A história argentina tem alma milongueira. Sua última ditadura, de 1976 a 1983, ao mesmo tempo inseriu-se no quadro geral da Doutrina de Segurança Nacional e expressou o esgarçamento do peronismo como força política capaz de conciliar as tensões da sociedade. Por toda a segunda metade do século XX, a Argentina assistiu a uma sucessão de golpes militares que tinham no combate ou no apoio à figura de Juan Domingo Perón seu ponto focal. O terror de Estado, por sua vez, foi adotado pelo próprio caudilho e seus auxiliares na tentativa de eliminar a esquerda peronista; a ditadura de 1976 foi o aprofundamento dessa disputa por hegemonia no cenário político. Anos mais tarde, o general Jorge Rafael Videla afirmou que a cúpula do golpe havia concordado que “7 mil ou 8 mil pessoas deveriam morrer para que se vencesse a guerra contra a subversão“. Foram, de fato, cerca de 30 mil vítimas da “guerra suja”.
A brutalidade é o que caracteriza a ditadura argentina, ainda mais tendo-se em conta que ela durou menos que sete anos. É expressivo o número de vítimas da repressão que eram trabalhadores envolvidos em atividades políticas e sindicais, ou profissionais liberais, como advogados e médicos, porque ajudavam perseguidos. Os militares, treinados para combater o “inimigo interno”, identificaram-no aos militantes dos movimentos de esquerda eliminando-os impiedosamente. Existem muitos trabalhos publicados demonstrando os financiamentos e colaborações do grande empresariado industrial e rural à ditadura.
A Escola Superior de Mecânica da Armada (ESMA), em Buenos Aires, foi o principal centro de tortura da ditadura argentina, foi transformada em centro de memória
A radicalização dos grupos de esquerda e sua grande adesão às armas foi decisiva para dar credibilidade ao discurso da “guerra contra o inimigo interno”. Uma guerra onde a disparidade de número e forças era gritante. Como nos países vizinhos, na Argentina também tem-se adotado a expressão “ditadura civil-militar” para tirar da sombra o apoio maciço que o empresariado deu a esses regimes baseados na violação sistemática dos direitos humanos.
A ditadura argentina foi implantada 12 anos após o golpe de 1964, no Brasil, e cerca de três anos após o início dos regimes militares no Uruguai e no Chile. A implantação tardia trouxe dificuldades singulares para a sustentação do regime de exceção. Em primeiro lugar, coincidiu com a eleição do democrata Jimmy Carter à presidência dos Estados Unidos, cujo governo deflagraria uma nova política de defesa dos direitos humanos. Assim, desde 1977, os ditadores argentinos não tiveram o amparo da superpotência hemisférica. Em segundo lugar, os efeitos desastrosos das duas “crises do petróleo” (1973 e 1979) para a economia mundial foram responsáveis pela chamada “década perdida” na América Latina, como ficaram conhecidos os anos 1980, marcados por crises inflacionárias e pela explosão das dívidas externas. Assim, a ditadura argentina não conheceu os anos de relativa bonança econômica experimentados pelos regimes vizinhos.
Além disso, a ditadura argentina enfrentou nítido isolamento regional. As ditaduras brasileira e chilena encaram a Argentina como rival geopolítico. Argentina e Brasil mantinham rivalidade histórica e os dois regimes militares desenvolveram programas nucleares concorrentes. Apenas na hora da Guerra das Malvinas, em 1982, quando o Brasil ofereceu respaldo diplomático ao vizinho, o gelo começou a ser quebrado. Não bastasse isso, a Argentina mantinha um litígio territorial com o Chile: a disputa pelo controle da saída oriental do Canal de Beagle, no extremo meridional da América do Sul. Em 1978, o litígio quase descambou para a guerra, o que foi evitado por uma mediação papal de última hora. Na Guerra das Malvinas, o Chile de Pinochet ofereceu informações de inteligência ao Reino Unido.
