VIOLÊNCIA SEXUAL EM TEMPOS DE GUERRA

 

"O rapto das sabinas", Pietro da Cortona

“O rapto das sabinas” (1629), de Pietro da Cortona, alude a um episódio ligado à fundação da cidade de Roma, no século VIII a.C.. A posse das mulheres representa a conquista do povo sabino pelos latinos.   

 

As agressões de caráter sexual, desde tempos imemoriais, estão profundamente ligadas às mulheres. Em situações de guerra e conflitos armados em particular, a violência de gênero torna-se uma tática que responde a vários objetivos.

De modo geral, quando se fala em violência sexual em contextos de guerra, considera-se o agressor como pertencente a um grupo armado, militar ou paramilitar, excluindo-se atos praticados por civis. Mas isso não é uma regra e as interpretações jurídicas podem levar em conta situações específicas, como durante o genocídio de Ruanda, quando os civis participaram ativamente desse tipo de agressão estimulados pelo governo.

A imagem recorrente do corpo da mulher como campo de batalha sujeito à violência sexual é um  exemplo da importância de se criarem leis nacionais e internacionais que cumpram um papel civilizador para o conjunto da humanidade.

As primeiras leis internacionais abordavam o problema de modo indireto, sobretudo dentro de um entendimento que, na prática, tratava as mulheres e filhos como bens de um esposo, pai ou outro parente masculino, que devem ser preservados uma vez que os homens lutavam em nome dos Estados e não por causas particulares. Foi só a partir dos anos 1990, quando o Direito começou a incorporar a perspectiva de gênero, que a violência sexual foi tipificada e tratada como inaceitável, sendo classificada como crime contra a humanidade, ou seja, um crime imprescritível.

Pode parecer bom, e não deixa de ser um avanço, mas o que os dados sobre violência sexual em conflitos demonstram é um aumento consistente das agressões contra mulheres e meninas, especialmente no leste da África, onde guerras prolongadas produzem um ciclo vicioso de mais pobreza e submissão para as mulheres.

 

Sexo, poder e pobreza

Segundo uma relatora especial da ONU citada no trabalho Violência Sexual contra Mulheres: a incorporação da perspectiva de gênero no direito internacional público:

“(…) mulheres e meninas têm sido violadas por forças governamentais e outros atores não estatais, pela polícia, responsável por sua proteção, por guardas de campos de refugiados e de fronteiras, por vizinhos, por políticos locais e alguma vezes por membros da família sob ameaça de morte. Têm sido lesadas ou mutiladas sexualmente e frequentemente têm sido mortas ou se deixado morrer. As mulheres têm sido objeto de comentários humilhantes após terem sido desnudas, têm sido obrigadas a desfilar ou dançar nuas diante de soldados ou em público e a realizar tarefas domésticas penosas estando desnudas. As mulheres e meninas têm sido obrigadas a ‘casar-se’ com soldados, termo eufemístico empregado para designar o que essencialmente é uma violação reiterada e uma escravidão sexual; elas e seus filhos têm padecido deficiências como consequência da exposição a armas químicas.” 

Família reunida na Guerra da Bósnia

 A violência sexual afeta profundamente a ordem familiar e social

Estudiosos do tema sabem que a violência sexual tem mais a ver com poder do que com sexo, ganhando, portanto, um sentido estratégico.

No ambiente de guerras e conflitos armados observa-se a intenção de promover limpezas étnicas, “manchando o sangue” do inimigo. Outra razão é provocar o deslocamento das comunidades, transformando-o num local repleto de memórias que todos desejam esquecer. 

A agressão sexual contra mulheres representa um ataque à masculinidade parental e comunal. São especialmente devastadoras quando envolvem relações incestuosas forçadas. Os homens se sentem envergonhados e culpados por não terem protegido as mulheres de suas famílias. E elas sentem o mesmo: eles falharam. Quando as agressões ocorrem publicamente, toda a família e a comunidade sofre e se desorganiza.

Estupros também tem a função psicológica de lembrar às mulheres qual é o “seu lugar” num mundo patriarcal. Pior, há um enorme estigma sobre as vítimas, frequentemente abandonadas por maridos e familiares, descartadas para o casamento, condenadas à miséria e vergonha, sobretudo quando carregam filhos nascidos dessa violência.

Para os que atacam, o estupro coletivo é frequente e entendido como uma forma de fortalecer a coesão do grupo, um ato de camaradagem capaz de trazer benefícios psicológicos aos perpetradores, que sentem o poder sobre suas vítimas e o prazer da vitória.

Chama a atenção a frequência com que as vítimas são assassinadas logo após serem violentadas, com um ataque final à genitália, destruída por tiros, objetos perfuro-cortantes, machadadas… O nível dessa brutalidade misógina é difícil de ser compreendido.

