Quando a Guerra Fria estava chegando ao fim, por volta de 1990, um misto de esperança e otimismo tomou conta do mundo. O fim da ordem internacional baseada no poder nuclear dava lugar ao que se chamou então de “Nova Ordem Mundial”, uma era na qual os valores expressos na Declaração Universal dos Direitos Humanos serviriam de baliza para todos os governos. O respeito à dignidade humana acima de tudo.
Na Europa, principal palco da bipolaridade geopolítica, a Alemanha reunificada era o símbolo da nova era e a URSS dava lugar à CEI. Poucos prestavam atenção ao que ocorria nos distantes Bálcãs quando, de repente, uma guerra brutal se instalou na Iugoslávia em nome de reivindicações que remontavam à Primeira Guerra Mundial.
Vista em perspectiva, a Guerra da Iugoslávia (1991-1999) – uma sucessão de guerras separatistas regionais – pôs fim à República Federal e deu à luz seis novos países, tornando a política balcânica ainda mais instável. Era uma ironia da história que o primeiro grande evento do mundo pós-Guerra Fria e o último do século XX fosse uma guerra na mesma região onde a Primeira Guerra Mundial havia começado. Era como se em um século o mundo tivesse dado um giro sobre si mesmo e retornado ao ponto de partida. Mas a guerra e a desintegração da Iugoslávia anunciaram tendências do novo tempo: a substituição, no discurso político, da oposição entre capitalismo e comunismo pela oposição entre nacionalismo etno-religioso e globalismo.
Limpeza étnica; estupro como arma de guerra; morte por inanição; ataques indiscriminados a civis e suas casas – foi difícil acreditar que tudo aquilo pudesse estar ocorrendo novamente em solo europeu. E os combatentes não apenas repetiam as atrocidades dos antecessores como as tornavam ainda mais chocantes – não havia câmara de gás, mas teve muita gente queimada viva. A demora em acreditar que as coisas eram realmente tão ruins quanto pareciam, provocou certa lentidão do ponto de vista das reações de instituições e governos, além de um cenário internacional bastante nebuloso naquele momento. Até porque, por razões históricas muito mais antigas e profundas, a Rússia usou seu poder de veto no Conselho de Segurança da ONU para proteger sua aliada, a Sérvia, irmã eslava e da mesma fé Ortodoxa, fato que retardou bastante o fim do conflito.
Apesar de tudo, um passo civilizatório foi dado: a criação da Corte Penal Internacional (embrião do Tribunal Penal Internacional, estabelecido no ano de 2002 como corte permanente), destinada a julgar os muitos crimes da Guerra da Iugoslávia. Instituído pelo Conselho de Segurança da ONU em maio de 1993 e tendo atuado até 2017, essa primeira Corte Internacional mudou a paisagem do direito internacional humanitário. Foram julgados os responsáveis diretos pelas muitas violações de direitos humanos cometidas durante o conflito – presidentes, generais, ministros – e o estupro passou a ser reconhecido como um crime em si, com potencial genocida inclusive, e não mais um “crime de guerra colateral”.
A Iugoslávia (inicialmente Reino dos Sérvios, Croatas e Eslovenos) começou a surgir nos acordos firmados ao final da Primeira Guerra Mundial como produto da derrota dos impérios Austro-Húngaro e Turco. A reunião dos eslavos do sul em torno dos sérvios por decisão unilateral das potências vencedoras beneficiou um nacionalismo tenaz, que acalentava desde meados do século XIX o projeto geopolítico da Grande Sérvia. De fato, em poucos anos, a Sérvia passou a ser vista como um novo poder imperial por croatas, eslovenos, montenegrinos e albaneses.
O caldeirão de povos e culturas iugoslavo tinha suas raízes na Alta Idade Média, quando a cisão do Império Romano separou os croatas dos sérvios. Os primeiros, sob Roma, adotaram o catolicismo e ligaram-se à tradição ocidental. Os segundos, sob Bizâncio, adotaram o cristianismo ortodoxo e a cultura do mundo grego. A língua comum, o servo-croata, passou a ser escrita no alfabeto latino pelos croatas e em cirílico pelos sérvios. Mais tarde, a ocupação turco-otomana islamizou grande parte das populações dos Bálcãs, inclusive da região que viria a formar a Iugoslávia. Assim, três culturas e três religiões conviviam no Estado iugoslavo.