O papel da Igreja Católica também é mais relevante no caso argentino, com diferentes graus e tipos de envolvimento que refletiam as divisões no interior da própria Igreja provocadas pelo Concílio Vaticano II (1962). Na América Latina dos anos 1960 surgira a Teologia da Libertação, de inspiração marxista, com forte difusão entre o baixo clero mais próximo do povo, ao mesmo tempo em que elementos da alta cúpula religiosa usavam lojas maçônicas para conspirar em nome do “combate ao comunismo”. Posteriormente, no pontificado de João Paulo II, iniciado em 1978, a Igreja exerceria um papel político muito importante na defesa dos direitos humanos e como promotora da “reconciliação”.
Desde a redemocratização, no final de 1983, os argentinos lutaram incessantemente pela responsabilização dos culpados. A Argentina é, entre os países do Cone Sul, o que apresenta maior número de processos e punições, incluindo prisão perpétua para alguns chefes militares.
Em 1943 os militares deram um golpe de Estado e assumiram o poder em defesa de um projeto político de perfil fascista. O coronel Juan Domingo Perón assume o Ministério do Trabalho e, por meio de reformas sociais e regulamentação de direitos trabalhistas, torna-se muito popular, sendo eleito presidente em 1946 e reeleito em 1952.
Para dar continuidade ao seu poder, Perón fundou o Partido Justicialista, em 1947, por todos conhecido como Partido Peronista, ainda hoje uma força política decisiva na Argentina. O segundo mandato, em condições econômicas menos favoráveis, viu surgirem problemas que o presidente tentava resolver acirrando o discurso populista de defensor dos trabalhadores contra as elites entreguistas, ao mesmo tempo em que censurava a imprensa e reprimia opositores políticos. Deposto por um golpe militar, em 1955, Perón partiu para o exílio na Espanha e o Partido Justicialista foi proscrito. A tentativa de negar a força do peronismo fez com que, entre 1955 e 1966, a Argentina alternasse presidentes civis e golpes militares em decorrência dessa instabilidade política derivada da ausência de uma força alternativa capaz de congregar a sociedade.
Enquanto isso, a indústria automobilística se instalava em algumas cidades, criando polos metalúrgicos. O proletariado recém-urbanizado que serviu a essas fábricas teve que aprender a se organizar para lutar por direitos. Com frequência, foram guiados por militantes de partidos da esquerda, alguns dos quais, naquela época, sonhavam com a criação de “novas Cubas” . A polarização ideológica do Guerra Fria foi, em solo argentino, ainda mais complexa, devido à influência dominante do peronismo, capaz de conter em seu bojo tanto uma vertente sindical/revolucionária, da qual sairia o grupo Montoneros, quanto uma vertente sindical/pelega, representada pela Confederação Geral do Trabalho (CGT).
Os militares denominaram seu movimento de “Revolução Argentina”. Ali, começava a ficar claro o enquadramento do país na perspectiva da Guerra Fria, pelas referências à Doutrina de Segurança Nacional disseminada pelos EUA a partir da Escola das Américas. O fechamento de todos os partidos políticos contribuiu para a radicalização à esquerda e à direita, com direito a ações insurrecionais, como as guerrilhas e as puebladas.
A Conferência de Medellín, ou “Segunda Conferência Geral do Episcopado Latino Americano”, foi aberta pelo Papa Paulo VI sob o tema: “A Igreja na atual transformação da América Latina à luz do Concílio” (Concílio Vaticano II, responsável por uma reorganização doutrinária da Igreja, que se voltava para os pobres).
As chamadas puebladas foram levantes ocorridos em cidades grandes e pequenas pelo interior da Argentina, promovidas por trabalhadores sindicalizados e agremiações políticas diversas. A pueblada mais emblemática foi o Cordobazo, dada a concentração de indústrias na cidade e, portanto, à presença maciça de operários sindicalizados e seus familiares.
