A Nigéria é o país mais populoso do continente africano, com 220 milhões de habitantes, e possui a maior economia da África. (Para efeito de comparação, o Brasil tem 212 milhões de habitantes, mas a Nigéria é apenas um pouco maior que o estado de Mato Grosso).
A pirâmide etária do país mostra uma larga base que vai se estreitando rapidamente, como acontece com a maioria dos países africanos. E assim como vem acontecendo em outros lugares, há um ambiente econômico e social deprimido que impede a juventude de pensar positivamente o futuro. Eles estão espremidos entre a falta de trabalho, a emigração para uma Europa cada vez mais atacada pela xenofobia, e a adesão à violência pura e simples, que pode ser de tipo religiosa ou mero banditismo.
A Nigéria vive uma crise de segurança que tem vários fatores, mas um único ponto de chegada: a incapacidade do Estado em promover segurança pública e justiça. Contudo, têm se multiplicado no noticiário internacional denúncias a uma suposta perseguição aos cristãos nigerianos, num país historicamente formado por muçulmanos, que se concentram no norte, e cristãos, predominantes no sul; alguns líderes religiosos chegam a falar em “genocídio”.
Até Donald Trump, que vinha sendo criticado por ignorar a África, declarou em sua rede social que se a violência contra cristãos prosseguir os EUA intervirão militarmente. E tal ameaça, aparentemente deslocada dos objetivos geopolíticos do presidente americano, é que chama a atenção. Porque nem o Papa Leão XIV concorda com essas denúncias. Respondendo a uma pergunta sobre a segurança dos cristãos nigerianos, o líder da Igreja Católica disse que a violência tem motivações econômicas e atinge tanto cristãos quanto muçulmanos. “Infelizmente, muitos cristãos morreram, e eu acho muito importante que o governo, junto a todos os povos, busque um modo de promover a verdadeira liberdade religiosa”.
Já o senador do Texas pelo Partido Republicano, Ted Cruz, conhecido por sua atuação política apoiada no conservadorismo cristão, vem há algum tempo acusando as autoridades nigerianas de ignorar os “assassinatos em massa de cristãos por jihadistas islâmicos”. Segundo o senador, mais de 50 mil cristãos foram mortos, 18 mil igrejas e duas mil escolas foram arruinadas desde 2009.
O governo nigeriano admite que a violência está elevada, mas nega que seja motivada por discriminação religiosa. É verdade que o jihadismo se espalha pela África e a Nigéria foi palco da terrível história do sequestro de 265 meninas, em 2014, por integrantes do grupo terrorista Boko Haram, que continua ativo e impune. E outros movimentos jihadistas apareceram, como o Estado Islâmico da Província da África Ocidental (ISWAP), muito ativo no nordeste da Nigéria. Para muitos jovens sem perspectiva, o jihadismo oferece uma leitura do mundo que identifica os inimigos e dá protagonismo aos combatentes.
Forças militares mobilizadas contra as milícias do Boko Haram
Também é verdade que o neopentecostalismo chegou ao país e tem visto crescer seu número de adeptos, não na forma de pequenas igrejas e pequenas comunidades evangélicas, mas com templos gigantescos, para milhares de pessoas. Uma reportagem da Deutsche Welle visitou uma com capacidade para 50 mil pessoas! Uma boa pergunta é com que recursos tais construções foram financiadas? (Para comparação, o Templo de Salomão, da Igreja Universal do Reino de Deus, o maior templo evangélico da América Latina, comporta 10 mil pessoas.)
O jornal Deutsche Welle também foi checar as denúncias de ataques a cristãos e constatou que as coisas não são bem assim: existem ataques, mas a motivação religiosa não é predominante e o maior número de vítimas está entre os próprios muçulmanos. Mas o que mais chama a atenção é que as fontes dessas notícias citadas por diferentes órgãos de imprensa e redes sociais são sempre as mesmas – ONGs cristãs internacionais que atuam no país, como a InterSociety. É bom lembrar que os EUA é a pátria do neopentecostalismo.
Além disso, existe uma convergência de interesses nesse discurso de “guerra religiosa”, vindo de grupos separatistas de Biafra, região no sudeste da Nigéria habitada pela etnia Igbo, de maioria cristã, que luta há décadas por independência e faz lobby político nos EUA denunciando o “genocídio”.
Muitos casos de violência registrados envolvem os pastores da etnia Fulani, que se espalham por vários países da África Ocidental. Sendo muçulmanos, muitas vezes são descritos como “jihadistas” pelas fontes cristãs, classificação contestada por muitos analistas, que atribuem os problemas a disputas por terra e água com comunidades de agricultores.
A Nigéria iniciou o século XXI surfando na alta de preços das commodities, na condição de maior exportadora de petróleo do continente. Contudo, na década seguinte o ritmo de crescimento econômico perdeu força, enquanto o crescimento da população manteve-se constante. Isso significa que a renda per capta do país começou a diminuir e não parou mais. Em 2024, a taxa de inflação foi de 33,4% – um aumento de 9,32% em relação a julho de 2023. Hoje, calcula-se que aproximadamente 50% da população (100 milhões de pessoas) vive em extrema pobreza.