As tensões eclodiram na Segunda Guerra Mundial quando a Alemanha nazista, com o apoio da elite política croata, repartiu a Iugoslávia. Mas croata era também o principal líder da Resistência iugoslava, o comunista Josip Broz Tito. Sua vitória provocou a reorganização do Estado, baseada na ideia de igualdade entre as nacionalidades e etnias. Assim nasceu a República Socialista Federal da Iugoslávia.
Fonte: United Nations International Criminal Tribunal for the former Yugoslavia
A Grande Sérvia dava lugar a uma nova concepção do Estado iugoslavo: a federação titoísta. Nela, o sistema administrativo federalista, que conferia direitos iguais às seis repúblicas, e a ideologia oficial do não-alinhamento internacional, sustentada desde o rompimento com a União Soviética em 1948, funcionaram como pilares da unidade iugoslava. Contudo, o seu cimento sempre esteve no monopólio do poder pelo partido único, ou seja, na ditadura.
Por isso, a morte de Tito em 1980 provocou o primeiro golpe na unidade iugoslava. Com a desintegração do bloco comunista na Europa, os discursos nacionalistas étnicos e religiosos ressurgiram e as identidades culturais particularistas ganharam força sob a forma de nacionalismos em confronto.
Os principais aparatos do Estado iugoslavo, especialmente as Forças Armadas, eram controlados pelos sérvios. Na República da Sérvia, um dos entes da federação, desde 1989 a presidência era exercida por Slobodan Milosevic, que governou até 1997 (sendo, entre 1997 e 2000, presidente da República Federal Iugoslava). Com Milosevic e seus aliados, o projeto da Grande Sérvia renasceu, o que foi rechaçado pelas demais repúblicas, estimulando os separatismos.
As primeiras eleições pós-fim-do-comunismo deram o poder aos independentistas na Eslovênia e na Croácia, as repúblicas mais prósperas e ligadas ao Ocidente. Mas os sérvios, falando em nome do Estado iugoslavo, não aceitaram a ruptura. Os nacionalismos foram exacerbados e os homens se organizaram em milícias para lutar contra os vizinhos. Em 1991 o Exército federal (sob controle sérvio), atacou a Eslovênia.
Fonte: Xadrez Verbal
A Croácia declarou sua independência junto com a Eslovênia, sem encontrar oposição direta. Entretanto, a existência de croatas nas terras eslovenas e o avanço do exército iugoslavo sobre quase um terço do território croata trouxeram o país para o conflito. Nas terras ocupadas por sérvios, croatas e outros não-sérvios foram expulsos sob intensa violência, na qual surgiam as táticas de “limpeza étnica”.
No verão de 1995 o exército croata logrou reconquistar a maior parte do território reivindicado, levando dezenas de milhares de sérvios-croatas a migrarem em direção às áreas controladas por sérvios na Bósnia-Herzegovina.
A República da Bósnia funcionava, na arquitetura traçada por Tito, como um Estado-tampão entre a Sérvia e a Croácia. A posição central dessa república era estratégica e, por isso, passou a ser reivindicada tanto pela Sérvia como pela Croácia. A presença de uma maioria relativa de muçulmanos e de significativas minorias sérvias e croatas conferiu ao conflito o caráter de guerra popular generalizada.
Na Guerra da Bósnia a barbárie atingiu o ápice. Assassinatos de milhares de pessoas de uma vez; estupro como arma de guerra; deslocamento de populações visando à “purificação étnica”. O episódio mais emblemático da Guerra da Bósnia foi o Massacre de Srebrenica, em 1995, quando tropas sérvias executaram aproximadamente 8 mil muçulmanos.
É necessário dizer, a bem da verdade, que embora os sérvios tenham sido mais pródigos no uso da violência, croatas e bósnios também lançaram mão dessas armas contra civis, em uma longa lista de violações das leis de guerra e dos direitos humanos que posteriormente foram levantadas e julgadas pela Corte Penal Internacional para a ex-Iugoslávia.