No dia 29 de maio os trabalhadores conseguiram rechaçar as investidas das forças policiais. O recuo foi comemorado como vitória. O Exército retomaria o controle da cidade, mas em muitas outras cidades do país ocorreram levantes
Córdoba era o maior polo industrial país e sede das montadoras Renault e Fiat. A cidade também contava com a mais antiga universidade do país, a Universidade Nacional do Córdoba (UNC) – e, portanto, com expressiva presença estudantil na cena política. Tudo começou com um decreto do governo regulando uma situação trabalhista que traria prejuízo aos operários cordobeses. Rapidamente, a peronista Confederação Geral dos Trabalhadores (CGT), em associação com outras forças políticas, mobilizou os operários com passeatas e paralisações. A violenta repressão policial alimentou a radicalização dos trabalhadores. Depois de vencerem uma batalha contra a polícia e tomarem o controle da cidade por algumas horas, muitos começaram a falar na existência de “uma situação revolucionária”. Mas a polícia aguardavam apenas a chegada do Exército, que retomou o controle sobre a cidade no mesmo dia 30.
O pelotão Ramon Rosa Gimenez era dos mais temidos da ERP e foi dizimado em uma operação militar logo depois do golpe de 1976.
O ERP foi uma organização guerrilheira originada a partir do marxista Partido Revolucionário Trabalhista (PRT). A principal cabeça do ERP era Mario Roberto Santucho, inspirado pelo maoismo e as táticas da guerrilha do Vietnã. Defendiam a luta armada como caminho para, simultaneamente, combater a ditadura e implantar o socialismo. Muitos dos seus integrantes receberam treinamento militar em Cuba.
O período mais ativo do ERP foi entre 1970 e 1975, quando chegaram a contar com 13 mil militantes. Por meio de sequestros (aproximadamente 300), assaltos a bancos, a quarteis e delegacias obtinham financiamento e armas para sua luta; eram adeptos dos assassinatos seletivos de militares e políticos. Em 1973, concentraram-se na província rural de Tucumã, a partir de onde pretendiam iniciar o levante popular armado.
Após o golpe de 1976, Santucho tentou criar a Organização para a Libertação da Argentina (OLA), unindo-se aos Montoneros e a outras forças para resistirem ao Estado terrorista e fomentar a resistência fabril. Mas ele estava no alto da lista dos “subversivos” e morreu em uma emboscada, no mês de julho.
Acossados pelo clima de insurreição das puebladas, os militares recorrem novamente às eleições para devolver o governo aos civis. Da Espanha, Perón trançava os fios da política na distante Argentina e, por meio da figura de um candidato-quase-fantoche, Héctor Campora, viu o peronismo vencer a eleição com quase 50% dos votos. Campora, cujo lema na eleição foi “lealdade”, imediatamente deu prosseguimento à trama do caudilho, concedendo anistia aos exilados políticos e convocando novas eleições.
Foi nesse dia que Perón e Isabel (nome artístico de Maria Estela Martínez de Perón, a segunda esposa do caudilho) retornaram à Argentina. Uma multidão correu ao aeroporto de Ezeiza para ouvi-lo discursar, incluindo a ala esquerda do peronismo encabeçada pelos Montoneros. De repente, atiradores ocultos entre os manifestantes abriram fogo, matando 13 pessoas e ferindo mais de 350. Não houve investigação oficial posterior e apenas um chefe de polícia foi demitido.
Ao que tudo indica, essa foi a primeira operação importante da Triplo A (Aliança Anticomunista Argentina), uma organização paramilitar de extrema-direita criada por José Lopez Rega, “el Brujo” (o Bruxo), secretário pessoal de Perón e Isabel. Seu objetivo era agir na repressão a trabalhadores e militantes políticos esquerdistas, sobretudo a própria esquerda peronista, vista como cada vez mais problemática pela ala peronista de tendências semi-fascistas. O Triplo A também atuou em várias ações no quadro da Operação Condor.