 

A violência sexual tipificada

De acordo com o Artigo 7 do ICC (International Criminal Court), o estupro é considerado um crime contra a humanidade, definido por quatro características:

  1. Violação do corpo da vítima com o órgão sexual do perpetrador ou algum objeto;
  2. Uma ação que se impõe pela força ou coerção (prisão, agressão física, tortura psicológica);
  3. A violência sexual ocorre num contexto generalizado e sistemático de ataques contra civis;
  4. Os agressores estão conscientes do que fazem.

As violências sexuais em conflitos armados são classificadas em sete tipos:

  1. Estupro;
  2. Escravidão sexual;
  3. Prostituição forçada;
  4. Gravidez forçada;
  5. Esterilização/aborto forçado;
  6. Mutilação sexual;
  7. Tortura sexual.

Alguns dados estatísticos disponíveis – e reconhecidamente subnotificados – apontam, por exemplo, para entre 250 e 500 mil mulheres e meninas vítimas em Ruanda; mais de 60 mil em Serra Leoa; entre 20 mil e 50 mil na Guerra da Bósnia; e pelo menos 200 mil vítimas, desde 1996, nas intermináveis guerras na República Democrática do Congo.

Mulheres em campo de refugiados

Nem sempre um campo de refugiados é um lugar seguro, especialmente para as crianças

O risco de violência sexual é especialmente alto para crianças e adolescentes que se perderam dos familiares durante fugas desesperadas e se tornam refugiados ou deslocados internos, vivendo em acampamentos onde ninguém zela por elas.

É importante não reforçar estereótipos que tratam homens apenas como agressores. A violência sexual atinge homens adultos e, especialmente, meninos e adolescentes, representando cerca de 20% do total de ocorrências. Os efeitos sobre suas vidas são tão devastadores quanto os experimentados pelas mulheres.

 

A violência sexual na lei internacional

Os primeiros legisladores do Direito Internacional comentaram o que era quase uma certeza das guerras para os derrotados: o saque de seus bens e o ataque às suas mulheres.

Em 1863 surgiu o Código Lieber, uma codificação das leis de guerra baseadas nos costumes. Proteger os civis era consensual e o estupro foi considerado hediondo, sendo proibido e punido com a pena de morte. Contudo, as leis de guerra reconhecidas pelas duas primeiras Convenções de Genebra e Haia (1899 e 1907) previam apenas que “a honra e os direitos da família e a vida das pessoas…devem ser respeitados”.

Não foi o que se viu nas duas grandes guerras europeias na primeira metade do século passado. O resultado foi a inclusão do estupro e da prostituição forçada entre as violações das leis de guerra.

Em 1945, enquanto o Tribunal de Nuremberg ignorou o assunto, o Tribunal Militar Internacional para o Extremo Oriente julgou e condenou oficiais do exército japonês pela onda de estupros durante o Massacre de Nanquim, quando mais de 20 mil mulheres e meninas foram vítimas de agressão sexual em poucos dias. A violência sexual foi tratada como crime de guerra por “tratamento desumano”, “maus-tratos” e “desrespeito à honra e aos direitos da família”.

A criação da ONU e sua carta de princípios, a Declaração Universal dos Direitos Humanos, foram acompanhadas de ampliação da Convenção de Genebra (a Quarta, em 1949), desta vez visando ao tratamento dado aos civis no âmbito das guerras e outros conflitos armados. O Artigo 27 da Quarta Convenção de Genebra dispõe:(…) As mulheres serão especialmente protegidas contra qualquer ataque à sua honra, e particularmente contra violação, prostituição forçadas ou qualquer forma de atentado ao seu pudor.” A partir de então a violação sexual passou a ser um crime tipificado no Direito Internacional.

Escravas sexuais IIGM

Escravas sexuais na Segunda Guerra Mundial

 

Violência sexual é crime contra a humanidade

Em 1979, a Assembleia Geral da ONU aprovou a “Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação a Mulher”, reafirmando a igualdade civil e a importância do acesso à educação e do combate ao casamento infantil. Em 1993, quando os registros sobre violência sexual nas guerras civis na antiga Iugoslávia passaram a chamar  atenção, a mesma Assembleia dedicou um documento específico ao problema, a  “Declaração sobre a Eliminação da Violência Contra as Mulheres”.

As sociedades e Estados começavam a reconhecer a fragilidade da anunciada igualdade de direitos entre mulheres e homens, porque formas diversas de violência física e psicológica impediam que ela se tornasse realidade. Apesar de tudo, as punições sempre foram raras, pois os objetivos de negociar a paz frequentemente premiam os perpetradores, enquanto suas vítimas não recebem nenhuma ajuda, além de carregarem os problemas físicos, psicológicos e sociais decorrentes da violência que sofreram.

