(Geógrafo/UFSC; doutorando em Geografia/USP)
10 de fevereiro de 2025
Memorial às vítimas do pogrom de Iasi, em setembro de 1941, quando cerca de 10 mil judeus foram executados ou morreram de sede e sufocamento nos trens de deportação
A Romênia se localiza na península dos Bálcãs, no sudeste da Europa, com um território esculpido pela cadeia dos Cárpatos, o baixo curso do rio Danúbio e seu delta no Mar Negro. No século XX, essa geografia de contrastes naturais formidáveis foi palco de violações sistemáticas de direitos humanos, com destaque para a ditadura do general Ion Antonescu (1940-1944), aliado do nazismo e cúmplice do Holocausto.
A Romênia foi o único país da Europa, além da Alemanha de Hitler, a executar uma política independente de extermínio sistemático da população judaica durante a Shoah. Cerca de 280 mil judeus foram assassinados por forças romenas entre 1941 e 1942, principalmente nos territórios invadidos da Bessarábia (atual Moldávia), da Bucovina e do sudoeste da Ucrânia. Em Iasi, na Romênia, quase 10 mil foram mortos durante o pogrom de junho de 1941, um dos primeiros do Holocausto.
A relação histórica entre a Romênia, os judeus e também o povo roma – mais conhecidos como “ciganos” e igualmente vítimas da política genocida praticada pelo Estado romeno -, apontam para um fenômeno que não foi mera cópia do programa nazista, fato reconhecido pelo Estado romeno apenas em 2003, no alvorecer do século XXI.
A Estado da Romênia surgiu em 1861 com a unificação dos principados cristãos-ortodoxos da Valáquia e da Moldávia. Esses reinos se formaram a partir do século XIV, mas foram rapidamente subordinados aos dois impérios que disputaram o controle do mar Negro e da península balcânica durante séculos: o russo e o turco-otomano. Nesse espaço geográfico, o rio Danúbio, que leva do Mar Negro até os portões de Viena, serviu frequentemente como linha de fronteira.
Muito antes da chegada dos Otomanos, o Império Bizantino e sua Igreja Ortodoxa Grega cristianizaram os muitos grupos populacionais que passaram pela região, intensamente disputada ao longo de séculos. Junto com o rito ortodoxo, vinha o alfabeto cirílico, mesmo que, na Valáquia e Moldávia, a língua corrente fosse mais próxima do latim que dos vizinhos eslavos.
No século XV, quando os turcos conquistaram Constantinopla, renomeada Istambul, e fundaram seu poderoso império nos Bálcãs levando junto o islamismo, a aliada e protetora dos cristãos foi a Rússia. Por 500 anos, reinos surgiram e desapareceram, com soberanias que variaram refletindo alianças dinásticas e poderes militares. Por isso as populações balcânicas mesclam áreas muçulmanas e cristãs e, dentro delas, numerosas comunidades judaicas tentavam sobreviver.
O século XIX chacoalhou a Europa com as revoluções liberais e nacionalistas. Mas, no leste, três impérios resistiam: o russo, o turco-otomano e o austro-húngaro e, na região balcânica, eles se encaravam. Com o declínio do poder de Istambul no século XIX, intensificou-se a rivalidade entre Moscou e Viena e fortaleceram-se os movimentos nacionalistas balcânicos.
Enquanto isso, valacos e moldavos começaram a falar em direito ao seu próprio país, indo buscar suas “raízes”, ou seja, sua “legitimidade histórica” em tempos anteriores ao cristianismo e, portanto, à Rússia dos czares, guardiões da Igreja Ortodoxa. O Império Romano e a província da Dácia, localizada nos Bálcãs, onde casamentos entre os romanos e os dácios teriam originado o povo romeno, foi sua origem. Quem deu decisivo impulso a essa narrativa foi Napoleão III (1852-1870), imperador da França, que viu a “Romênia” como uma espécie de bastião “latino” nos Bálcãs.
Após a derrota russa na Guerra da Crimeia (1853-1856), os acordos de compensação territorial ofereceram o pretexto para enfraquecer os impérios, e a França incentivou a unificação romena.
Em 1877 o reino da Romênia desligou-se definitivamente do Império Otomano, abandonou o alfabeto cirílico e adotou o alfabeto latino, reforçando a mitologia nacionalista.