Perón, Isabelita e Lopez Rega. Nos últimos anos, um Perón envelhecido recorreu cada vez mais a “el Brujo” para executar ações contra seus desafetos. Quando Isabelita assumiu a presidência, Rega consolidou sua posição de homem forte do governo
Convencidos das “condições históricas favoráveis à guerra revolucionária”, os líderes do ERP, Montoneros, MIR (chileno), Tupamaros (uruguaio) e outros pequenos grupos radicais decidiram unir forças para lutar pela revolução socialista. Suas ambições eram muito maiores que seus recursos e eles foram arrasados pelas máquinas repressivas estatais, sobretudo no contexto da Operação Condor. A existência da JCR ajudou a dar consistência ao argumento de que havia uma “guerra” a ser travada contra os “inimigos internos”.
O caudilho é eleito presidente com 62% dos votos, em dobradinha com a esposa e agora vice-presidente, Isabel; daí a chapa Perón-Perón. Apesar da euforia e das expectativas, o velho líder tinha 77 anos e sua saúde era frágil.
Isabel Perón assume a presidência com poucos apoios e muitos críticos. A disputa pelo espólio político do peronismo se intensifica. No setor trabalhista, a CGT se opõe com cada vez mais intensidade aos Montoneros.
O retorno de Perón à Argentina selou o destino dos Montoneros, um grupo originalmente nascido nas fileiras sindicalistas do peronismo, mas com postura mais radical, influenciada pelo pensamento da esquerda castrista. Eles se autodeclaravam uma “vanguarda nacionalista, católica e peronista” e seu slogan era “Perón ou morte”. Mas o líder populista, um conservador que soube explorar no exílio a imagem de protetor da classe trabalhadora, tratou de desvincular-se do grupo. Assim que voltou ao país, desferiu-lhes críticas públicas e isolou-os das hostes peronistas, enquanto reforçava relações com as alas mais conservadoras do partido. Entre os Montoneros, muitos já haviam percebido a contradição entre suas ambições revolucionárias e os objetivos políticos de Perón. A morte do caudilho consolidou a ruptura. Os Montoneros optaram pela clandestinidade, decididos a fazer a revolução com a luta armada, imitando as ações do ERP na província de Tucumã.
Peronistas aguardam, diante da Casa Rosada, o discurso de Perón do 1o de maio de 1974. No dia da ruptura, criticados publicamente pelo líder, os Montoneros se retiram da praça ruidosamente.
A operação, autorizada pela presidente Isabel, atribuía às Forças Armadas o papel de “neutralizar e/ou aniquilar” os “elementos subversivos” instalados na província de Tucumã. O alvo era o ERP, naquele momento promovendo a guerrilha nas montanhas. Rapidamente, montoneros, sindicalistas, estudantes e religiosos foram também enquadrados na categoria de “subversivos”, tornando-se alvos do Operativo. Muitos consideram esse o ponto de inflexão em direção ao terror de Estado como política oficial. O Operativo Independência atuou até 1977 e alcançou seu objetivo: derrotar o ERP, eliminando seus militantes. Cerca de 656 pessoas foram “desaparecidas” pelos militares em Tucumã. Deles, 75% eram operários de fábrica ou da construção civil e peões rurais.
Centros Clandestinos de Detenção (CCD) – os militares prepararam locais específicos para prender, torturar, matar e eliminar corpos, preocupados em não deixarem provas que pudessem mais tarde vinculá-los aos crimes cometidos na “guerra suja”. Em 1976, existiam 610 CCDs, meses depois recuaram para 364. Em 1977 eram 60; 45 em 1978; 7 em 1979; e em 1980 restavam apenas a Escola Superior de Mecânica da Armada, a temível ESMA, e El Campito (ou Campo de Maio). No final, em 1982 e 1983, só a ESMA.
A inflação subia junto com o custo de vida e as atividades econômicas se retraíam, amplificando a insatisfação social, quando o senador Italo Luder assumiu provisoriamente o cargo presidencial. Lembrando a figura do presidente uruguaio Juan María Bordaberry, ele aceitou as exigências de ceder aos militares, assinando decretos que estendiam a todo o país o poder das Forças Armadas para combater o “inimigo interno”.
