas de violência recíproca.
O ódio religioso não nasce do nada, mas é cultivado na estufa da política. Modi e seu BJP rezam pela cartilha da “nação hindu”, ou seja, por uma redefinição fundamental da natureza da Índia. Segundo a ideologia que professam, a Índia pertence aos hindus – e as minorias religiosas não passam de estrangeiros instalados no país.
O voto confessional impulsiona a carreira dos nacionalistas do BJP. Para alimentá-lo, o governo conduz a campanha do novo RNC e, paralelamente, abole a autonomia da região contestada da Caxemira, de maioria muçulmana.
Índia e Paquistão nasceram da cisão da Índia britânica, na hora da dupla independência, em 1947. A primeira definiu-se como Estado laico, fundado na igualdade política dos cidadãos. O segundo definiu-se como Estado muçulmano e nomeou-se República Islâmica do Paquistão. A meta final do BJP é reformar a Constituição secularista da Índia para converter o Estado indiano numa imagem espelhada do Estado paquistanês.
A cisão de 1947 provocou uma onda imensa de perseguição a hindus no Paquistão e de muçulmanos na Índia. A partição em linhas religiosas desalojou algo como 10 milhões de pessoas nos dois países. Milhões de perseguidos transferiram-se para o país vizinho. Mais de um milhão de pessoas morreram enquanto fugiam das violências. A política estatal envenenou as relações entre as comunidades religiosas que, antes, conviviam. Modi semeia o ódio em terreno marcado por cicatrizes profundas.
Os motins de Delhi começam a amainar. Mas suas fontes não secaram. A violência religiosa faz parte da estratégia de poder dos atuais governantes indianos. Eles acenderão novas fogueiras.
A pintura anônima de um homem caído durante os motins de Delhi apareceu no Twitter
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