RAMBAM, UM HOSPITAL NA GUERRA  (2/12/2024)

 

Elaine Senise Barbosa 

 

Michal Mekel, vice-diretora do Rambam

Em passagem pelo Brasil, Michal Mekel, vice-diretora do Rambam Health Care Campus, de Haifa, Israel, falou sobre a operação do hospital em tempos de guerra. A entrevista foi conduzida por nosso site, 1948 – Declaração Universal dos Direitos Humanos, em colaboração com o jornalista Jayme Brener. 

O Rambam, cuja origem remonta ao final da década de 1930, é uma referência mundial na área médica porque congrega hospital, universidade de medicina, centro de pesquisa científica em química (remédios) e tecnologia (equipamentos) numa mesma área localizada no norte de Israel, próxima à fronteira com o Líbano. 

Por sua localização, o Rambam trabalha com uma população etnicamente diversa: judeus, muçulmanos, drusos e cristãos. Esse mix está presente nos quadros de funcionários, médicos (incluindo a direção do hospital), e pacientes. Por se tratar de um hospital de referência ou terciário, são encaminhados para lá os casos mais complexos, que os hospitais distritais das cidades próximas não conseguem atender.   

O complexo médico é tão pioneiro que criou um hospital de emergência com mais de dois mil leitos, blindado, nos três pisos do seu próprio estacionamento subterrâneo, autossuficiente em água e energia por 48 horas.  Não existe nada parecido no mundo.

Criado após a guerra de 2006 contra o Hezbollah, o hospital subterrâneo foi acionado na expectativa de confronto com o grupo xiita apoiado pelo Irã, sobretudo após os ataques desferidos por Israel nos últimos meses contra o grupo, na guerra iniciada após o ataque do Hamas em 7 de outubro de 2023. Nesse momento, a torcida deve ser pela manutenção da trégua assinada por Benjamin Netanyahu e a guerrilha libanesa.  

Confira, a seguir, os principais trechos da entrevista.

Quando o Rambam foi fundado?

MM: O hospital foi fundado em 1938. Foi antes do estabelecimento do Estado de Israel, durante o Mandato Britânico, logo antes da Segunda Guerra Mundial, com o  objetivo de atender o público em geral e os soldados.

Desde então o Rambam cresceu e se tornou a maior instituição médica no norte de  Israel e atende a população inteira da região. Claro, há hospitais distritais, mas eles se referem ao nosso hospital como o centro de cuidados terciários. E ele vem se desenvolvendo permanentemente, não apenas para guerras, mas também para o que há de melhor em termos de cuidados médicos, pesquisa e inovação. Há diversas inovações que são usadas no mundo todo e que vieram do Rambam. Ao longo dos anos continuamos a avançar, pois preferimos lidar com situações de rotina e não só de guerra, assim podemos desenvolver inovações que beneficiam um maior número de pessoas.

Um dos pontos que chamaram bastante a atenção diz respeito às instalações subterrâneas do hospital. Quando elas foram construídas?

CAPA-Vista geral

Vista geral do complexo médico-hospitalar, situado próximo ao porto de Haifa

MM: O Rambam era usado para tratar pacientes vítimas de trauma e soldados feridos em guerras israelenses ao longo dos anos e houve muitas guerras envolvendo a fronteira norte de Israel. Em 2006 houve uma mudança porque, pela primeira vez, além de tratar civis e soldados feridos, o próprio hospital esteve sob fogo e mais de 60 foguetes caíram num raio de 800 metros. Então, além de tratar os feridos, tivemos que cuidar da nossa população de pacientes hospitalizados, e não tínhamos soluções para isso. Precisávamos levar os pacientes para o porão. Foi diante desse cenário que a gerência do hospital decidiu achar uma solução para a próxima vez que aquilo acontecesse. Decidiram construir o hospital subterrâneo e a sala de emergência fortificada. O projeto começou pouco depois da Guerra do Líbano de 2006 e foi concluído em 2014. É o maior hospital subterrâneo de Israel e do mundo e uma instalação estratégica para o Estado de Israel.