Ali, em segredo, o chefe do Exército argentino, general Jorge Rafael Videla, traçou com o auxílio de assessores militares americanos e franceses a Estratégia Nacional de Contra Insurgência. Nela, estava previsto prescindir das leis e garantias constitucionais em nome do combate ao “inimigo interno”, incluindo agir na clandestinidade e ignorar as autoridades legais.
A operação destinada a coordenar as ações das ditaduras do Chile, Uruguai, Brasil e Argentina começa a se estruturar. A Triplo A foi uma ativa colaboradora nas ações de sequestro e desaparecimento de militantes de esquerda e outros opositores das ditaduras. O número de mortos não deixa dúvida sobre a eficácia dos agentes argentinos. A maior parte das vítimas uruguaias, sobretudo Tupamaros, foi eliminada em solo argentino, assim como os chilenos do MIR. O projeto de fazer dos Andes uma rota de fuga para militantes políticos e guerrilheiros foi rapidamente interrompido pelos agentes de repressão. (Leia mais sobre a Operação Condor nos dossiês sobre as ditaduras no Brasil, Uruguai e Chile)
Imediatamente o Congresso foi fechado. Governadores, deputados e membros da Suprema Corte foram destituídos. Isabel Perón foi posta em prisão domiciliar. Dias depois, a pena de morte foi adotada, enquanto conselhos de guerra temporários foram criados para auxiliar no “julgamento” sumário dos acusados e na repressão às ações mais radicais de oposição.
A fim de evitar disputas internas, as Forças Armadas se uniram em uma Junta Militar, a verdadeira responsável pelo comando do país até 1983. Suas faces eram o almirante Emilio Eduardo Massera (à esquerda), o general Jorge Rafael Videla (no centro), e o brigadeiro-general Orlando Ramón Agosti (à direita)
Começa o período mais sombrio da história argentina, quando o aparelho de Estado foi deliberadamente convertido em máquina de assassinar pessoas em nome de combater a “subversão comunista” e o “ateísmo”. A consciência do crime era tão evidente que seguia uma orientação torpe: sem prova, não há crime, e sem corpo, não há prova – logo, as pessoas “desapareciam”.
A ESMA como CCR – Um edifício independente na Escola Superior de Mecânica da Armada (ESMA), o Cassino dos Oficiais, foi transformado em Centro Clandestino de Repressão. Dadas as múltiplas instalações, como uma enfermaria, e a existência de um campo de pouso, o local se converteu no maior centro de tortura da ditadura. Estima-se que 5 mil prisioneiros tenham passado por ali, a maior parte assassinada nos “voos da morte”. Enquanto a escola da marinha funcionava normalmente, fornecendo um álibi para as movimentações no local, a enfermaria era usada tanto para cuidar dos ferimentos provocados pelas sessões de tortura quanto para que as presas grávidas pudessem dar à luz seus filhos, posteriormente sequestrados pelos militares e adotados. Atualmente as instalações físicas da ESMA são um centro de memória histórica sobre os crimes da ditadura.
Para não deixar vestígios, os agentes da repressão faziam o possível para desaparecer com os corpos e os registros escritos dos presos. Uma das formas mais chocantes consistia em drogar os prisioneiros para depois arremessá-los, ainda vivos, de aviões da Marinha sobre o Atlântico ou o Rio da Prata. Tais voos aconteciam às quartas-feiras, entre 1977 e 1978. Estima-se que pelo menos 6 mil pessoas tenham sido eliminadas dessa forma.
Em 1995, o ex-agente da ESMA Adolfo Scilingo contou ao jornalista Horácio Verbitsky a metodologia de extermínio. O testemunho foi publicado como livro, intitulado O voo. Eis um trecho:
“Qual foi o seu primeiro conhecimento sobre os voos da morte da Esma?