A indecisão dos líderes ocidentais em ordenar uma intervenção militar forneceu uma amarga aula de realismo político ao público mundial, que esperava pelo compromisso com os direitos humanos, mas assistia a sucessivos recuos, adiamentos e vetos no Conselho de Segurança da ONU, enquanto a matança acontecia em frente às câmaras de TV.
Fonte: Library of the Congress
Por fim, em 1995, Estados Unidos, Reino Unido e França decidiram contornar o veto russo relacionado a qualquer intervenção militar da ONU, lançando mão das forças militares da OTAN para entrar nas áreas em conflito e forçar as partes e aceitarem uma negociação de paz. O resultado foi a assinatura do Acordo de Dayton, pelo qual a Bósnia muçulmana ficava sensivelmente diminuída e o poder passava a ser de uma confederação constituída por uma república muçulmano-croata e uma república sérvia.
A República da Iugoslávia seguia existindo como uma máscara para a Sérvia. Assombrados pela guerra, em 1998 os sérvios tiveram que lidar com o separatismo em seu próprio território, onde outras minorias étnicas – os albaneses da província de Kosovo e os húngaros da província de Vojvodina – passaram a falar em independência.
Em resposta, Slobodan Milosevic limitou a autonomia dessas regiões ampliando as tensões que conduziram à guerra interna. A intransigência do presidente sérvio diante da tentativa de mediação ocidental provocou a OTAN a realizar a maior campanha aérea vista na Europa desde o final da Segunda Guerra. Em junho de 1999, o conflito servo-kosovar terminou com a imposição de um protetorado internacional informal sobre a região.
Em 2006 a Iugoslávia deixou oficialmente de existir, com a separação de Montenegro e Sérvia por meio pacífico. E o espaço balcânico se reconfigurou mais uma vez, no breve espaço de um século. A fragmentação geopolítica e o equilíbrio de poder entre a Sérvia e a Croácia são as principais características estratégicas desse novo cenário. E os pequenos Estados da Bósnia, Macedônia, Montenegro e Kosovo figuram como focos de crises étnicas crônicas.
“Balcanização”
Eventos históricos podem ter a sua influência medida pelo impacto que provocam no cotidiano, caso de novas palavras que são incorporadas ao vocabulário, como é o caso do verbo “balcanizar”. De acordo com o Dicionário Michaelis, “balcanizar é a ação de fragmentar (um país, região ou outra unidade política) em unidades menores”. Mas é mais do que isso, a “balcanização” implica em disputas entre Estados hostis entre si, dispostos a recorrer à violência contra os adversários como um aglutinador importante.
Os sérvios-bósnios criaram, em 1992, a República de Srpska ou República da Bósnia e Herzegovina e escolheram como líder Radovan Karadizc, um defensor do projeto da Grande Sérvia, alcunhado “carniceiro dos Bálcãs”. Sob suas ordens e as do general Ratko Mladic, o Exército de Srpska e forças paramilitares sérvias atacaram cidades muçulmanas e croatas massacrando seus habitantes e provocando intensa fuga de civis.
Um dos pólos para os refugiados foi a cidade Srebrenica onde, porém, rapidamente as condições humanitárias se tornaram desastrosas. Havia escassez de água porque a canalização fora destruída. Durante meses as pessoas usaram geradores improvisados para obter eletricidade, mas também o combustível rareou. Em um dos julgamentos realizados depois da guerra, no Caso Naser Orić, constatou-se que as forças sérvio-bósnias controlavam as estradas de acesso e não permitiam propositadamente a chegada da ajuda internacional (alimentos e medicamentos). A escassez alcançou momentos dramáticos de fome aguda, como no inverno de 1992/1993. Muitos morreram ou tiveram profunda desnutrição. Os refugiados eram os que mais sofriam, pois viviam nas ruas, sem abrigo, em temperaturas muito baixas.
Em abril de 1993 a ONU, preocupada com o movimento de cerco realizado pelos sérvios, declarou Srebrenica “área segura”, protegida pela comunidade internacional. Porém, os agentes diplomáticos da ONU tinham poucos poderes para garantir a desmilitarização dos sérvios. Pelo contrário, o ACNUR concordou em deslocar alguns milhares de bósnios-muçulmanos para áreas mais seguras caso os sérvios atacassem, o que na prática servia perfeitamente aos intentos sérvios de eliminar aquela população daquela área.
