COMO MORRE A DEMOCRACIA TURCA

 

Kamil Ergin

(Jornalista turco, integrante do Hizmet, vive no Brasil desde 2007 e dirige o portal noticioso Voz da Turquia)
27 de maio de 2019

 

O pouco que resta da democracia turca vive seus estertores. No 23 de junho, quando se repetem as eleições municipais em Istambul, o presidente Recep Erdogan tentará promover seu enterro.

Em janeiro de 2018, dois professores de Harvard, Steven Levitsky e Daniel Ziblatt, publicaram um livro intitulado Como as democracias morrem. Esperava-se que as democracias terminassem com revolução ou golpe de Estado. Mas, hoje, as democracias declinam pelo envenenamento dos populismos. Segundo os autores, a pedra angular da democracia é o respeito ao pensamento político oposto. A destruição do respeito é o primeiro inimigo da democracia. O lento e constante desgaste das principais instituições – parlamento, judiciário e imprensa – anda de mãos dadas com o desrespeito.

Há dez anos, graças à estabilidade socioeconômica, a Turquia destacava-se no cenário internacional e nas suas iniciativas diplomáticas, onde atuava como mediador. Entre os países emergentes, foi elogiada por seu futuro brilhante. Com sua identidade democrata-muçulmana, o país foi visto como modelo para outros países muçulmanos. Hoje a Turquia é um grande laboratório para aqueles que querem entender como as democracias morrem. Para compreender o ponto em que a Turquia chegou, é necessário rever a mudanças políticas na região na última década.

 

A Primavera Árabe e a questão síria

Em 2010, no Forum de Davos, o presidente Erdogan alcançou a fama no universo islâmico pela polêmica que travou com o então primeiro-ministro israelense Ehud Olmert – e aproveitou o evento para atingir um alvo político. Acreditando que poderia tornar-se o novo “califa” do mundo islâmico, exibiu-se como um “salvador” nas capitais dos países árabes.

O Dolmabahce, palácio dos seis últimos sultões turcos, às margens do Bósforo, em Istambul. Erdogan sonha concentrar poderes de um novo sultão

O Dolmabahce, palácio dos seis últimos sultões turcos, às margens do Bósforo, em Istambul. Erdogan sonha concentrar poderes de um novo sultão

A Primavera Árabe gerou um ambiente propício para Erdogan alcançar seu objetivo. Articulando alguns projetos agressivos, ele gradualmente mudou sua diplomacia e linguagem conciliatória, adotando um perfil de valentão. Dali em diante, foi declarado persona non grata em Israel, Egito, Síria, Iraque, Rússia, Holanda, Alemanha e Estados Unidos.

Erdogan operou na Primavera Árabe pela interferência direta na questão síria. No lugar de tentar reconciliar os grupos em conflito por meio de diálogo, ele apoiou a oposição, a fim de estabelecer um Estado-satélite em Damasco. Quando a tensão se transformou em guerra civil, ficou preso entre dois grandes poderes: Rússia e EUA. Daí, foi criticado pelo apoio aos grupos extremistas e classificado como “parceiro não confiável” pelos países aliados.

 

O “inimigo interno”

Governos autoritários assumem o controle das instituições que protegem a democracia. O controle se expande pela colonização partidária das instituições com funções de investigação e legislação, nos tribunais e na polícia. Diante das tendências cada vez mais autoritárias de Erdogan, seu governo foi alvo de manifestações de grandes massas, nas praças, no verão de 2013. Os protestos foram dissolvidos pela repressão e ele prometeu vingança.  

Logo depois, a revelação de um grande escândalo de corrupção que envolvia o presidente e sua família o empurrou a um beco sem saída. Então, Erdogan tomou a Justiça como refém e abafou as acusações. Naquele momento, escolheu o movimento Gulen como bode expiatório, classificou-o como “inimigo do Estado” e impôs a sua vontade sobre a sociedade e o sistema político. A acusação de “gulenista” foi aplicada a todos os que ele considerava uma ameaça a seu poder.

