O projeto da nova Constituição de Cuba começou a circular publicamente no último dia de julho. O texto nasceu de um grupo de trabalho criado pelo Burô Político do Partido Comunista Cubano, em 2013, sob a presidência de Raúl Castro, e foi concluído por uma comissão da Assembleia Nacional do Poder Popular (parlamento cubano) dirigida pelo mesmo Castro. Na sua essência, a “nova” Constituição é igual à “velha”, de 1976.
A essência resume-se à combinação do terceiro parágrafo do artigo 3 (“o socialismo e o sistema político e social revolucionário, estabelecidos por esta Constituição, são irrevogáveis”) com o artigo 5 (o Partido Comunista “é a força dirigente superior da sociedade e do Estado”). A dupla trava torna sem efeito o artigo 10 (“na República de Cuba, a soberania reside intransferivelmente no povo”). De fato, o povo não detém nenhuma soberania se, constitucionalmente, deve se conformar com um sistema político, econômico e social irrevogável e com o poder incontestável do partido único.
A ironia involuntária expressa pelo artigo 10 repete-se no artigo 16, sobre os princípios que regem as relações internacionais, no qual afirma-se o direito dos povos “à livre determinação, expressa em sua liberdade de escolher seu sistema político, econômico, social e cultural”. Fora da novilíngua totalitária, é inevitável concluir que o projeto constitucional sustenta um direito à livre determinação para todos os povos, com exceção apenas do povo cubano.
Nada de novo, então? Não é bem assim. No âmbito econômico, o texto conserva os conceito de que os principais meios de produção são de “propriedade social” (novilíngua para propriedade estatal) e de que a “planificação socialista” é o elemento central da dinâmica da economia. Contudo, novidades: a propriedade privada fica explicitamente reconhecida e desaparece a referência impeditiva à “exploração do homem pelo homem”. O único limite ao empreendedorismo privado é o veto à “concentração da propriedade”.
As mudanças esclarecem algo relevante: o “irrevogável” sistema socialista foi revogado pela “força dirigente superior”, ao menos na sua forma original, antes declarada intocável. Efetivamente, aprende-se com a nova Constituição que o socialismo é o que o Partido Comunista diz que é, segundo conveniências em perpétua mutação. Ou, mais claramente: “socialismo” não passa de um pretexto para a perpetuação do sistema de partido único.
Mudar para que tudo permaneça igual. No preâmbulo, o texto afirma que “nós, cidadãos cubanos”, “guiados pelo ideário e o exemplo de Martí e Fidel, e as ideias político-sociais de Marx, Engels e Lenin”, “adotamos” a nova Constituição. Antes, Fidel permanecia mais ou menos à sombra de José Martí, o “pai fundador” da nação cubana, como se fosse seu porta-voz histórico. Agora, após sua morte, Fidel é elevado à condição de co-fundador de Cuba e o próprio Partido Comunista passa a ser qualificado, no artigo 5, como “fidelista”. Os mortos assombram os vivos, exigindo-lhes obediência eterna.
O artigo 40, que afirma a igualdade perante a lei, proíbe a “discriminação por razões de sexo, gênero, orientação sexual, identidade de gênero, origem étnica, cor da pele, crença religiosa, incapacidade, origem nacional”. Vão longe, felizmente, os tempos em que o castrismo enviava homossexuais a “campos de reeducação”. Mas há uma discriminação não mencionada, que persiste: a de opinião política. De fato, violando a Declaração Universal dos Direitos Humanos, a nova Constituição ampara a repressão à dissidência política, ao estabelecer que o Partido Comunista é a “força dirigente superior” não só do Estado como, inclusive, “da sociedade”.
Duas semanas antes da divulgação do projeto constitucional, perante o X Congresso da Associação dos Jornalistas de Cuba (UPEC), o novo presidente, Miguel Díaz-Canel, enfatizou que o Partido Comunista detém não apenas o monopólio do poder mas também o da verdade, taxando os que divergem disso como inimigos da pátria. No seu discurso, ele retomou os velhos temas da fortaleza sitiada e da herança recebida da “geração histórica” para dizer que os jornalistas independentes “não fazem parte da UPEC nem da sociedade cubana”.
O projeto de Constituição será submetido a “consulta popular” nos “bairros”, entre 13 de agosto e 15 de novembro, para depois ser votado em referendo nacional. A “consulta popular” é um jogo de cartas marcadas, no qual os participantes de assembleias serão atentamente ouvidos pelos vigilantes dos Comitês de Defesa da Revolução. O referendo, realizado sob controle absoluto do governo, dificilmente fugirá ao figurino de tantos eventos plebiscitários patrocinados por regimes totalitários. Mesmo assim, dissidentes depositam alguma esperança na conclamação ao voto “não”, embora saibam que será proibida qualquer tentativa de campanha pela rejeição do texto constitucional.
A divulgação do projeto quase coincidiu com uma coletiva de imprensa, em Miami, na qual opositores políticos cubanos de dentro e de fora da Ilha apresentaram um código de direitos e liberdades que começam a difundir em Cuba. Rosa María Payá, filha do dissidente falecido Oswaldo Payá, Orlando Luis Pardo Lazo, escritor e blogueiro, Juan Manuel Cao, jornalista, Lia Villares, do grupo Cuba Decide, e Lilo Vilaplana, cineasta, explicaram que o código se inspira na Declaração Universal de 1948 e será exibido em plataformas digitais, por meio de cápsulas audiovisuais com argumentos e animações.
Opositores cubanos apresentam o código de direitos e liberdades, em 26 de julho. À esquerda da jornalista, Orlando Luis Pardo, Lia Villares e Juan Manuel Cao. À direita, entre dois jornalistas, Rosa María Payá.
Villares disse que o código funcionará como “alfabetização cívica” dos cubanos, cuja experiência histórica com os direitos humanos e as liberdades políticas foi cortada muitas décadas atrás. Orlando Luis Pardo completou: “Se alguém se reconhece neste código, que o use na Ilha. Ele não tem sinal político. Se você se encontra com um trabalhador que quer discuti-lo num assembleia comunista, adiante”.
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