A Romênia anexou o estratégico delta do Danúbio em 1878, mas três regiões de maioria romanófona continuaram fora de seu território: a Transilvânia e a Bucovina, sob o Império Austro-Húngaro, e a Bessarábia, dominada pelos russos e sujeita à implacável russificação. Os nacionalistas romenos falavam em unificar a România Mare, a Grande Romênia. Em 1883 a Romênia aderiu à Tríplice Aliança, juntando-se à Alemanha e ao Império Austro-Húngaro em oposição a uma Rússia que ambicionava controlar o Mar Negro e a foz do Danúbio.
Junto às populações que se queria unir, o apelo ao antissemitismo se tornou o pilar do nacionalismo romeno e intelectuais como Alexandru Coza (1858-1947) e Nicolae Iorga (1871-1940) alertavam para o “risco” que sofriam os romenos mediante a crescente minoria judaica.
A comunidade judaica romena era, em sua maioria, composta de judeus asquenazes, vindos da atual Alemanha durante a Idade Média para escapar de perseguições, se refugiando no oriente europeu. No século XV, o principado da Moldávia acolheu levas de asquenazes vindas dos reinos vizinhos da Hungria e da Polônia. Havia também pequenas comunidades sefarditas instaladas durante a longa suserania otomana (1538-1812).
O shtetl, vilarejo de população judaica, de Lipcani, na Bessarábia, atual Moldávia
Os judeus viviam nas cidades, como em Bucareste, a capital romena, e também ocupavam um arquipélago de shtetls, os vilarejos judaicos, que se estendiam pela vizinha Bessarábia. Essas pessoas, contudo, não eram consideradas parte do reino, nem na Romênia, nem na Rússia dos czares, os judeus eram minorias vivendo sob diversos estatutos de proteção.
Tristan Tzara, algo como “triste terra” , em romeno
O discurso antissemita, tolerado pela monarquia romena, envolvia rumores de que a penúria rural do país era causada pelos “invasores” judeus, que se concentravam no comércio, artesanato e profissões liberais. Em 1907, quando uma rebelião camponesa se alastrou pelo país, a cólera popular se voltou inicialmente contra comerciantes judeus e só depois contra os boiardos, grandes proprietários fundiários.
Sem direitos garantidos, emigrar se tornou uma válvula de escape. Cerca de 90 mil judeus deixaram o país entre o final do século XIX e o início da Primeira Guerra Mundial, em 1914, principalmente com destino aos Estados Unidos. Um exemplo notável foi o do jovem Samuel Rosenstock, que chegou à Suíça neutra, em plena Primeira Guerra Mundial (1914-1918), com o pseudônimo de Tristan Tzara e se tornou um dos fundadores de um movimento artístico revolucionário, o dadaísmo.
Além dos judeus, o Estado romeno teve que assimilar outra minoria marginalizada, os roma, conhecidos como ciganos, termo considerado pejorativo por muitos deles. Em 1850, pouco antes da unificação da Romênia, os roma correspondiam a cerca de 7% da população, cerca de 250 mil habitantes, vivendo em situação de escravidão coletiva, em propriedades do Estado, de monastérios e da aristocracia fundiária. Mas havia locais, pequenas vilas, onde os roma se integraram como artesãos e comerciantes.
Nômades roma em suas tendas na Romênia, no início do século XX
Vindos do Subcontinente Indiano em diferentes ondas migratórias, os roma alcançaram os Bálcãs no século XIII e se espalharam pelo leste europeu. Nos principados da Valáquia e da Moldávia foram escravizados por serem pagãos e seminômades, tipo de vida que provocava o pagamento de taxas extras e, em resposta, conduziu a um gradual processo de sedentarização.
A escravidão foi proibida 1855 e 1856 na Valáquia, em meio à onda revolucionária liberal que varreu a Europa na Primavera dos Povos (1848), emancipando os roma escravizados. Isso não significou, contudo, que os ciganos tenham sido incorporados como cidadãos do reino, ou seja, reconhecidos como portadores de direitos. Como os judeus, os roma eram vistos como um grupo a parte, e a falta de “raízes” será uma acusação contra essas minorias: gente sem vínculo com a pátria.
Apesar da Romênia abrigar um terço da população roma na Europa, a comunidade continuou marginalizada e suscetível à sedentarização forçada, enquanto o discurso ultranacionalista no país se voltava principalmente ao “problema judeu”.