Nesse período, foram assediadas figuras-chave como proprietários de veículos de mídia, poderosos empresários, políticos de oposição e líderes culturais. Alguns foram comprados, alguns processados, alguns foram assustados ou silenciados com fiscalizações. A imprensa foi amplamente censurada e o acesso à informação foi restrito. Na fase final, o poder da oposição foi severamente restringido com novos decretos, alterações de leis eleitorais e a emenda de reforma constitucional. Erdogan conseguiu mudar o regime através de referendo, estabelecendo o “presidencialismo ao estilo turco”, um nome fantasia para autocracia.

Gulenistas foram presos e suas instituições foram confiscadas. Ao mesmo tempo, outros grupos políticos foram cooptados para o Executivo. No final dessa trajetória, que durou três anos, o presidente concentrou poderes excepcionais e criticá-lo passou a ser considerado um crime.

 

Fethullah Gulen e o Hizmet

Fethullah Gulen é um turco, muçulmano, literato, pensador, escritor, poeta, líder de opinião, ativista pela educação. Ele fundou e inspirou o movimento cívico-social Hizmet, que hoje se espalha por todo o mundo, comprometido com a educação, o diálogo, a paz, a justiça e harmonia social.

Em março de 1999, por recomendação médica, Gulen se mudou para os EUA para receber tratamento para um problema cardiovascular. Seus médicos sugeriram que ele permanecesse no país para continuar a receber cuidados e evitar o estresse causado pelo ambiente politicamente carregado da Turquia. O direito de residência permanente lhe foi concedido em 2006. Ele foi um dos primeiros estudiosos muçulmanos a condenar publicamente os atentados terroristas do 11 de Setembro de 2001.

Gulen é uma figura que inspira as pessoas com suas ideias, recusando-se a participar ativamente na política. Contudo, muitos partidos políticos, inclusive o de Erdogan, pediram seu apoio desde o início da década de 1970. Gulen evitou dar apoio direto a partidos ou líderes políticos, mas avalizou seus projetos e discursos a favor da democracia, sem discriminá-los e adotando uma posição neutra.

A Hagia Sofia, em Istambul. A antiga catedral bizantina foi transformada em mesquita em 1453 e, em 1935, em museu

A Hagia Sofia, em Istambul. A antiga catedral bizantina foi transformada em mesquita em 1453 e, em 1935, em museu

Na Turquia, hoje em dia, a corrente islâmica política representada por Erdogan e a corrente islâmica social representada por Gulen têm fundamentos opostos. A primeira propõe que os muçulmanos se reúnam em torno de um líder político e religioso para governar o país e assim criar uma união islâmica e um bloco forte contra o Ocidente. Gulen, por outro lado, defende que a religião é um caminho de ligação entre Deus e o ser humano e que não se deve misturar à política. Para ele, os muçulmanos devem se integrar ao mundo moderno e não formarem um bloco à parte.

A Turquia é um país cosmopolita que abrange várias etnias, grupos religiosos e ideológicos. Desde sua fundação, a ideologia do Estado não vê a sociedade por igual sob os aspectos dos direitos e da liberdade. Liderados por Mustafá Kemal Ataturk, os militares que fundaram a Turquia moderna em 1923 definiram o cidadão ideal como “turco, laico e nacionalista”. Os que ficaram fora desta definição foram considerados cidadãos de segunda classe.

Desde o início, os que se consideraram como “guardiões da pátria” rotularam como “traidores” ou “infiltrados” os que não rezavam segundo sua cartilha. Para conservar os valores kemalistas, os militares deram quatro golpes, em 1960, 1971, 1980 e 1997. Ao longo dessa história, os curdos, alevitas, islamistas, grupos religiosos e minorias no país tiveram que esconder suas identidades para evitar perseguições.

No poder, Erdogan repete o kemalismo, apenas invertendo seus sinais. Seu cidadão ideal é “turco, islâmico e nacionalista”. Os atuais expurgos abrangem todos aqueles que não dizem amém para suas políticas, inclusive os participantes do Hizmet. As perseguições dos militares deram lugar às perseguições da autocracia islamizante de Erdogan. Sabendo disso, os seguidores do Hizmet continuaram a se esconder, para garantir sua segurança pessoal.

