Atualmente, o sistema penitenciário brasileiro contribui para o aumento da insegurança no país, ou seja, ele contraria sua própria missão. Isso não se dá por acaso. Nossa Constituição, em seu artigo quinto, diz que ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante e que é assegurado aos presos o respeito à integridade física e moral. Porém, parte significativa da população e, por conseguinte, de seus representantes entende que o preso deve sofrer, como se a pena tivesse caráter vingativo e não de punição proporcional e de ressocialização.
Vingança não é justiça. Essa identificação equivocada é um dos fatores que geraram o abandono dos presídios nas últimas décadas. Hoje, em grande parte das unidades prisionais, as condições são degradantes e sub-humanas, solo fértil para o surgimento e fortalecimento das principais organizações criminosas nacionais. Inicialmente, alguns dos principais grupos criminosos surgiram para defender os direitos violados dos próprios presos. Hoje, eles controlam a maioria dos presídios, e de lá recrutam mão de obra, muitas vezes de forma coercitiva; corrompem e coagem agentes penitenciários e determinam a prática de crimes por seus integrantes do lado de fora dos muros das prisões.
Segundo o Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias publicado pelo Ministério da Justiça, ao menos 726 mil pessoas estão presas no Brasil, o que nos coloca em terceiro lugar no ranking de países com o maior número de encarcerados, perdendo apenas para os Estados Unidos e a China. A maioria dos presos é jovem e 75% do total não chegou ao ensino médio. No caso das mulheres presas, 74% têm pelo menos um filho. Entre o início dos anos 1990 e o ano de 2016, o número de presos aumentou 707%, o que ocasionou um déficit de vagas de quase metade do número de presos atualmente.
Fonte: Ministério da Justiça, Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias , junho de 2016
Nesse mesmo período, nossos índices de segurança tiveram deterioração considerável, nos levando em 2017 ao marco de mais de 63 mil mortes violentas intencionais por ano. Outros indicadores criminais também bateram recorde, incluindo o de mortes ocasionadas pelas polícias, que ultrapassaram a marca de 5 mil no mesmo ano.
Quando analisamos as estatísticas verificamos que aumentar penas, prender mais e matar mais “bandidos”, receita defendida e aplicada pelos governantes nos últimos anos (com apoio considerável da população) já vem sendo aplicada, mas sem trazer os resultados que promete. Essas medidas, em sua maioria sem respaldo técnico, além de abrir brechas perigosas para a democracia, acabam por permitir e premiar o uso excessivo da força pelos agentes de segurança pública e geram graves violações de direitos, em especial dos públicos vulneráveis de nossa sociedade. Elas também distraem a população, que desconhece as ações que de fato trariam mais paz, e fazem com que os governos não se esforcem em implementar um verdadeiro plano de segurança pública com ações e metas para todos os entes da federação.
A questão crucial sobre nossa política penitenciária não é parar de prender e sim prender melhor. Com o fracasso da receita tradicional e já amplamente aplicada contra o crime, impera a sensação de impunidade, que tem lastro na realidade, em muitos casos. O grande número de presos e a impunidade só podem coexistir porque estamos errando o foco.
Ao olharmos os tipos penais que levam ao cárcere, percebemos que apenas 11% correspondem a assassinatos. Crimes contra a vida têm taxa muito baixa de elucidação em nosso país, cerca de 20%. Menor ainda é a taxa de condenação. Não chega a 10%. No país mais homicida do mundo, o foco das investigações e prisões deveria estar no crime violento e no crime organizado, pela dimensão do dano que geram à sociedade. Para esses, há sim algumas mudanças no código penal a serem avaliadas.
Mas não é essa a escolha de nossos governantes. Temos gasto grande parte dos recursos policiais e dos operadores da justiça criminal em crimes relacionados à Lei de Drogas, em sua maioria cometidos sem violência. Mais de um quarto dos homens e quase dois terços das mulheres presas respondem a algum artigo da lei número 11.343/2006.
É um engano imaginar que estamos falando de uma maioria de grandes traficantes. Os casos mais recorrentes envolvem prisões em flagrante com pequenas quantidades de drogas e sem porte de armas. A lei de 2006 aboliu a pena de prisão para usuários de drogas, mas manteve criminalizado o porte para consumo pessoal. Isso significa que o usuário ainda é alvo da ação policial e, no melhor dos casos, quando apreendido, tem seu processo encaminhado aos Juizados Especiais Criminais, os JECrims, o que consome os escassos recursos policiais e do sistema de justiça criminal.
