MULHERES NA PRISÃO

 

Fernanda de Avila e Silva

(Advogada e idealizadora dos projetos Me Conta Direito, que explica as leis para o grande público, e Café com Axé )
20 de janeiro de 2020

 

O Brasil tem hoje a quarta maior população de mulheres na prisão no mundo: quase 44 mil detentas. Pode parecer pouco, comparado ao universo penitenciário masculino, vinte vezes maior. Apesar da diferença numérica, homens e mulheres têm perfil bastante parecido: são predominantemente jovens, negros, pobres, com baixa escolaridade e, em sua grande maioria, presos por envolvimento com o tráfico de drogas.

O número de mulheres detidas por associação com o tráfico vem crescendo exponencialmente, sugerindo que muitas jovens têm encontrado ali uma fonte de renda rápida para sustentar a família, com horário de trabalho flexível. Ainda prevalecem os incontáveis casos de mulheres que ajudaram os companheiros traficantes e acabaram presas elas mesmas, muitas vezes tentando entrar na cadeia com algumas quantidade irrisória de droga ou outros itens proibidos para o parceiro.

Essas mulheres presidiárias passam a sofrer todos os problemas e carências já conhecidas do sistema prisional brasileiro, com agravantes relacionados ao gênero. Cerca de 80% das presas são mães e seus filhos são os maiores penalizados, pois não podem permanecer com elas, comprometendo um vínculo emocional fundamental para todo o desenvolvimento posterior. Mesmo saindo da cadeia e restabelecendo o convívio, a culpa materna por ter, de certa forma, estendido sua punição aos filhos, ao contrário do tempo passado na cadeia, é um castigo sem prazo para acabar. 

E que tal ser mantida algemada durante o trabalho de parto na maternidade? E usar miolo de pão como absorvente higiênico? E ser esquecida pelo homem amado e pela família, porque uma mulher criminosa é uma desonra pior que a de um homem criminoso? A vida nos presídios brasileiros é “medieval”, como já reconheceu um ex-ministro da Justiça – mas, para as mulheres, é ainda pior.

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Caminhos do cárcere

Nossa sociedade não se interessa pelo que acontece dentro das prisões. Prevalece a opinião de que presas e presos têm o que merecem, por mais terríveis que possam ser as notícias que chegam pelos jornais e TVs. Esse pensamento desconsidera o fato de que para o Estado de Direito não existe a categoria “humanos direitos”, ele reconhece que a dignidade humana deve ser igual para todos, e que há um mínimo denominador comum que precisa ser preservado no tratamento a qualquer pessoa.

As histórias das mulheres na prisão apresentam muitos pontos em comum, começando pela situação de total vulnerabilidade sócio-familiar. Geralmente trabalhavam em algum setor da economia legal, mas seu ganho não era suficiente para arcar com as próprias despesas nem de seus filhos. Comumente, são chefes de famílias monoparentais, ou seja, as únicas responsáveis legais pela manutenção da família sob todos os aspectos (financeiro, emocional e material). É uma marca da sociedade brasileira nos setores de baixa renda a forte presença de famílias estruturadas apenas sobre as figuras das mães e avós. Já nas famílias onde o homem está presente, há grande incidência de violência doméstica e, pelos mais variados motivos, as mulheres declaram não conseguir se desvincular de seus agressores.

A história mais relatada pelas presidiárias para explicar como chegaram ali é a da jovem que, por falta de orientação, informação ou acesso a métodos contraceptivos, engravidou jovem demais, tendo que abandonar os estudos; casou-se ou juntou-se com o pai de seu(s) filho(s) por um tempo; sofreu com a violência doméstica. E dois desenlaces básicos: acabou entrando na história quando começou a aceitar as implicações da atividade do companheiro traficante (o envolvimento com o tráfico começa, para elas, em doses homeopáticas, e quando se dão conta a negociação da droga já está acontecendo dentro da sua casa), ou abandonou o lar com uma criança nos braços e, na tentativa de sobreviver sozinha, viu o tráfico como a solução financeira para que ela e seu(s) filho(s) pudessem sobreviver.