Em julho de 1995, Mladic e seus homens decidiram tomar a cidade. Os civis, em desespero, buscaram a base da Força de Paz da ONU sediada em Potocari, mesmo sabendo que não havia mais espaço. No dia 11, havia milhares de pessoas no complexo e outras tantas do lado de fora, instaladas em fábricas e campos vizinhos. Os soldados em Potocari, holandeses, pediram reforços militares aos seus superiores para equilibrar a imensa desvantagem numérica, mas não obtiveram resposta. Então eles cederam à pressão das forças sérvias e, sem tentar esboçar qualquer reação, os supostos responsáveis pela segurança dos muçulmanos mandaram embora a todos. Poucos quilômetros adiante, nas estradas e montanhas, os sérvios capturaram todos os homens com mínima idade e os executaram depois de separá-los das mulheres. O número de mortos é estimado entre 7,9 mil e 8,2 mil.
Memorial aos mortos no Massacre de Srebrenica. Todos os anos, no mês de julho, novos corpos exumados das valas comuns e identificados são enterrados
Quando a guerra da Iugoslávia começou, chamou atenção dos observadores estrangeiros as ações deliberadas contra civis destinadas a fazê-los desaparecer de certas cidades ou regiões. Ainda em 1992, a ONU criou uma Comissão de Experts para examinar in loco a situação nos Bálcãs e as denúncias de extermínio de civis. Começava a se disseminar o conceito de “limpeza étnica” – outra contribuição da guerra nos Bálcãs para o nosso vocabulário.
Em janeiro de 1993, em um relatório interno para o Conselho de Segurança, os analistas explicavam o que era “limpeza étnica”: “é a transformação de uma área com vistas a torná-la etnicamente homogênea usando a força ou intimidação para remover pessoas de outros grupos étnicos daquele espaço”. Um mês depois, em outro relatório, identificavam-se mais claramente os agentes da limpeza étnica: “política conduzida em favor de doutrinas relacionadas ao projeto da ‘Grande Sérvia’, sendo posta em prática por sérvios na Bósnia, Herzegovina e Croácia e seus apoiadores na República Federal da Iugoslávia”.
A Geografia explica o cálculo racional por trás da insanidade da “limpeza étnica”, que não aconteceu em todos os lugares. Os principais morticínios foram levados a cabo em áreas estratégicas que conectavam a Sérvia com áreas habitadas por sérvios na Bósnia e na Croácia. A homogeneidade étnica tinha por objetivo encerrar as disputas territoriais e impedir movimentos revanchistas futuros.
Novamente, deve-se lembrar que também bósnios e croatas recorreram aos massacres de civis com o mesmo fim: homogeneizar a ocupação dos territórios pleiteado. No próprio clima de insegurança e medo gerado pela guerra, cada grupo começava a ver seus vizinhos como inimigos em potencial, favorecendo as formações paramilitares e gangues que acirravam ainda mais a violência, sobretudo contra as mulheres.
Fonte: Remembering Srebrenica
Tentando traduzir o horror em curso e, talvez, provocar resposta mais rápida da comunidade internacional, a palavra genocídio era frequentemente empregada para descrever os fatos em curso nos Bálcãs, ganhando força após o massacre de Srebrenica. O reconhecimento de que existe um genocídio obriga os países assinantes da Convenção contra o Genocídio a intervirem. Além disso, justificava que os líderes políticos e militares responsáveis pelas atrocidades fossem levados a julgamento por uma Corte Internacional de Justiça.