Não é incomum usuários de drogas, em especial negros e pobres, serem enquadrados sem provas ou investigação como traficantes. A presunção da inocência não é aplicada nesses casos. Essa Lei de Drogas aumentou a pena de prisão para traficantes mas, ainda que mencione critérios como a natureza da substância portada e sua quantidade, não apresenta parâmetros objetivos para orientar a distinção entre uso e tráfico.
A ausência dessa diferenciação objetiva foi fator determinante para a explosão no número de pessoas presas por tráfico. O Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias informa que, enquanto a população carcerária cresceu 43,1% entre o final de 2006 e 2014, o número de presos por tráfico de drogas aumentou 132,3%. Isso gerou um acréscimo tanto do número total de presos no sistema quanto do tempo que eles permanecem na prisão.
Um estudo feito pelo Instituto de Segurança Pública do Rio de Janeiro ilustra bem o impacto da Lei de Drogas sobre a operação da polícia. Os registros de tráfico são os mais comuns no estado, e em 2015 responderam por 52% do total de ocorrências sob a lei de drogas. Foram mais de 13 mil no ano. As relacionadas à posse ou uso totalizaram mais 12 mil, no mesmo ano. Mesmo nos casos em que os policiais identificam um consumidor portando quantidade muito pequena de maconha ou outra droga, eles precisam conduzir a pessoa à delegacia e o tempo de registro da ocorrência pode ser de mais de três horas, prejudicando diretamente o patrulhamento. Além da Polícia Militar, são acionados outros recursos policiais: delegado e escrivão da Polícia Civil e perícia para confirmar a natureza da substância. Depois da etapa policial, serão envolvidos ainda um juiz, um promotor e um defensor, caso o usuário não tiver condições de arcar com o custo de um advogado.
A análise das apreensões de drogas também evidencia como são consumidos os recursos da segurança pública. Em 50% das ocorrências em 2015, foram apreendidas até dez gramas de maconha a cada atendimento. Se o Brasil adotasse o parâmetro de Portugal, onde a posse de 25 gramas de maconha é considerada legal, 60% das apreensões feitas no Rio de Janeiro em 2015 não demandariam ação policial.
Estudo do Instituto Igarapé registra: em apenas 1% das operações em que houve apreensão de maconha no estado entre 2010 e 2016 foi responsável por 85% do volume apreendido desta droga ao longo do período. Foram, em sua maioria, ações com envolvimento de inteligência e planejamento. Os outros 99% das operações apreenderam os 15% restantes, em sua maioria ocorridas em flagrantes durante patrulhas, sem investigação prévia. Fica claro que o foco da repressão às drogas precisa ser no atacado e não no varejo. Só assim poderemos realocar o efetivo policial para lidar com a prevenção e repressão ao crime organizado e ao crime violento.
A Lei de Drogas contribui parcialmente para outra situação que colabora para o colapso do sistema penitenciário brasileiro: o grande percentual de presos aguardando julgamento. Em cada dez presos, quatro ainda não tinham condenação. Dentro dos presídios, presos provisórios e pessoas que cometeram crimes de baixo potencial ofensivo – que podem inclusive ser absolvidos, ter o direito de responder em liberdade ou de cumprir penas alternativas à prisão – são privados de liberdade, o que muda para sempre sua vida.
A política penitenciária baseada no encarceramento em massa produz mais criminosos. O encarceramento tem impactos brutais na saúde física e mental, nas relações e condições de vida familiares e na capacidade de (re)inserção no mercado de trabalho. E, como já mencionado, na maioria dos presídios eles entram em contato com facções criminosas. Os grupos, capazes de apresentar benefícios e ameaças, ocupam vazio deixado pelo Estado – e, assim, se fortalecem no espaço que supostamente deveria enfraquecê-los.
Dessa forma, voltamos ao nosso desafio inicial de como fazer com que as prisões cumpram a sua função: efetivar a sentença e proporcionar condições para a integração social do condenado e do internado. O endurecimento penal não é apenas insuficiente para conter a violência, como pode agravá-la. Dizer isso não é defender a impunidade. Há diversas formas de punir, e a pena precisa ser proporcional ao delito. As ciências criminais indicam que o importante não é o tamanho da pena, e sim a certeza de que ela existirá. Para melhorar a gestão dos presídios e diminuir a criminalidade e a reincidência criminal, temos muito a fazer.
