A criatividade legislativa do nativismo atingiu um novo recorde na Hungria. O pacote de leis, oficialmente apelidado “Lei para Deter Soros”, numa referência ao financista George Soros, vinha sendo cozido em fogo brando desde a campanha de reeleição do primeiro-ministro Viktor Orban. O triunfo eleitoral consumou o processo: com cerca de dois terços do parlamento nas mãos, Orban colocou o projeto em marcha.
No centro, há uma emenda constitucional que, desafiando a política imigratória da União Europeia, impede outros países do bloco de transferir requerentes de asilo para solo húngaro. Nas margens, leis que criminalizam atos como a impressão de folhetos informativos sobre o processo legal de requisição de asilo e a oferta de aconselhamento jurídico ou de alimentos para pretendentes a asilo. As penas previstas para os novos “crimes” variam entre alguns dias e vários anos de prisão.
A motivação imediata da legislação é inviabilizar a operação da União Europeia de transferência para diversos países do bloco de 160 mil refugiados da Síria e da Eritreia que vivem em campos migratórios superlotados na Itália e na Grécia. Mas, na sua alma ideológica, encontra-se a afirmação do princípio nacionalista da soberania absoluta. O governo nativista húngaro, que se apresenta como sentinela da “Europa cristã”, situa-se na linha de frente da resistência às políticas imigratórias estabelecidas por iniciativa da Alemanha.
A referência a Soros é a marca de propaganda típica de Orban. O financista húngaro patrocina instituições que defendem os valores cosmopolitas, como a Fundação Soros e a Universidade Central Europeia de Budapeste. Em 1989, o jovem Orban fez seu pós-doutorado em Londres graças a uma bolsa de estudos da Fundação Soros. Dez anos depois, tornou-se primeiro-ministro, governando como um liberal. Voltou à chefia do governo em 2010, mas já na encarnação ideológica nacionalista atual. O Fidesz, partido que lidera, converteu-se em máquina de propaganda nativista. Operando na chave do antissemitismo, um traço antigo em setores da sociedade húngara, Orban deflagrou uma campanha de difamação contra o “judeu globalista” Soros, acusando-o de encorajar uma “invasão muçulmana” da Europa.
Rota migratória nos Bálcas em 2015 Fonte: Frontex
Durante a crise migratória de 2015, a Hungria funcionou como corredor para cerca de um milhão de refugiados, principalmente da Síria, do Iraque e do Afeganistão. Quase todos, dirigiam-se à Alemanha e a outros países da Europa setentrional. Então, o governo de Orban ergueu uma dupla cerca na fronteira sul, fechando a passagem. Do ponto de vista da Hungria, a “invasão de imigrantes” não passa de uma lenda que serve a finalidades propagandísticas.
As estatísticas evidenciam a natureza farsesca do alarmismo de Orban. Em 2017, contavam-se na Hungria 3.395 requisitantes de asilo, cerca de 0,5% do total no bloco europeu e apenas 0,3 para cada mil habitantes do país. A vizinha Romênia tinha 4.815 requisitantes, um número maior mas também modesto, que representava 0,7% do total do bloco europeu. Na Alemanha, eram 30,6%; na Itália, 17,7%; na França, 13,6%; na pequena Grécia, 8,1%.
“Eles podem dizer que a economia vai bem, mas nós não sentimos isso”, disse à reportagem da BBC uma funcionária de limpeza numa loja de Budapeste, semanas antes da reeleição de Orban. Mas ela completou o raciocínio: “A única coisa que eles fazem direito é manter os migrantes fora”. O ex-liberal Orban e seu Fidesz descobriram que o nativismo faz bem para os negócios políticos. A “Lei para Deter Soros” responde a esse imperativo. Mas tem consequências, para a democracia húngara, para a União Europeia e (sim, eles existem!) para os refugiados.
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