Discute-se a pertinência de se chamar de genocídio o que aconteceu nas guerras da Iugoslávia. Os que negam tal expressão optam por “limpeza étnica” e alegam que nem todos os elementos necessários para definir genocídio foram encontrados nos Bálcãs. Opinião contrária teve o primeiro Procurador-Chefe do CPI-I e responsável pelos primeiros processos, o sul-africano Richard Goldstone: “A intenção não era destruir todos os bósnios da Bósnia e Herzegovina. A intenção era destruir mais de 8 mil homens e meninos inocentes no enclave de Srebrenica. Mas chegamos à conclusão, e os tribunais, tanto o TPIJ como o Tribunal Internacional de Justiça, apoiaram a nossa convicção, que a decisão de destruir um grupo desse tamanho na aldeia de Srebrenica, constituiu um ato de genocídio e que a intenção necessária estava lá.”
A guerra dos Bálcãs trouxe a tona uma discussão nunca levantada, embora indiretamente tratada pelas Convenções de Haia e Genebra, que é a questão da violência sexual.
No entanto, parecia haver uma diferença importante nesse caso: os estupros foram cometidos sistematicamente sob ordens militares, como se fossem parte das táticas legítimas de um conflito. Isso porque o sistema de parentesco patrilinear na região considera que o filho herda a “etnia” do pai, portanto, as crianças nascidas dos estupros seriam sérvias (ou croatas, ou muçulmanas) – logo, os estupros também configuravam uma arma de guerra e uma forma de limpeza étnica.
(Tradução e cortes nossos) As pessoas da Bósnia e Herzegovina fugindo para a Croácia traziam consigo histórias do terror que haviam deixado para trás. Em todas elas os estupros desempenharam um papel importante, ainda que no começo eles me parecessem apenas mais um detalhe no cenário horrível que os refugiados tinham vivido, mais um ultraje da guerra. Foi meses antes que eu me interessasse pelo sofrimento especial das mulheres. O que eu aprendi então me angustiou e me surpreendeu. Mulheres e meninas foram sistematicamente violadas, houve campos de estupro dedicados e bordéis forçados, gravidez forçada de mulheres – as atrocidades não conheciam limites. (…)
A fim de chegar ao fundo da questão, um amigo e colega, o jornalista americano George Rodrigues, e eu partimos para uma viagem à Bósnia para ver como o estupro disseminado e sistemático realmente era. Os psiquiatras disseram-nos que as vítimas que ainda estavam na Bósnia, onde o perigo era mais imediato, seriam mais propensas a falar sobre o que sofreram do que as mulheres que fugiram para a Croácia e começaram a pensar se queriam ser rotuladas de “estupradas” ou “vítimas” pelo resto de suas vidas. (…)
Não foi fácil encontrar essas mulheres. (…) As conversas foram difíceis. Quando nossas entrevistadas hesitavam e começavam a chorar, eu mesmo sentia um nó na garganta, a sensação de que eu as estava machucando, forçando-as a viverem o estupro mais uma vez. E havia as questões de checagem, repetidas em vários pontos durante a entrevista para testar a verdade de suas histórias. (…) Essas e muitas outras conversas confirmaram os primeiros resultados da minha pesquisa: na Bósnia-Herzegovina uma guerra estava sendo travada contra as mulheres.
(…) Na guerra, os homens estupram por vários motivos, e podemos identificar quase todos eles em todas as guerras. No entanto, nem todas as guerras são iguais, e cada guerra fornece sua própria motivação específica e uma desculpa errada para o estupro. Para os russos que estupraram as mulheres alemãs por turnos durante a invasão de Berlim em 1945, um motivo-chave poderia ter sido a vingança, o desejo de quebrar o orgulho da raça mestre alemã e a sensação de ter ganho “obrigado”. Para os americanos no Vietnã, o motivo pode ter sido a frustração de estar em um país estrangeiro e ter que lutar uma guerra que não era “sua” guerra. Em nenhum dos casos foi o objetivo de afastar as mulheres e sua comunidade; tanto as mulheres alemãs quanto as vietnamitas deviam permanecer onde estavam. (…)
Os estupradores espalham medo e induzem à fuga; os estupros humilham, desmoralizam e destroem não apenas a vítima, mas também a sua família e a comunidade; e os estupros sufocam qualquer desejo de retornar. Um estupro é uma “arma infalível que não precisa de combustível nem munição”, como disse certa vez a feminista de Zagreb, Asija Armanda.