Para começar, precisamos garantir o controle do Estado dentro dos presídios. Para tal é necessário fortalecer a gestão do sistema prisional, enfrentando o domínio de facções nas unidades. Isso inclui o combate à corrupção de agentes prisionais, o uso de tecnologias como bloqueadores de celular, videomonitoramento, entre outras.
E é fundamental fazer cumprir a Lei de Execução Penal e garantir a separação física do preso provisório daqueles permanentes, além da separação dos presos condenados de acordo com a gravidade do crime cometido. O Judiciário também precisa redobrar o esforço para reduzir o contingente de presos que aguardam julgamento por meio de mutirões carcerários, audiências de custódia e maior eficácia nos processos de justiça criminal.
É preciso priorizar a prisão de indivíduos cuja liberdade possa de fato se traduzir em violência e grandes danos coletivos, e aplicar outros tipos de pena para crimes sem violência de menor potencial ofensivo. Em termos práticos, é necessário investir pesado nas perícias para melhorar a investigação e inteligência policial. Autores de crimes violentos e líderes de grupos criminosos precisam ser identificados e presos.
É urgente que sejam criadas, em cada estado da federação, Centrais de Penas e Medidas alternativas à prisão. A criação de novas vagas no sistema penitenciário precisa ser feita de acordo com a diretrizes da lei, inclusive garantindo condições sanitárias, espaço e ações de formação, capacitação profissional e oportunidade de trabalho para os presos, com foco na diminuição da reincidência criminal.
Para isso, é fundamental que se crie uma política integral de apoio a egressos no sistema penitenciário. Combinar esses tipos de iniciativa com uma concepção restaurativa da Justiça pode começar a resolver o problema prisional brasileiro, impactando positivamente a segurança pública. Outros modelos penais têm dado resultados positivos e precisam ser estudados. É o caso da justiça restaurativa e das Associações de Proteção e Assistência a Condenados (APACs), modelo humanizado de prisão que têm índice de reincidência mais baixo do que as prisões tradicionais. E não se pode esquecer do sistema de medidas socioeducativas, que recebe crianças e adolescentes entre 12 e 18 anos, e também está sucateado. Fortalecê-lo em todos os seus aspectos com o intuito de oferecer oportunidades reais de educação e ressocialização de adolescentes em conflito com a lei faz parte da receita de sucesso que precisamos implementar.
Precisaremos também revisar a Lei de Drogas de 2006. Trata-se de criar critérios objetivos que diferenciem traficantes de usuários, e parar de lidar com o consumo de drogas na esfera criminal – mas sem criar mecanismos judiciais de internação compulsória. Outro ponto que merece atenção é a proporcionalidade da punição. O crime de tráfico de drogas funciona como um grande guarda-chuva. Engloba desde as mulheres que, muitas vezes coagidas, transportam drogas para dentro do presídio ou aceitam guardar drogas em casa para garantir proteção ao companheiro preso até o tráfico internacional, passando por serviços de segurança para lideranças do negócio ilegal.
Nem todo envolvimento com o tráfico de drogas é violento ou hediondo. As penas precisam ser diferentes para as diversas funções da cadeia de produção, transporte e venda de drogas. Certamente essas mudanças teriam impacto significativo nesse cenário.
Por fim, temos muito a avançar em nossa legislação penal, mas com cautela. Alguns pontos do Pacote Anticrime apresentando pelo ministro da Justiça no início do ano legislativo são muito bem-vindos. Outros, porém, merecem atenção e amplo debate.
Além da pauta legislativa, há muito o que avançar no lado do executivo. É urgente que se apresente, em paralelo ao pacote legislativo, um plano nacional de segurança pública que vá na direção de fortalecer o sistema único de segurança pública (SUSP) e a política nacional de segurança pública aprovada em 2018, e que atue na prevenção e redução da violência. Para tanto, além de investir em corporações policiais e no sistema penitenciário, é preciso pensar na integração, em nível local, com políticas públicas de educação, assistência social e saúde mental.
Há ações para cada ente federativo e para cada poder do Estado, além da sociedade civil organizada. Afinal, é interesse de todos construir um país mais seguro e menos violento.
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