O novo relatório da organização Repórteres Sem Fronteiras publicado no início deste mês indica e alerta que, pela primeira vez, o trabalho jornalístico tornou-se mais perigoso em metade dos 180 países avaliados e apenas satisfatório em 22. Somente 42 países foram bem avaliados. Mas, o que deve ser destacado é a ampla deterioração das condições de trabalho para os jornalistas, com mais de 100 países caindo posições no ranking.
Em entrevista ao jornal Folha de S. Paulo, o diretor da RSF, Thibaut Bruttin, disse atravessarmos um momento preocupante para a atividade jornalística, caracterizado por ataques deliberados vindos de políticos iliberais; concorrência predatória das redes (anti)sociais; e o parasitismo econômico das big techs elevado ao ritmo voraz da I.A., todos eles minando as condições para a existência de um fazer jornalístico, incluindo a viabilidade financeira.
A imprensa dita livre, apesar de muitos tropeços, ainda cumpre seu papel de expor a “verdade factual” e mostrar outros pontos de vista além daqueles apresentados por agentes estatais ou políticos e por isso está sob ataque. Mas aceitar a circulação de opiniões diferentes e contraditórias é uma necessidade básica para sociedades que se pretendem democráticas. É fundamental para que a “voz oficial” não seja a única.
A guerra em Gaza mostra que a atividade jornalística passou a ser vista como inimiga por Israel, que deseja manter o controle absoluto da narrativa
Quando o relatório da RSF conta mais de 200 jornalistas palestinos mortos em bombardeios israelenses e, ao mesmo tempo, o governo de Israel continua a impedir a entrada de jornalistas ou agentes humanitários em Gaza, temos um apagão de notícias que torna Jerusalém o único emissor da narrativa. Eis um lado bom da tecnologia: um simples celular com câmera e wi-fi consegue romper essa barreira de imagens e sons e enviar ao mundo cenas dos acontecimentos – mas isso não é exatamente jornalismo…
Em 2016, o Dicionário Oxford elegeu o adjetivo “pós-verdade” como “palavra do ano” e explicou-a: “qualifica um ambiente em que os fatos objetivos têm menos peso do que apelos emocionais ou crenças pessoais em formar a opinião pública”, num tempo em que “é muito mais fácil, para um agente político e para as pessoas em geral, manipular dados conforme sua vontade”.
No ensaio Existe democracia sem verdade factual? (Estação das Letras e Cores; SP/2019), o professor Eugênio Bucci avalia como os novos meios de circulação da informação – e desinformação – têm enfraquecido a ideia do espaço público como um espaço de trocas e negociações entre cidadãos que discordam no campo das ideias, mas estão de acordo com os fatos, a “verdade factual”, analisada por Hannah Arendt em Verdade e Política. Esse discernimento é crucial para a vida democrática.
É para essa diferença que aponta Bruttin em sua entrevista: “o governo Trump está tentando impor aos outros países do mundo um projeto de sociedade em que a liberdade de expressão seria mais importante do que a liberdade de imprensa, sem levar em conta a necessidade de haver opiniões e haver fatos.”
A Torre de Babel representa a interrupção do diálogo por meio da confusão de línguas ou, nos tempos atuais, a rejeição a uma base de verdades factuais amplamente aceitas
Como sabem os historiadores, a verdade factual é estabelecida a partir da pluralidade de enfoques e críticas e, por isso, precisa de tempo para se estabelecer, tempo para que o calor das paixões se dissolva na paisagem. Não é casual a avassaladora invasão da palavra “narrativa” nos discursos políticos e sociológicos.
Narrativa e fato são coisas distintas, que podem ou não ocupar o mesmo espaço discursivo. A narrativa pertence ao universo da fabulação, inerente ao ser humano. Os fatos são definidos por uma série de critérios racionais e científicos. Quem troca uma por outra apaga essa fronteira e instaura a cacofonia, como fazem os revisionistas. E a democracia, que nasceu na praça pública e no livre exercício da palavra em nome da ordem social mais igualitária e menos violenta, torna-se impossível.
É nesse sentido que o novo relatório da Repórteres Sem Fronteiras acende uma luz vermelha para todas as pessoas preocupadas com a ordem democrática e os direitos humanos (rebaixados de valor universal para “coisa de bandido”). Que as mesmas ditaduras de sempre se repitam na lista como inimigas da liberdade de imprensa e os mesmos países europeus a encabecem não é novidade. A piora na média global é que preocupa, especialmente porque os 42 países com as piores condições de trabalho para a imprensa livre somam mais da metade da população mundial.
É uma das faces visíveis da crise política que o mundo vive, com a multiplicação de correntes anti-establishment à direita e à esquerda, amantes de teorias da conspiração e inimigas da razão.
O caso do Brasil, no novo relatório, serve de exemplo. Após ter caído várias posições no índice global durante a presidência de Jair Bolsonaro (2019-2022), o país subiu 47 posições desde 2022, ocupando agora o 63o lugar. Já os Estados Unidos perderam duas posições no ranking e ocupam o 57o lugar, nesse segundo governo de Donald Trump, que trata jornalistas como “inimigos do povo”.
Mas o Brasil não deve comemorar demais, enfatizou Bruttin em sua entrevista, pois a perseguição a jornalistas anda junto com a devastação ambiental na Amazônia, tema que a ONG pretende levar à discussão pública durante a COP-30. “O ranking mundial da liberdade de imprensa coincide amplamente com a geografia dos países que têm atividades de mineração, extração de petróleo ou gás e grandes empresas de desmatamento. Isso leva, como vimos no Brasil, a assassinatos tão chocantes quanto os de Bruno Pereira e Dom Phillips.”
O presidente Donald Trump não perde a oportunidade de desqualificar jornalistas, especialmente quando críticos ao ocupante da casa Branca.
Por fim, os porta-vozes da Repórteres Sem Fronteiras destacam o estrangulamento econômico como o principal problema enfrentado pelos meios jornalísticos de produção de notícias. Com a reorganização da economia de informações a partir do advento das novas mídias, as empresas jornalísticas têm perdido seus meios principais de financiamento: propagandas e assinaturas.
O fenômeno recente é o uso deliberado da pressão econômica por grupos políticos para silenciar a imprensa independente. Na avaliação apresentada pelo relatório da RSF, por exemplo, o governo Trump acabou com o “financiamento da Agência dos Estados Unidos para a Mídia Global (USAGM), o que afetou diversas redações — incluindo a Voz da América e a Rádio Europa Livre/Rádio Liberdade — e, como resultado, mais de 400 milhões de cidadãos em todo o mundo foram repentinamente privados de acesso a informações confiáveis.”
Já a Diretora Editorial da RSF, Anne Bocande, alerta:
“Garantir a liberdade, a independência e a pluralidade no panorama midiático atual exige condições financeiras estáveis e transparentes. Sem independência econômica, não pode haver imprensa livre. Quando os meios de comunicação enfrentam dificuldades financeiras, são atraídos para uma corrida para atrair audiências em detrimento de reportagens de qualidade e podem se tornar presas dos oligarcas e das autoridades públicas que buscam explorá-los. Quando os jornalistas empobrecem, não têm mais meios para resistir aos inimigos da imprensa — aqueles que defendem a desinformação e a propaganda.”
Mas quem quer pagar por notícias se elas vêm “de graça” nas redes sociais?…
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