A comissão de peritos da ONU que investigou os estupros na ex-Iugoslávia estabeleceu: “Na Bósnia-Herzegovina e na Croácia, a violação tem sido um instrumento para ‘limpeza étnica’.” A missão da Comunidade Europeia preocupada especialmente com a situação das mulheres bósnias chegou a conclusão semelhante: “O estupro não pode ser visto como incidental ao objetivo principal da agressão, mas um serviço que serve a um propósito estratégico em si”. (…)
Neste contexto, é óbvio que os estupros na Bósnia-Herzegovina foram encorajados por oficiais comandantes e tiveram lugar “em grande escala” (Nações Unidas e Comunidade Europeia); que eles tinham um caráter sistemático e que “em grande parte a maioria das mulheres muçulmanas são as vítimas das forças sérvias” (Anistia Internacional), que refletiam a força militar do lado sérvio. As estimativas do número de vítimas de estupro – incluindo mulheres croatas e sérvias – variam de 20.000 (Comunidade Europeia) a 50.000 (Ministério do Interior da Bósnia).
Mas não devemos esquecer que a Bósnia-Herzegovina não foi um caso excepcional. Soldados não só estupram quando querem expulsar a população inimiga. Eles estupram por muitas razões diferentes; “Limpeza étnica” na Bósnia foi apenas um fator adicional. É tempo de que o estupro durante os conflitos armados não seja mais aceito como um subproduto inevitável da guerra, mas seja processado como crime por si só, como outros crimes contra a humanidade.
A Corte Penal Internacional para a antiga Iugoslávia (ou International Criminal Court – Yugoslávia, ICC-Y) foi um tribunal ad hoc criado para julgar crimes de guerra cometidos entre 1991 e 1995 na Guerra da Iugoslávia. Foi estabelecido em 25 de maio de 1993 pela Resolução 827 do Conselho de Segurança da ONU, dois anos após o início do conflito:
“Expressando mais uma vez o seu grande alarme com as contínuas denúncias de generalizadas e flagrantes violações das leis humanitárias internacionais ocorrendo dentro do território da antiga Iugoslávia, especialmente na República da Bósnia e Herzegovina, que incluem denúncias de assassinatos em massa; amplas, organizadas e sistemáticas detenções e estupros de mulheres; e a contínua prática de “limpeza étnica”, inclusive para aquisição e manutenção de territórios (…).
Decide estabelecer um tribunal internacional para o único propósito de julgar pessoas responsáveis por sérias violações das leis humanitárias internacionais cometidas no território da antiga Iugoslávia”. (Resolução 827)
O Tribunal tem autoridade para processar e investigar indivíduos (e não organizações, partidos ou exércitos) que tenham cometido alguma das quatro categorias de ofensas:
As quatro convenções internacionais estabeleceram uma série de normas voltadas à proteção dos civis em tempos de guerra, bem como de todos aqueles que não fazem parte do conflito (isso inclui membros das forças armadas que estejam doentes ou feridos e prisioneiros de guerra, que já não podem mais lutar).
O Tribunal tem o poder de processar aqueles que infringiram (ou são acusados de infringir) as leis e costumes de guerra que regulam a conduta durante o conflito armado. Por exemplo: uso de armas químicas, destruição injustificada de cidades, destruição de instituições religiosas, pilhagens de propriedades etc. Tais normas e costumes constituem um corpo do direito internacional produzido durante variados tratados, convenções e acordos internacionais, sendo as mais importantes delas as Convenções de Haia ocorridas entre 1899 e 1907, as Convenções de Genebra de 1949 e os Protocolos Adicionais de 1977. Genocídio O Artigo 4 do Estatuto do CPI-I (ou ICC-Y) incorpora os Artigos 2 e 3 da Convenção sobre Prevenção e Punição para o Crime de Genocídio, de 1948. O Genocídio é o ato cometido “com vistas a destruir, total ou parcialmente, um grupo étnico, racial, religioso ou nacional”. Sob o Artigo 4º, participação, tentativa ou exaltação do genocídio também estão sujeitas a punição.
O CPI-I enumera tais crimes lembrando que o alvo é a população civil: assassinato, extermínio, escravização, deportação, prisão, tortura, estupro, perseguição com bases políticas, raciais ou religiosas e qualquer outro ato desumano.