O rei Carlos I (1866-1914) e a elite política da Romênia, dividida em conservadores e liberais, eram igualmente intransigentes em relação ao uso do Estado para perseguir os judeus. Quando a Romênia anexou o território búlgaro da Dobruja do Sul, na Guerra dos Bálcãs (1912-1913), os ex-primeiros ministros da França, Georges Clemenceau, e da Itália, Luigi Luzzatti, que era judeu, se lançaram em uma campanha pública em nome dos direitos dos judeus romenos. Não surtiu efeito.
À leste, na vizinha Bessarábia, de maioria romena e sob o domínio do Império Russo, a enorme população judaica vivia sob o receio de pogroms, como os de Chisinau em 1903 e 1905. Na Romênia, onde viviam 240 mil judeus em 1912, a comunidade convivia com a negação de direitos civis, ao mesmo tempo em que os homens eram obrigados a cumprir o serviço militar, justamente quando a Europa se tornava um barril de pólvora.
A emancipação dos judeus romenos foi consequência da turbulência política deflagrada pela Primeira Guerra Mundial (1914-1918) e pelas revoluções russas de 1917. Ao fim do conflito, uma reforma agrária rompeu com a concentração de terras no país, o voto censitário foi abolido e os judeus foram reconhecidos como cidadãos de plenos direitos, principalmente pela pressão das potências ocidentais. Em compensação, o país recebeu territórios que materializaram a maior ambição dos nacionalistas romenos, a Grande Romênia.
A Primeira Guerra Mundial terminou com a Romênia aliada à Tríplice Entente. Graças a isso, obteve ganhos territoriais significativos nos acordos do pós-guerra, anexando a Bessarábia, a Bucovina e a Transilvânia. O país dobrou de território e população, alcançando 15 milhões de habitantes, enquanto desmoronavam os impérios russo e austro-húngaro. A glória dos nacionalistas contrastava com a penúria de um país onde 250 mil soldados e cerca de 400 mil civis haviam morrido em decorrência do conflito e das epidemias que o sucederam.
Com a expansão territorial do país, um terço da população romena passou a ser constituída por minorias nacionais, como húngaros, ucranianos, alemães e judeus. Com mais de 650 mil pessoas, os judeus da Romênia eram a terceira maior comunidade da Europa, atrás da Polônia e da recém-instaurada União Soviética.
Na Grande Romênia, as comunidades judaicas urbanas se tornaram notáveis. Na cidade de Cernăuți, antiga Czernowitz sob o Império Austro-Húngaro, os judeus representavam mais de 40% dos habitantes. Ali floresceu uma rica tradição literária que foi berço do poeta e ensaísta Paul Celan (1920-1970), nascido Paul Antschel. Em Bucareste, capital romena, os judeus representavam a minoria mais numerosa, com inúmeras sinagogas asquenazes e sefarditas.
No entreguerras (1919-1939), a exploração petrolífera impulsionou a industrialização romena, enquanto o país se tornou um dos maiores exportadores de grãos da Europa. Na política, a hegemonia era dos partidos Liberal e Nacional-Camponês, com os socialistas na oposição e os comunistas perseguidos pela sua associação com a vizinha União Soviética. O movimento operário era constantemente reprimido.
A nova vida política na Romênia abriu espaço para que os ciganos organizassem um movimento cultural enaltecendo as tradições roma, e os judeus instituíssem organizações políticas próprias, como a União dos Judeus da Romênia, o Partido dos Judeus e o movimento sionista. A ameaça do regresso de leis antissemitas era constante, e os distúrbios antijudaicos eram comuns.
Em 1922, estudantes cristãos da Faculdade de Medicina de Cluj, na Transilvânia, expulsaram os alunos judeus, afirmando que preferiam cadáveres dessa origem, e não colegas de turma. Em 1924, a cidadania de cerca de 80 mil judeus foi cancelada pelo governo do liberal Ion Brătianu, principalmente das regiões anexadas da Bessarábia e da Bucovina.
Nas décadas de 1920 e 1930, grupos de extrema-direita surgiram na Romênia, como a Guarda de Ferro. A postura antissemita e de apologia à violência dos chamados legionários se tornou um desafio ao sistema político do país, que gradualmente se dobrou à retórica abertamente inspirada no fascismo e no nazismo da extrema-direita romena.
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