 

Usadas e esquecidas

A maioria das mulheres acaba na prisão pelo uso de drogas (muitas vezes são apenas consumidoras, porém envolvidas com pessoas que participam ativamente do mundo do tráfico) ou por exercer as funções de bucha (pessoa que é presa por estar presente em cena na qual são efetuadas outras prisões), mula ou avião (transportam a droga, em geral sem conhecer ou ter o poder de definir a natureza da droga e muito menos da quantidade transportada) e outras de escassa importância na escala hierárquica do mundo do crime.

Em especial as mulheres que aceitam a função de transportar drogas o fazem cientes do risco. É muito comum, aliás, que sejam utilizadas para transportar quantias insignificantes de drogas e que sejam “deletadas” pelos próprios traficantes para servirem como “cortina de fumaça” enquanto carregamentos muito maiores chegam ao mesmo local.

No tráfico internacional é muito comum o aliciamento de mulheres portadoras de HIV para transportar as drogas. Além da situação de extrema vulnerabilidade, o argumento para convencê-las a exercer esse trabalho é de que, no território brasileiro, mesmo sendo descobertas e indiciadas, elas receberão tratamento para a doença já que o Brasil é pioneiro nesse setor. Podem ser presas, mas irão escapar da morte.

A mulher presidiária é, majoritariamente, jovem (18 a 34 anos), negra (63,55%), pobre e com baixa ou nenhuma escolaridade (apenas 1,5% com ensino superior completo), solteira (ou separada/divorciada/viúva), mãe de um ou mais filhos. Cerca de 60% das mulheres custodiadas no Brasil foram indiciadas por tráfico de drogas. Entre esses casos, quase 38% estão presas sem sentença condenatória.

Mulheres na prisão

Fonte: Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias, junho 2017

 

Existe no imaginário das pessoas, a ideia de que as mulheres encarceradas seriam às “chefonas do tráfico”, semelhantes àquelas personagens que aparecem nas novelas e séries da TV. É verdade que existem algumas que ocupam posições superiores na escala hierárquica, mas o número é realmente insignificante quando comparado ao contingente de mulheres indiciadas por tráfico. Elas são a exceção que a sociedade enxerga como regra.

No mundo do trabalho ilegal, as mulheres exercem funções subalternas e ganham menos, sem nenhum poder de decisão, sempre subordinadas aos mandos e desmandos dos líderes masculinos. Para o tráfico, a imagem da mulher doce, submissa e maternal é muito útil, pois as torna menos suspeitas. Por isso, são muito usadas para repassar a droga ao consumidor final, momento de maior exposição ao flagrante policial.

Cor de pele da população carcerária feminina

Fonte: Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias, junho 2017

Isso explica, em parte, o aumento assombroso de mulheres presas por tráfico de drogas nos últimos anos, especialmente quando comparado aos números masculinos. Em 2000, havia 6 mil mulheres presas; em 2017, mais de 43 mil, um aumento superior a 600%. E temos o agravante, de responsabilidade do Estado, de um sistema de justiça extremamente moroso, que mantém privadas de liberdade quase 20 mil mulheres (45% do total) que aguardam julgamento. Muitas delas cometeram crimes de baixo potencial ofensivo e poderiam cumprir penas alternativas; e quando são efetivamente condenadas já cumpriram uma pena mais grave do que lhes cabia. E os juízes são bem rigorosos nas penas aplicadas às mulheres.

Escolaridade da população carcerária feminina

Fonte: Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias, junho 2017

 

O papel da mulher 

O estereotipo feminino sugere que as mulheres cometem menos crimes. Porém, ao fazê-lo sentirão a ira da reprovação social muito mais intensa do que se percebe em relação aos homens. Elas serão punidas por haverem se insurgido contra o papel que lhes foi imputado pela sociedade.

Começando pela ação truculenta e ríspida dos agentes de segurança, que não escondem a crença de que a mulher abandonou o seu “lugar” querendo se apropriar de uma masculinidade que não lhe pertence, afastando-se do ideal de docilidade feminina. Essa mulher presa carregará para sempre o estigma de “criminosa” e será alvo de pré-julgamentos que poderão se tornar obstáculos intransponíveis para a sua reinserção social.