-Os voos foram comunicados oficialmente por Mendía (vice-almirante) poucos dias depois do golpe militar de março de 1976. Informaram que o procedimento para a gestão dos subversivos na Marinha seria sem uniforme. Foi explicado que, na Marinha, os subversivos não seriam fuzilados, pois não se queria ter os problemas sofridos por Franco na Espanha e Pinochet no Chile. Também não se podia ir contra o Papa, mas a hierarquia eclesiástica foi consultada e foi adotado um método que a Igreja considerava cristão: pessoas que decolam num voo e não chegam ao destino. Perante as dúvidas de alguns oficiais, explicava-se que os subversivos seriam atirados em pleno voo. Após os voos, os capelães tratavam de consolar os oficiais recordando um preceito bíblico que fala em “separar o joio do trigo”.
Tudo começou com uma dúzia de mães que se conheceram nas portas dos Centros de Detenção buscando informações sobre seus filhos e filhas que haviam sido presos. Sem respostas, essas mulheres decidiram postar-se frente à Casa Rosada, sede do governo, para chamar a atenção das autoridades. Alertadas sobre a ilegalidade de permanecerem paradas naquele local, decidiram ir para a calçada do outro lado da rua, onde ficavam andando em círculos. Enquanto realizavam marchas semanais, as mães iniciaram uma campanha internacional para desafiar a propaganda distribuída pelo regime militar. Cobrindo a cabeça com lenços brancos, símbolo das fraldas de seus filhos, e munidas de cartazes com suas fotos e nomes, essas mães iniciaram o primeiro movimento em defesa dos direitos humanos no período mais brutal da repressão. A ditadura qualificava-as como loucas (“las locas”).
“Ao circularem, derrotaram a ditadura, e a essa volta (na Praça) devemos a democracia”, declarou Mabel Careaga, filha de uma das fundadoras das Mães da Praça de Maio
Nesse dia, as Mães da Praça de Maio publicam um anúncio de jornal com os nomes de seus filhos desaparecidos. Na mesma noite, Azucena Villaflor – a mentora inicial do grupo – foi sequestrada por homens armados. Esther Careaga e María Eugenia Bianco, duas outras “Mães”, também sumiram. As freiras francesas Alice Domon e Léonie Duquet foram sequestradas por terem se unido àquelas mulheres que buscavam seus filhos. Desde o início, suspeitava-se que elas tinham sido levadas para a ESMA. O desaparecimento das freiras provocou cobranças e críticas do governo francês e a atenção da opinião pública internacional. Enquanto multiplicavam-se as vozes pedindo uma investigação da ONU sobre violações dos direitos humanos no país, o general Videla negava qualquer envolvimento do governo com os desaparecimentos.
O imprevisto é que os corpos às vezes eram levados pelas correntes até as praias e encontrados por civis. A ação das forças de segurança era rápida: todos eram enterrados sem qualquer identificação em valas comuns e as testemunhas eram aconselhadas a “esquecer o que viram”. Em 2005, antropólogos forenses desenterraram alguns desses corpos. Por meio de testes de DNA, identificaram Azucena Villaflor, Esther Careaga e María Eugenia Bianco.
Na final, vitória da seleção argentina, no estádio Monumental de Nùñez, a menos de um quilômetro da ESMA. A cena dos gritos de júbilo que explodem no apito final encobrindo os gritos dos torturados é um clichê. Sem cumplicidade: a seleção holandesa, vice-campeã, deu as costas ao general Videla na hora da premiação
Em 1966, a Argentina foi escolhida para sediar a Copa do Mundo de 1978. Os militares exploraram o evento esportivo, aproveitando a visibilidade para enaltecer o regime. O general Videla foi a todos os jogos, torceu, humanizou-se, foi aplaudido. Vários membros do governo aproveitaram também as oportunidades de negócios para enriquecerem. A dívida externa argentina deu um salto após o evento esportivo, o que cobraria seu preço em inflação e desgaste do governo. Antes disso, as Mães da Praça de Maio expuseram a Junta Militar à reprovação mundial, falando com os repórteres encarregados da cobertura do Mundial. As reportagens trouxeram inúmeras histórias de violação de direitos humanos, geralmente brutais.
A CIDH, organismo da OEA, foi autorizada pelo governo a visitar o país, em uma tentativa de reduzir as críticas externas. Apesar do clima repressivo, a comissão recebeu mais de 5 mil denúncias.
