NA PANDEMIA, NASCE A PRIMEIRA DITADURA DA UE

 

Demétrio Magnoli

6 de abril de 2020

Viktor Orban não perdeu tempo: servindo-se do pretexto da pandemia, concluiu o percurso de transformação da Hungria na primeira ditadura da União Europeia (UE). Em 30 de março, obteve de um parlamento dominado por seu partido, o Fidesz, a aprovação de um pacote legislativo que enterra a democracia húngara.

Sessão do Parlamento húngaro, dominado por uma maioria do Fidesz

As novas lei conferem ao primeiro-ministro, por tempo indeterminado, as prerrogativas de governar por decreto, suspender sessões parlamentares e cancelar eleições. Por ordem dele, indivíduos que desrespeitarem as regras de quarentena ficam sujeitos a penas de até oito anos de prisão. Além disso, crucialmente, o chefe de governo pode mandar encarcerar, por até cinco anos, acusados de divulgar qualquer informação que “limite a capacidade do governo de combater a pandemia de coronavírus”.

O coronavírus mata pessoas e liberdades. Nas Filipinas, o presidente Rodrigo Duterte avisou à nação, em discurso televisionado, que deu ordens à polícia e aos militares de “atirar para matar” os que desafiarem as medidas de quarentena. No Turcomenistão, onde o autoritarismo manifesta-se como negacionismo, os veículos de comunicação, todos sob controle oficial, mantêm a lenda de que a pandemia é um fenômeno circunstrito ao mundo exterior.     

As duas novas leis húngaras de prisão foram imediatamente replicadas na Rússia por Vladimir Putin, um dos “bons companheiros” de Orban. Na Sérvia, o governo experimentou seguir uma vereda paralela, decretando que só o comando oficial de crise poderia divulgar notícias sobre o coronavírus e alertando para “consequências legais” contra os infratores. Pouco depois, diante da prisão de um jornalista que reportava as condições de hospiatis do país, a chefe de governo prometeu cancelar o decreto, desculpando-se por sua “estupidez”.

Na Hungria, não é tentação nem simples “estupidez”, mas método. Orban, que governa o país desde 2010, tornou-se um ícone da direita nacionalista europeia, um arauto da “civilização cristã”, um promotor do antissemitismo, da islamofobia e da xenofobia. Ao longo da última década, restringiu a independência do Judiciário e exterminou a maior parte dos veículos independentes de imprensa.

Contudo, sua popularidade encontra-se em declínio. Nas eleições parlamentares de 2014, o Fidesz obteve 44,5% dos votos, bem menos que os 53,7% de 2010. E, nas eleições locais de 2019, o Fidesz perdeu a capital, Budapeste, para um candidato unitário de oposição. A imposição da ditadura é fruto desse declínio, não da emergência sanitária.

Na pandemia, nasce a primeira ditadura da UE

Viktor Orban, timoneiro das forças da “Europa cristã”, nas vestes de Mao Tsé-tung

 

Ditadura: a imprensa sitiada

A nova lei de mordaça de Orban implica, de fato, a censura geral. O governo decide que tipo de informação “limita” a sua capacidade de “conter a pandemia” – e envia à prisão os infratores selecionados. 

A ameaça criminal emerge para calar o que sobrou da imprensa independente na Hungria. Desde 2010, o governo começou a sitiar a imprensa, mas por meios econômicos, intensificando o controle oficial sobre veículos públicos ou estimulando a aquisição de veículos privados por empresários alinhados a Orban. “No final de 2018, eles já tinham 80% da mídia húngara”, explica Gábor Horváth, editor de Internacional do jornal Népszava (“A Voz do Povo”).

O empresário Lorinc Meszaros, amigo de infância de Orban, comprou o maior grupo editorial do país, enquanto outros empresários que orbitam ao redor do primeiro-ministro adquiriam o controle dos jornais regionais dos 19 condados húngaros. Andrew Vajna, comissário do governo para o cinema, adquiriu a TV2, segundo maior canal de televisão. O mesmo Vajna acaba de comprar metade das ações do Index.hu, maior site noticioso húngaro.

Poster de propaganda do jornal Népszava de 1914. O “homem vermelho com um martelo”, símbolo do jornal, aparece cercado por soldados do Império Austro-Húngaro, na hora da eclosão da Primeira Guerra Mundial

Há quatro anos, desapareceu o Népszabadság, maior jornal independente do país, comprado por aliados de Orban e fechado. Horváth, que era um de seus diretores, transferiu-se então para o Népszava. “Um dos tesouros nacionais”, como o define Horváth, o Népszava foi fundado em 1873 e sobreviveu às duas grandes guerras do século XX e aos sucessivos regimes fascista e comunista.

 

“Perdemos a esperança na União Europeia”

A mordaça à imprensa, sob o pretexto da emergência sanitária, enquadra-se num endurecimento do regime provocado pela derrota eleitoral em Budapeste. Logo depois da nova lei de censura, o governo eliminou a autonomia política dos prefeitos, enviando militares para assumir o controle dos hospitais, dos serviços básicos, de empresas de telecomunicações e outras atividades estratégicas. Ditadura: os prefeitos também foram proibidos de adotar resoluções locais sem aprovação do governo central.

“Faz lembrar muito a Hungria comunista, não a dos anos 1980, em que o regime era mais leve, mas a dos anos 1950, de um comunismo muito pesado, de centralização stalinista”, avalia Horváth. A UE, contudo, reagiu quase protocolarmente diante do nascimento de uma ditadura no seu interior.

Ursula von der Leyen, presidente da Comissão Europeia, divulgou uma nota na qual, sem mencionar a Hungria, pede que todas as medidas emergenciais sejam proporcionais, limitadas no tempo e compatíveis com “os princípios fundamentais e valores estabelecidos em nossos tratados”. A voz débil de Von der Leyen abriu espaço para reações mais duras, mas sem força oficial. Sophie in’t Veld, eurodeputada holandesa, disse que Orban “completou seu projeto de matar a democracia na Hungria” e classificou o pacote autoritário como “incompatível com a participação na UE”. Dacian Çiolos, líder do grupo liberal no Parlamento Europeu, disse ser “vergonhoso” que “esse terrível corona ofereça pretexto para tais abusos”.

“Vergonhoso”, realmente, para a UE, é que sua resposta oficial ao autogolpe de Orban seja bem menos enfática que a de Eliot L. Engel, presidente do comitê de assuntos exteriores da Câmara dos EUA. Engel classificou Orban como “ditador” e foi ao ponto: “Tal afronta à democracia é ultrajante em qualquer lugar, especialmente num aliado da OTAN e integrante da UE”.

Horváth não se surpreendeu com a fraqueza da UE na defesa dos seus “princípios fundamentais e valores”:

“Perdemos a esperança na União Europeia há muito tempo. Havia a ilusão de que eles poderiam frear Orban, mas logo percebemos que a Hungria não é muito importante para a Europa, por um lado. E, para algumas companhias, como multinacionais alemãs, um regime como o de Orban é proveitoso. Não há greves, não há sindicatos, nem direitos trabalhistas. O governo limita reivindicações, as jornadas de trabalho são ilimitadas.”

A embaixada americana na Hungria emitiu nota que rotula a alei de restrição à liberdade de imprensa como “contraproducente”, pois pode reduzir a confiança nos líderes políticos. “É interessante ver o governo Trump defendendo os direitos humanos na Hungria”, comentou Horváth, ironicamente.

 

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