Foram os fatos julgados nos tribunais criminais internacionais instituídos para a Guerra da Bósnia e o Genocídio de Ruanda que, pela primeira vez, trataram a violência sexual no contexto de ataques generalizados e sistemáticos contra a população civil como crimes contra a humanidade.

Cartaz campanha contra a violencia sexual

Campanha internacional pelo fim da violência sexual em guerras

Em 2008 foi a vez do Conselho de Segurança da ONU adotar a Resolução 1820, condenando a violência sexual como tática de guerra. O documento reafirma que estupro e outras formas de violência sexual constituem crime de guerra, crime contra a humanidade e mesmo ato de genocídio. Ressalta a necessidade da excluir crimes de natureza sexual dos acordos de anistia em negociações de paz e apela aos países membros para que julguem os oficiais responsáveis por tais atos, salientando a importância do fim da impunidade como fundamento para uma paz duradoura.

 

As marcas da violência

Os traumas psicológicos das sobreviventes é insanável, inclusive porque os danos ao corpo físico são muitas vezes irremediáveis.

Uma das piores consequências para as vítimas são as fístulas. Elas ocorrem quando os tecidos entre a vagina, o reto e a bexiga são destruídos deixando a vítima praticamente sem controle sobre suas evacuações. A recuperação depende de longas e dolorosas cirurgias, que poucos médicos ginecologistas estão aptos a fazer, isso quando as vítimas conseguem qualquer tipo de atendimento médico. Em muitos casos essas mulheres são forçadas a abandonar suas vilas por causa do fedor de seus excrementos. Também ocorrem prolapso uterino (quando o útero desce para o canal vaginal), incontinência urinária e fecal, pélvis quebradas, infertilidade ou dificuldades para engravidar e parir, longos e dolorosos períodos menstruais.

Há, ainda, a AIDS e outras DSTs. Dados da UNICEF apontam que a taxa de infecção por HIV apenas na República Democrática do Congo ultrapassa 20% da população. Outros levantamentos apontam que 60% dos combatentes no Congo portam o vírus do HIV.

A situação de violência sexual contra homens e meninos foi ignorada por muito tempo, especialmente quando pertencentes à comunidade LGBT. Além da vergonha e humilhação, os homens passam a viver em pânico temendo serem rotulados de homossexuais, especialmente nos países africanos, uma vez que a homossexualidade é ilegal na maioria deles e a homofobia cresce no continente. Para os homens, além da AIDS e DSTs, lacerações na região anal e testicular, disfunção sexual, impotência, dor genital, mutilação genital.

 

As guerras no Congo e a pobreza feminina

Na primeira década desse século , a República Democrática do Congo chegou a ser descrita como a “capital mundial do estupro”, especialmente o leste do país. Milhares de mulheres e meninas foram atacadas. Estima-se que 65% delas eram menores de idade, especialmente adolescentes, enquanto 10% tinha menos de 10 anos de idade. Em 80% dos casos a violência foi praticada coletivamente.

Mulheres vítimas de violencia sexual na RDC

Mulheres vítimas de violência sexual na RDC no hospital mantido pelo Dr. Mukwege. Elas tiveram a sorte do acolhimento; milhares não podem dizer o mesmo

Não por acaso, em 2018 o Prêmio Nobel da Paz foi entregue ao médico ginecologista congolês Denis Mukwege, que tem se dedicado a cuidar dessas vítimas.

Mas por que as guerras no Congo tem essa prática tão persistente?

Primeiro, pela sua longa duração, que afeta diretamente as economias locais, especialmente nas áreas rurais ou semi urbanizadas, onde as mulheres são obrigadas a buscarem alimentos em hortas distantes, a entrarem nas matas para recolher madeira e água potável, expondo-se ao risco. Pode-se falar de uma concentração da pobreza entre as mulheres, agravada pela falta de políticas voltadas para o progresso das mulheres, reforçando assim estereótipos de gênero e submissão.

Outro problema é a natureza miliciana das forças em armas, que entram nos territórios do inimigo em busca de ganhos. Os dados mostram que os ataques sexuais ocorrem com maior frequência nas épocas de colheita e nas vésperas dos dias de mercado, quando as mulheres viajam com seus produtos para vender, o que as torna mais vulneráveis a soldados famintos. 

O Congo-RDC é um caso paradigmático, mas no Sudão do Sul, Somália, Eritréia e em outras partes da África o fenômeno se repete. “Provavelmente é mais perigoso ser mulher do que soldado num conflito armado. (General Patrick Cammaert, ex-comandante da MONUC no leste da República Democrática do Congo).

Até quando?

 

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