Reconheceu que havia graves violações de direitos humanos no país, o que resultaria em algumas sanções na ONU.
A Multipartidária foi uma frente suprapartidária e sindical organizada no início de 1981, sob o amparo da Igreja Católica, para pedir um plano concreto de redemocratização para o país. A palavra-chave oferecida pela Igreja era “reconciliação”.
Indicado pela Junta Militar para assumir a presidência em substituição a Videla, cujo comando acumulava maus resultados tanto no cenário político quanto econômico, com destaque para o rápido empobrecimento das classes média e baixa em razão do aumento do custo de vida e do congelamento de salários. A unidade das Forças armadas começava a se romper.
Silenciados desde o golpe de 1976, os trabalhadores argentinos já não suportavam mais o quadro persistente de inflação elevada, salários arrochados e proibição de manifestação. Numa iniciativa coordenada com a Frente Multipartidária, a peronista CGT chama um protesto sob o lema “paz, pão e trabalho”. Milhares de pessoas se unem às manifestações. As forças de segurança abrem fogo contra os cidadãos, mas fica evidente que a situação do governo aproxima-se de um impasse.
Diante da crise do regime, Galtieri recorre à carta do nacionalismo. Soldados argentinos ocupam as ilhas Falkland/Malvinas. Menos de 48 horas depois de protestar contra o governo, os portenhos invadiram novamente as ruas da capital, dessa vez para celebrar a notícia de que Forças Armadas haviam ocupado e retomado o controle sobre as ilhas Malvinas. A tecla das Malvinas toca na alma do nacionalismo argentino, e a tomada das ilhas revelou-se capaz de atrair o apoio até das esquerdas. Ponto para Galtieri: a nação uniu-se contra o “imperialismo britânico”. Mas a aventura militar resultaria em completo fracasso, acelerando a derrocada da ditadura.
A primeira-ministra britânica Margaret Thatcher, prestes a enfrentar uma eleição e com baixa popularidade, vê a oportunidade de obter uma vitória consagradora e aprova o envio de uma força naval expedicionária ao Atlântico Sul.
Em decisão de ampla repercussão em todo o continente americano, o presidente Ronald Reagan declara apoio ao Reino Unido. Entre os compromissos da OTAN e os tratados de apoio recíproco da Organização dos Estados Americanos (OEA), Washington fica com os primeiros.
O submarino HMS Conqueror atinge e afunda o cruzador argentino General Belgrano provocando a morte de 323 argentinos; outros 680 foram resgatados.
Em rede nacional, Galtieri anuncia a rendição argentina na Guerra das Malvinas
Morrem 20 tripulantes britânicos. Pouco depois, um caça britânico é derrubado.
A visita papal tinha duas missões. A primeira: prosseguir a mediação do Sumo Pontífice no litígio entre Argentina e Chile sobre o Canal de Beagle. A segunda: ajudar a “preparar o espírito” dos argentinos para a iminente derrota na guerra.
Tropas britânicas entram em Port Stanley, a capital das Malvinas. As tropas argentinas são derrotadas. Cerca de 9.800 soldados, famintos e exaustos, entregam suas armas. No final, em apenas 74 dias de conflito, morreram 649 soldados argentinos, 255 britânicos e 3 kelpers (locais).
A derrota torna insustentável a manutenção de Galtieri, a “face da guerra”, na presidência. As divisões internas se intensificam e o novo presidente, general Reynaldo Bignone, conta somente com o apoio do Exército. A ambição de Bignone era conduzir a transição para a democracia, preservando-se como guardião das Forças Armadas, mas a situação econômica no país é cada vez mais difícil e os protestos nas ruas se multiplicam. Os militares convocam eleições livres para o ano seguinte.
Também chamada “lei de autoanistia”. Os militares tentam se proteger de julgamentos pelos crimes cometidos anistiando todos os militares pelos atos cometidos entre 1976 e 1983. Os peronistas apoiaram essa lei, numa decisão que teria elevados custos políticos.