Segundo relatório produzido pela Anistia Internacional, em 2024, as inundações mataram mais de 300 pessoas e desalojaram dezenas de milhares. Alguns estados foram seriamente afetados, com a inundação de milhares de hectares. No estado de Borno, as inundações impediram o acesso à ajuda humanitária para 27 mil pessoas, enquanto a alto no preço dos alimentos deixou 1.618 crianças desnutridas e sem acesso a saneamento adequado. Até meados de outubro, mais de 14.000 casos suspeitos de cólera foram registrados, resultando em 378 mortes.
A Nigéria apresenta um histórico de violência social baseado em linchamentos, que ocorrem em todas as regiões do país, e que é entendido como expressão da descrença com o poder estatal em manter a ordem pública. Um estudo da Anistia Internacional sobre o tema informa que, entre janeiro de 2012 e agosto de 2023, foram registrados 363 casos de linchamento, com pelo menos 555 mortos.
As causas para os linchamentos diferem, vão de desinformação a manipulação, de brigas pessoais a fanatismo religioso. Ataques de populares sob alegação de blasfêmia são particularmente tolerados por alguns clérigos islâmicos. E apesar do Estado ser laico, em 12 estados do norte, de maioria muçulmana, tribunais islâmicos consideram a blasfêmia um crime sujeito à pena de morte.
Os linchamentos se tornaram tão comuns que nem mesmo os políticos condenam tais atos. Esses justiçamentos ocorrem porque a população está empobrecida e desesperançada, sentindo-se ignorada pelos governantes e, portanto, excluída do acesso à justiça. O povo só acredita na justiça pelas próprias mãos e assim cresce o mal-estar social e o apelo a ações individuais.
Os governantes não agem para mudar a situação e o desemprego entre os jovens alimenta o ingresso no crime ou nesses atos de revolta coletiva que são os linchamentos. Para piorar, existem menos de 400 mil policiais para cuidar de 200 milhões de pessoas; forças mal equipadas e mal treinadas. É a percepção de que não existe ordem pública que facilita a adesão da multidão a esses atos de barbárie.
As famílias de estudantes vivem em alerta permanente, e quando seus filhos e filhas são sequestrados há pouco empenho do governo para resgatá-los
Em artigo escrito em 2021, “Não há paz para os estudantes da Nigéria”, já apontávamos o problema da transformação de sequestros em fonte de renda. As escolas são alvos particularmente vulneráveis, pois costumam funcionar em regime de internato, concentrando grande número de estudantes, cujas famílias possuem renda.
De acordo com a consultoria SBM Intelligence, sediada em Lagos, entre julho de 2024 e junho de 2025 foram pagos a sequestradores o correspondente a 1,7 milhão de dólares (R$ 9,3 milhões), informa a Revista Veja.
Nos últimos 10 anos, gangues criminosas e radicais islâmicos – separadamente – sequestraram pelo menos 1.880 alunas e alunos em toda a Nigéria e nem sempre os resgates foram bem-sucedidos.
Enquanto se alimenta uma “guerra de religiões” dando a entender que as vítimas dos sequestros são sempre cristãs, a realidade é que a vida escolar desses jovens e, portanto, o futuro das lideranças do país, fica seriamente comprometido, pelo trauma provocado; pelo assassinato de professores; pela suspensão das aulas; pela destruição dos sonhos. Na Nigéria, o futuro não sorri nem para a juventude mais afortunada.
Bola Tinubu é presidente desde 2023 e tem longa carreira política
O que parece evidente é que o Estado nigeriano não consegue controlar de fato todo seu território, e que o governo do presidente Bola Tinubu, iniciado em 2023, tem usado o poder existente para reprimir pessoas que expressam pacificamente suas críticas, como jornalistas e representantes da sociedade civil, em sucessivas violações ao direito à liberdade de expressão.
Desde a sua posse, cerca de 10 mil pessoas morreram e milhares foram obrigadas a deixa suas casas devido à violência ou aos desastres climáticos. Em agosto de 2024, manifestações pacíficas em diversas cidades sob o lema #EndBadGovernance foram violentamente reprimidas e pelo menos 24 manifestantes foram mortos pelas forças de segurança.
O mesmo governo que nega uma motivação religiosa para a violência no país, é rápido em classificar todos os grupos armados – religiosos ou criminosos – como terroristas. Essa é a palavra que funciona como salvo conduto para todo o tipo de arbítrio do Estado, sempre em nome da segurança de todos.
A mesma palavra, para os EUA, é entendida como “direito à intervenção”. E, se grupos terroristas são muçulmanos, algumas organizações entendem ser sua obrigação cobrar ações. Por exemplo, fazendo campanhas internacionais nas quais os números da violência e suas causas são apresentados sempre como “perseguição religiosa”.
Já na visão de um padre católico, Atta Barkindo, da cidade de Abuja o problema é mais complexo. “Não acredito que o Governo queira matar cristãos. O que vemos é a falha em proteger os cidadãos. E como muitas vítimas são cristãs, isso alimenta essa ideia”.
Manifestantes protestam contra a alta do custo de vida
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