Os prisioneiros vivem sob a ameaça permanente do contágio. Não temos pena de morte no Brasil, mas essa pode ser a sentença de muitas pessoas presas, aqui e em outros lugares do mundo.
O sistema prisional é o ambiente perfeito para a disseminação do Covid-19 – um vírus respiratório, de contágio fácil, que tem sua propagação favorecida por aglomerações e baixas condições de salubridade. A negligência e demora nas ações devem gerar consequências mortais em presídios e também nas cidades que os abrigam.
Aqui, não há novidade. São frequentes as cenas e relatos de presos amontoados em celas, de restrição no fornecimento de água e do compartilhamento de produtos de higiene que deveriam ser individuais, como sabonetes. Até hoje, no entanto, terríveis imagens e narrativas não foram capazes de sensibilizar a opinião pública a ponto de provocar mudanças significativas na ação de governantes ou em nossas políticas penais.
A atual crise muda as coisas de patamar. Por um lado, agrava problemas de um sistema já desumano e ineficaz. Por outro, é uma chance de a sociedade perceber que prisões não são universos paralelos. Impactos fora dos muros, que já deveriam ser evidentes, se materializam nos caminhos percorridos pelo vírus. O contágio que ocorre dentro dessas unidades, portanto, diz respeito a toda a sociedade.
Mais de 11 milhões de pessoas estão presas em todo o mundo e prisões em ao menos 124 países estão superlotadas, mostra o Global Prison Trends 2020. O Brasil desempenha papel destacado nesse cenário, com a terceira população prisional do globo. Cerca de 755 mil indivíduos estavam privados de liberdade no país, em dezembro de 2019, de acordo com o Departamento Penitenciário Nacional (Depen). Isso é quase o dobro da quantidade de vagas disponíveis.
Quais especificidades marcam essa população? O perfil majoritário em nosso país é de homens jovens, negros e com baixa escolaridade. Parte significativa cometeu delitos sem violência ou grave ameaça. Crimes contra o patrimônio e relacionados à Lei de Drogas somam 70% das incidências registradas. Já os contra pessoas, que incluem homicídios, representam menos de 20%.
Análises globais indicam que essas tendências não são exclusividade nossa. Quando analisados os delitos que levam indivíduos às prisões em todo o mundo, apenas 7% são homicídios, sendo que o Brasil é o país mais homicida do mundo.
Já as incidências relacionadas a drogas correspondem a 20%. São mais de dois milhões de pessoas, sendo que 83% delas cumprem pena por posse de drogas para uso pessoal. Proporcionalmente, aqui e em outros países, mulheres são mais presas que homens por esse tipo de crime.
Diante dessas estatísticas, mesmo sem uma pandemia, já seria o caso de nos perguntarmos: qual o sentido de manter todas essas pessoas em prisões ante os custos econômicos e humanos envolvidos? Será que todas elas ameaçam nossa segurança?
Prender não é a única forma de punir, mas é a preferida de muitos juízes por aqui. Cerca de 30% dos indivíduos encarcerados ainda não foram sequer julgados. Muitos desses presos provisórios acabam absolvidos – e têm suas vidas marcadas para sempre. Milhares de outros cometeram crimes que poderiam ter penas diferentes da restrição de liberdade.
O coronavírus torna esse debate, literalmente, questão de vida ou morte, uma vez que a superlotação é fator para a disseminação dessa e de outras doenças. A tuberculose, por exemplo, tem incidência 30 vezes maior em presos que na população geral no Brasil. As consequências do coronavírus ainda estão sendo dimensionadas, mas já são muito preocupantes. Segundo a Fiocruz, se na população livre se estima que cada pessoa com coronavírus contamina de duas a três pessoas, nas prisões do Rio de Janeiro um caso pode gerar outros cinco.
Monitoramento do Departamento Penitenciário Nacional (Depen) mostra que, até 29 de abril, eram sete mortes, 102 casos confirmados e 157 suspeitos entre pessoas encarceradas no Brasil. O departamento contava meros 701 testes realizados. Informações divulgadas pelas unidades federativas indicam, porém, que a base de dados nacional tem demorado a refletir a realidade de maneira atualizada.
Prisão de Puente Alto, no Chile. Ali, centenas de detentos foram vítimas do contágio
Em locais como o Complexo da Papuda, no Distrito Federal, a situação é especialmente grave. Uma reportagem revela que, em três dias, 69 presos e policiais penais foram infectados. Em todo o país, milhares de servidores de unidades prisionais trabalham, muitos sem proteção individual. Esses profissionais vão e voltam das unidades todos os dias. Podem, portanto, não apenas se tornarem alvo da doença, mas também vetores, levando o vírus para suas casas, transporte público, comércio local.
O quadro de outros lugares da América Latina e dos Estados Unidos também antecipa onde podemos chegar. A prisão de Puente Alto, em Santiago (Chile), tem mais de 300 casos relatados. Em Ohio, nos EUA, há registro de que 73% das pessoas presas de uma unidade testaram positivo para o coronavírus. Casos positivos do sistema penitenciário correspondem a mais de 20% dos casos totais do estado.
As medidas privilegiadas até o momento pelas autoridades não apenas são insuficientes como, em diversos países, têm gerado rebeliões. A suspensão de visitas sem medidas compensatórias motivou fugas em São Paulo. No Rio de Janeiro, a tensão chegou ao sistema socioeducativo, que sofre de mazelas similares ao sistema penitenciário.
É necessário que as estratégias para prevenir e mitigar danos da pandemia nesses ambientes sejam ampliadas. A gestão prisional precisa fortalecer as condições de higiene e acesso à saúde, afastando propostas classificadas por juristas como ilegais, como a apresentada no Brasil, de usar contêineres para separar presos. Adicionalmente, compensar a suspensão de visitas, com fornecimento de alimentação adequada e uso de ferramentas virtuais.
Os efeitos de tais medidas dependem também que autoridades responsáveis por definir quem entra e quem sai das prisões adotem medidas de diminuição da população carcerária. No caso brasileiro, vem sendo adotada apenas de maneira limitada a recomendação do Conselho Nacional de Justiça que trata da reavaliação de prisões provisórias, da concessão de saída antecipada e de opção pelo prisão domiciliar para grupos vulneráveis. O que falta para alguns juízes compreenderem a consequência do não cumprimento dessas recomendações?
A sociedade civil também pode contribuir para a redução do contágio, por meio, por exemplo, da doação de insumos de proteção individual para profissionais que atuam nas prisões e materiais de higiene para presos. Colabora também ao auxiliar com o fornecimento de cestas básicas para egressos do sistema prisional e suas famílias, que estão em especial vulnerabilidade social.
Algumas dessas medidas têm potencial de impacto na saúde de pessoas privadas de liberdade, servidores penitenciários e seus familiares. Outras colaboram para a redução de desigualdades e, consequentemente, evitam que ciclos de violência se perpetuem. Nos dois casos, os benefícios extrapolam os limites das prisões.
A crise que vivemos deixa cada vez mais explícito como somos interdependentes. Reduzir os estragos causados por ela e garantir a nossa sobrevivência vai depender de aprendermos essa lição.
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