Uma das primeiras ações do novo presidente foi criar essa “comissão da verdade” para investigar os crimes cometidos pela ditadura e orientar a punição dos responsáveis. Em seguida, o Congresso revogou a Lei de Pacificação Nacional, dando início aos primeiros processos contra elementos da Junta Militar. A CONADEP produziu o documento denominado “Nunca Mais”. O relatório apontou cerca de 9 mil vítimas fatais da ditadura. O número foi posteriormente revisto para 30 mil, hoje a estimativa geralmente aceita.
Proposta por um Alfonsín sob forte pressão dos militares e aprovada pelo Congresso, a lei estabeleceu a prescrição dos crimes de responsabilidade sobre atos cometidos entre 1976 e 1983 que não tivessem sido denunciados “antes de 60 dias corridos a partir da data de promulgação da lei”. Milhares de pessoas saíram às ruas pelo país para protestar contra a súbita interrupção no processo de justiça. Eles a chamavam de “lei da impunidade”.
Complementando a anterior, impedia a punição de qualquer crime cometido por membros das Forças Armadas.
Em 8 de dezembro de 2005, no final da 25ª Marcha Anual da Mães os restos mortais de Azucena Villaflor foram enterrados na Praça de Maio. Sua filha explicou: “Aqui [na Plaza] é onde minha mãe nasceu para a vida pública e aqui ela deve ficar para sempre. Ela deve ficar para todos“
Das crueldades cometidas pelos militares e paramilitares, o sequestro de crianças introduz o elemento de terror a história sinistra. Se os pais eram “desaparecidos”, os filhos deveriam desaparecer igualmente. Muitas dessas crianças foram adotadas e criadas pelas famílias dos algozes de seus pais! E enquanto isso, as Mães da Praça de Maio tornaram-se cada vez mais as “Avós da Praça de Maio”, porque com o tempo as buscas concentram-se nas crianças.
As Forças Armadas orientavam os agentes da repressão a encaminhar as crianças de até quatro anos para adoção por familiares de militares. Estima-se que cerca de 500 crianças tenham sido distribuídas entre elas, com a identidade alterada. Até hoje, realizando um trabalho que coteja material genético e depoimentos e investiga denúncias, as Avós da Praça de Maio já localizaram 119 filhos de pais mortos pela ditadura. A história parece ter final feliz mas é traumática. Nem todos os “suspeitos” admitiram submeter-se aos testes, não queriam descobrir que seus pais eram monstros. Para algumas das Avós da Praça esse foi um momento muito frustrante.
O relatório da CONADEP é cuidadoso nas informações sobre os presos e desaparecidos. Olhando números, constata-se que os trabalhadores foram expressivamente vitimados pela ditadura, demonstrando que a máquina de repressão tinha um foco. Somando-se as porcentagens dos desaparecidos operários (30,2%), com os empregados (17,9%) e com os docentes (5,7%) tem-se um total de 53,8% sem contar os estudantes que já exerciam trabalho remunerado.
No Decreto Secreto nº 504/77, intitulado “Continuação da Ofensiva Contra a Subversão”, estava escrito “O Exército agirá seletivamente sobre os estabelecimentos industriais e empresas do Estado, em coordenação com os organismos estatais relacionados ao a, para promover e neutralizar as situações conflitivas de origem trabalhista, provocadas ou que possam ser exploradas pela subversão, a fim de impedir a agitação e a ação insurrecional de massas, e contribuir para o eficiente funcionamento do aparelho produtivo do País.” (Fonte: Marcos Vinicius Ribeiro/ANPUH)
De acordo com o relatório de Direitos Humanos da organização Human Rights Watch publicado em 2014, o número de condenados por crimes cometidos durante a ditadura era de 416, entre militares e civis, até setembro de 2013. Muitos processos ainda estão em andamento (dados de 2017). Os ex-presidentes Jorge Rafael Videla e Reynaldo Bignone foram condenados à prisão perpétua e morreram cumprindo pena.
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