 

Do golpe fracassado à onda de expurgos

Na noite de 15 de julho de 2016, a Turquia sofreu uma tentativa de golpe frustrada que deixa aproximadamente quatrocentos mortos, entre militares e civis. Um grupo de militares das forças armadas começou a se movimentar em duas cidades. Eles bloquearam a ponte do Bósforo, tomaram o aeroporto principal em Istambul, ocuparam a sede da televisão estatal e transmitiram uma declaração de que haviam tomado o controle do país. Erdogan falou à televisão usando um aplicativo de celular, para convocar povo a ir às ruas e resistir.

Após vários conflitos e muita confusão, o golpe foi exterminado com a força da polícia e a ajuda do povo. Os eventos deixaram centenas de mortos: 173 civis, 67 policiais e 104 militares golpistas. Quase 2,2 mil pessoas ficaram feridas.

Na sequência, Erdogan qualificou a tentativa de golpe como “um presente de Deus”. Listas de militares a serem perseguidos já estavam preparadas antes da tentativa golpista. Nas palavras de Fikri Isik, ministro da Segurança: “Antes da tentativa de golpe existia uma preparação para a ‘limpeza’ nas forças armadas. Nosso presidente não conseguiu fazer isso antes”. Já para Erdogan: “Essa tentativa de golpe foi uma bênção de Deus. Porque será um meio de ‘limpar’ nosso Exército, tornando-o puríssimo. Isto não vai parar, vai continuar, precisa ser feito.”

Foi declarado estado de emergência, a constituição foi suspensa e os direitos civis foram anulados. Começou, assim, um expurgo contra todos aqueles que foram considerados apoiadores dos golpistas, dentro e fora das forças armadas. Esta “limpeza” se tornou um contragolpe. Sem nenhuma evidência, o presidente acusou Gulen de ter articulado o golpe.

Em tese, seria uma guerra apenas contra Gulen. Na prática, tornou-se uma perseguição contra todos os opositores de Erdogan. Dezenas de milhares de pessoas – juízes, promotores, advogados, empresários, policiais, soldados, jornalistas e acadêmicos – foram destituídas de seus cargos e presas sem julgamento. A mídia foi completamente censurada. Multiplicaram-se as notícias de torturas, estupros e mortes suspeitas. Os que ficaram na Turquia continuam a viver sob opressão. Para aqueles que escaparam, começou uma grande migração. Mas os tentáculos da perseguição atingem os exilados, por meio de pedidos de extradição. O caso de Ali Sipahi evidencia que as longas garras de Erdogan chegaram ao Brasil. 

 

História sem fim

Crises reais ou artificiais criam oportunidades inigualáveis para regimes de um homem só. Quando sua segurança está em perigo, o povo quer obter resultados rápidos, apoiando líderes autoritários. Crises silenciam críticas e os críticos passam a ser vistos como “traidores à pátria”. Erdogan enfrentava turbulências políticas e perdia sangue todo dia.

Mesquita na Capadócia. Erdogan redefine a Turquia em torno de dois pilares paralelos: a religião e o nacionalismo

Mesquita na Capadócia. Erdogan redefine a Turquia em torno de dois pilares paralelos: a religião e o nacionalismo

Naquele julho, o presidente foi salvo por um golpe fracassado cuja origem é alvo de intensas controvérsias. O episódio funcionou como pretexto para seu contragolpe: três anos de estado de exceção destinados a implantar uma autocracia.

A história não terminou. No “presidencialismo ao estilo turco”, Erdogan controla os meios de comunicação, o aparelho judicial e os aparatos repressivos. Mas ainda ocorrem eleições, ainda que não limpas e justas. Nas eleições locais de 31 de março de 2019, o Partido da Justiça e do Desenvolvimento (AKP), de Erdogan, perdeu em cinco das seis maiores cidades, inclusive a capital política, Ancara, além de Istambul e Izmir.

“Aquele que controlar Istambul, controlará a Turquia”, proclamou Erdogan, anos atrás. O presidente iniciou sua fulgurante ascensão como prefeito da capital histórica, econômica e cultural turca. A vitória do oposicionista Partido Republicano do Povo (CHP) em Istambul representou um golpe profundo no seu poder.

A derrota eleitoral de Erdogan na principal cidade do país revela que a oposição não foi exterminada. Por isso, com a conivência de um órgão eleitoral submisso, o AKP conseguiu anular as eleições na cidade. No novo pleito, em 23 de junho, Erdogan tentará bater o martelo sobre o último prego do caixão da democracia turca.

 

 

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