É sintomático o fato de as mulheres fazerem filas para visitar seus parentes homens presos, enquanto as presas raramente recebem visitas. Os primeiros a desaparecer são os companheiros, pais dos filhos, deixando a elas a responsabilidade de criá-los sozinhas, pois estamos falando de universo onde raramente existe rede de apoio.

 

Punidas como cidadãs e como mulheres

As condições carcerárias no Brasil compõe uma história de horror. Para mulheres, homens, menores de idade, o sistema de justiça brasileiro pode ser adequado nas letras, mas é cruel na realidade. O cenário é de superlotação, infraestrutura inadequada, medonha insalubridade, acesso precário à saúde, tratamento violento, alimentação inapropriada: uma longa lista de violação de direitos humanos.

Também no sistema prisional a condição feminina impõe diferentes demandas, que são ignoradas pelo poder público. A quase totalidade dos estabelecimentos penitenciários brasileiros foi projetada para uso masculino. Mais de 50% das presidiárias estão em presídios mistos e, entre as unidades exclusivas para mulheres, poucas foram construídas pensando em questões específicas ligadas à higiene e maternidade.

As mulheres que gestam filhos na prisão praticamente não contam com acompanhamento pré-natal e dependem fortemente da ajuda das companheiras de cela para proverem as necessidades dos bebês (quando a rivalidade entre elas não constitui outro obstáculo), eles podem ter que dormir com a mãe sobre folhas de papelão postas no chão úmido das celas. As que têm a sorte de serem levadas a locais preparados para receber mães condenadas sabem que terão que entregar seus filhos a familiares ou entregá-los para adoção, quando completarem seis meses ou um ano de idade, período determinado por legislação local .

Mulheres provadas de liberdade por natureza da prisão e regime prisional

Fonte: Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias, junho 2017

Em fevereiro de 2018, a 2ª Turma do Supremo Tribunal Federal aprovou o habeas corpus coletivo que transforma a prisão preventiva em prisão domiciliar para mulheres grávidas, que tenham dado à luz recentemente, ou que sejam mães responsáveis por crianças de até 12 anos. O texto contempla também mães responsáveis pela guarda de filhos com deficiência, por tempo indeterminado. O benefício não será concedido a autoras de crimes cometidos com violência ou grave ameaça à vítima.

O relator do processo entendeu que as mães e crianças experimentam situações degradantes, privadas de cuidados médicos e reconheceu o estado inconstitucional no sistema prisional brasileiro. O Ministro Ricardo Lewandowski, em seu voto, afirmou que é necessário garantir que nenhuma pena passe para um terceiro e salientou , a situação, da maneira como está, leva a que se transfira a pena da mãe para os filhos.

Para o Coletivo de Advogados em Direitos Humanos, que impetrou o habeas corpus, “a prisão preventiva, ao confinar mulheres grávidas em estabelecimentos prisionais precários, tira delas o acesso a programas de saúde pré-natal, assistência regular na gestação e no pós-parto, e ainda priva as crianças de condições adequadas ao seu desenvolvimento, constituindo-se em tratamento desumano, cruel e degradante, que infringe os postulados constitucionais relacionados à individualização da pena, à vedação de penas cruéis e, ainda, ao respeito à integridade física e moral da presa”.

 

Problema de todos

Não adianta querer tornar invisível a população carcerária: enquanto isso, o crime organizado se estrutura em silêncio nas penitenciárias. Cedo ou tarde, os presos serão libertados e continuará a existir o desafio político e social de reduzir os elevados índices de reincidência, uma questão que diz respeito a todos e que indaga sobre que tipo de sociedade queremos ser.

Como reinserir indivíduos que cresceram em ambientes desestruturados e passaram por um sistema prisional marcado por processos incontáveis de degradação humana. Aumentar as penas, ampliando a estadia no inferno certamente não soluciona o problema, apenas adia a inevitável situação de ter que lidar com ele. 

Para as mulheres na prisão, além do estigma de indignidade, existe também o abandono familiar. É preciso se reinserir na sociedade, fazer amigos, trabalhar. Nas dificuldades que a vida impõe, muitas não conseguem se estruturar sozinhas e a reincidência torna-se uma consequência lógica que penaliza incessantemente as mesmas mulheres pobres e periféricas.

 

 

 

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