Em 1 de abril de 2001, após perder as eleições, Slobodan Milosevic foi preso pelas forças iugoslavas após 36 horas de enfrentamento entre sua guarda pessoal e a polícia. Indiciado por uma longa lista de crimes, Slobodan, advogado de formação, advogou em causa própria. Seu julgamento, porém, não teve veredicto final porque Milosevic morreu na prisão em março de 2006, antes de receber a sentença.
Acusado em julho de 1996 pelo tribunal, foi preso em 2008 e condenado a 40 anos de prisão, após um julgamento que se arrastou por oito anos, sobretudo pelos crimes em Sarajevo e Srebrenica.
O principal responsável pelo Massacre de Srebrenica, além de comandar o Exército durante o cerco à Sarajevo que deixou 10 mil civis mortos. Teve sua acusação inicial expedida em 1995, entretanto só foi capturado em 2011 ao norte da Sérvia. Nesse meio tempo Mladic se escondeu em instalações de seu antigo exército, outras vezes em diferentes partes da Sérvia; o governo de Belgrado chegou a oferecer recompensa de 10 milhões de euros a quem soubesse de seu paradeiro. Mladic – cuja principal motivação era cumprir o que ele entendia como o “destino da nação Sérvia”: um Estado sérvio “puro” – foi condenado em 2017 à prisão perpétua.
Algumas de suas principais realizações incluem:
O Tribunal buscou investigar e julgar os culpados, independente de suas posições, indiciando chefes de Estado, primeiros-ministros, chefes das Forças Armadas, ministros, entre outros, e colocando um ponto final na tradição de impunidade costumeira aos crimes de guerra.
Noventa indivíduos foram condenados por crimes de genocídio, crimes de guerra e crimes contra a humanidade. Slobodan Milosevic foi o primeiro chefe de Estado indiciado por crimes de guerra.
A maioria dos processos pertence a acusados sérvios ou sérvio-bósnios. Porém, o Tribunal também julgou pessoas de todas as etnias. As investigações concluíram que todas as partes envolvidas no conflito cometeram crimes de guerra.
O Tribunal indiciou 161 pessoas e ouviu quase 5.000 testemunhos entre 1997 e 2004.
Um aspecto sugerido pelo Promotor Chefe do Tribunal, Richard Gladstone, saído da experiência com os tribunais para a reconciliação pós-apartheid na África do Sul, era que se tentasse algo similar na Iugoslávia, o que foi simplesmente impossível de se obter, sinalizando cicatrizes muito profundas.
Os julgamentos encaminhados pelo Tribunal contribuíram para criar um registro histórico bastante confiável sobre o desenvolvimento de todo o conflito, contribuindo para seu melhor entendimento e, sobretudo, ambicionando impedir que haja espaço para posturas negacionistas e tentativas revisionistas.
O Tribunal contribui para o desenvolvimento do direito humanitário internacional, principalmente. O trabalho e as realizações do CPI-I inspiraram a criação de outras cortes criminais internacionais, como a Corte Criminal para Ruanda e a Corte Especial para Serra Leoa.
Durante a Guerra da Bósnia, a existência de “campos de estupro” deliberadamente criados foi relatada. O objetivo relatado desses campos era engravidar as muçulmanas e croatas mantidas em cativeiro. De acordo com o Grupo de Mulheres Tresnjevka, mais de 35.000 mulheres e crianças foram mantidas nesses “campos de estupro”.
Foi reconhecido que as mulheres muçulmanas em Foča (cidade no sudeste da Bósnia e Herzegovina) foram submetidas a estupros, tortura e escravização sexual sistemáticos e generalizados por soldados sérvios bósnios, policiais e membros de grupos paramilitares após a tomada da cidade, em abril de 1992. A acusação foi de grande importância legal e foi a primeira vez que as agressões sexuais foram investigadas para fins de processo sob a rubrica de tortura e escravidão como um crime contra a humanidade. A acusação foi confirmada por um veredicto de 2001 pela Corte Penal Internacional para a ex-Iugoslávia. Essa decisão desafiou a ampla aceitação do estupro e da escravização sexual de mulheres como parte intrínseca da guerra.
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