PRESÍDIOS DO AMAZONAS, A REPETIÇÃO COMO TRAGÉDIA

 

Rafael Custódio

(Advogado e pesquisador, atualmente consultor da Conectas Direitos Humanos)
3 de junho de 2019

 

Mais uma vez o estado do Amazonas surge no noticiário nacional por conta de massacres de presos, supostamente relacionados a disputa de poder entre facções criminosas em presídios. Desta vez, notícias de 26 e 27 de maio apontam que no mínimo 55 pessoas privadas de liberdade foram mortas em novo episódio que escancara a falência do sistema prisional amazonense.

A violência existente que choca a todos – e que se repete – não pode ser explicada ou justificada como algo interno à dinâmica das facções criminosas do Norte do país. É comum – assim ocorreu em janeiro de 2017 e agora novamente – que o poder público se exima de responsabilidade desses episódios de violência, terceirizando a culpa para os próprios presos. Claro que aqueles que cometeram crimes nesses contextos devem ser identificados e responsabilizados, mas a repetição desses eventos indica haver problemas estruturais que são de responsabilidade do Estado. Entre os principais, é preciso destacar a crônica falta de estrutura das prisões do estado, a política de encarceramento pouco inteligente que prende centenas de jovens pobres por crimes sem violência (como o pequeno tráfico) e não desarticula as grandes redes de criminalidade, a corrupção das forças estatais, e a falta de uma política de inteligência investigativa que desbarate o mercado do tráfico de armas e de drogas.

Presos rebelados no Complexo Penitenciário Anísio Jobim (Compaj), em Manaus, em janeiro de 2017

Presos rebelados no Complexo Penitenciário Anísio Jobim (Compaj), em Manaus, em janeiro de 2017

Todas essas frentes, somadas, indicam um poder público que não só não promove políticas públicas eficazes no combate à criminalidade como, a bem da verdade, atua como catalisador das atividades criminosas. E o sistema prisional estadual, com suas macabras histórias que se repetem, é apenas o reflexo de um Estado disfuncional, que gasta milhões de reais dos impostos recolhidos da população num espiral de mais violência e irracionalidade. Destaque-se, ainda, que as unidades amazonenses palco dos massacres são geridas pela iniciativa privada, que cobra caro do poder público por um serviço que, por razões óbvias, é injustificável.

 Agora, quando a repetição da tragédia de 2017 já está consumada, é necessário que, finalmente, as instituições amazonenses percebam que já não é possível adiar mudanças estruturais e estruturantes. Para além da necessidade urgente de responsabilização dos crimes cometidos dentro das cadeias e da indenização que deve ser paga às famílias das vítimas (já que estavam sob custodia do Estado), é fundamental que se entenda que o sistema prisional cada vez mais superlotado não é prova de combate a criminalidade. Ao contrário, ele é sintoma de uma má política criminal.

As facções criminosas do norte do país vêm se fortalecendo nos últimos anos, buscando auferir lucros cada vez maiores do tráfico nacional e internacional de drogas, favorecido pela proximidade das fronteiras com países vizinhos do Amazonas. Elas buscam cooptar jovens que vivem em situação de extrema vulnerabilidade social e são, por isso, absorvidos pela única atividade econômica que lhes aparece com facilidade.

Nesse sentido, um combate efetivo ao poder das facções passa, obrigatoriamente, pelos investimentos em políticas sociais e econômicas nas periferias das cidades, logrando uma disputa mais justa entre Estado e facção pelos mesmos jovens desamparados. Como já citado, passa também por uma reforma profunda da lógica de segurança pública, que deveria ser focada nas atividades de inteligência policial capazes de desarticular as redes de comércio de drogas e armas na região, e não no encarceramento ritual de pequenos traficantes. E, finalmente, pelo combate firme e intransigente à corrupção do próprio aparato estatal, que age como “sócio” da alta criminalidade, facilitando sua atuação e ramificações.

Trecho do estatuto da Família do Norte (FDN), principal facção criminosa do Amazonas. O crime organiza-se nas penitenciárias, seguindo os modelos do CV e do PCC

Trecho do estatuto da Família do Norte (FDN), principal facção criminosa do Amazonas. O crime organiza-se nas penitenciárias, seguindo os modelos do CV e do PCC

Em 2017, dias após os massacres nas cadeias de Manaus e região, estive na cidade realizando uma inspeção nos presídios, no âmbito de uma comitiva de entidades de defesa dos direitos humanos. O choque com as cadeias medievais só não foi maior do que constatar que a empresa privada que geria o sistema cobrava mais de R$ 4 mil/mês por preso. Era nítido e irrefutável que esses valores exorbitantes não chegavam às prisões, perdendo-se no caminho da burocracia estatal, lícita ou não.

Pouco mais de um ano após aqueles trágicos episódios, não há mais desculpas para que as autoridades amazonenses – entre elas, as do sistema de justiça local – permaneçam inertes e indiferentes a um sistema que destrói vidas e famílias, custa caro e simplesmente não produz nada de benéfico. O sistema prisional local é reflexo de uma escolha política que insiste, de modo trágico, em se mostrar cruel e burra.

A história certamente irá se repetir no futuro, se as elites políticas do estado continuarem a ignorar a gravidade do cenário local. As facções criminosas agradecem.

 

 

Parceiros

Receba informativos por e-mail