Pode-se dizer que, com essas instalações subterrâneas, o hospital de alguma forma estava preparado quando essa guerra começou?

MM: Primeiramente, o hospital subterrâneo foi construído com capacidade para 2 mil leitos e 4 salas de cirurgia que estão operando em três andares subterrâneos.  Desses três andares, uma parte é fortificada contra ataques não convencionais, químicos e biológicos. E outra parte é fortificada contra ataques convencionais. No terceiro subsolo, temos 4 salas de cirurgia, 94 máquinas de diálise e capacidade para quase 90 UTIs. A lógica era que tínhamos 1,1 mil leitos, então poderíamos transferir o hospital inteiro para o subterrâneo, além de tratar pacientes feridos de outros hospitais da região de Haifa.

Pouco depois do 7 de outubro, previmos que a fronteira norte também seria uma zona de combate ativa e se tornaria alvo de foguetes do Hezbollah, e então decidimos ampliar o hospital subterrâneo. O projeto foi concluído e aí foi aguardar o momento em que precisaríamos mover o hospital para os andares de baixo. E creio que foram dois meses, ou um pouco mais, em que o combate se intensificou no norte e transferimos todos os pacientes para o hospital subterrâneo.

Sobre o dia a dia no hospital, sabemos que Israel é um país etnicamente diverso e as regiões de Haifa e do norte de Israel têm uma população árabe-israelense considerável, assim como judeus. Vocês têm muitos pacientes da população civil dessas etnias?

MM: Sim, estamos localizados em Haifa, que é definitivamente uma cidade multicultural, assim como todo o norte de Israel. E aqui no Rambam não é diferente, temos equipes multiculturais. Aproximadamente 30% dos funcionários são árabes e a equipe tem diversas culturas, funcionários que professam islamismo, cristianismo e judaísmo. Temos muito orgulho disso e nos consideramos um exemplo de coexistência, de paz e de trabalho em conjunto. Temos empregos sêniores com representação de todos os grupos étnicos. E, claro, temos os pacientes. Muitos são da região de Haifa e, por sermos um centro de cuidados terciários, muitos deles vêm do norte de Israel, onde há muitas vilas árabes. Então nossos pacientes também são uma população muito variada. E todos cuidam de todos. Cada membro da equipe cuida de todos os pacientes.

Mais recentemente, como tem sido o impacto do início das operações terrestres de  Israel no Líbano?

Hospital no estacionamento

O hospital de emergência toma o lugar do estacionamento

MM: Nos últimos três meses mais ou menos, o conflito se intensificou no norte e nós  vemos esse fato de duas formas. Uma é que há mais foguetes sendo lançados em direção à Haifa e arredores, e foi nesse momento que decidimos levar os pacientes para o hospital subterrâneo. O outro aspecto dessa situação é que, claro, temos muito mais soldados feridos vindos da fronteira norte, e muitos deles, incluindo os casos mais graves, foram evacuados por helicóptero para o Rambam. Porque, quando a guerra estava no sul, tínhamos feridos vindo de evacuação secundária, mas agora, com o combate perto de nós, temos uma chegada maior de soldados feridos em situação grave no hospital.

Durante esses períodos de guerra, vocês conseguem equilibrar o atendimento aos pacientes comuns e continuar suprindo as necessidades da  população civil?

MM: Sim, isso foi muito importante para nós já que as guerras continuaram por mais de um ano. Para alguns hospitais foi mais difícil manter os serviços de rotina, mas nós mantivemos os nossos quase intactos ao longo do ano. Houve momentos em que alguns de nossos médicos foram alistados como reservistas e tivemos que diminuir as atividades. Por outro lado, tivemos muitos voluntários vindo para ajudar, inclusive do Brasil. Mas o atendimento de rotina é muito importante, porque as pessoas precisam de serviços como tratamentos e cirurgias, e fazemos o máximo para que não faltem essas demandas rotineiras.

Guerras provocam muitos danos à saúde mental. Quais são os cuidados dados a pacientes com traumas psicológicos?

MM: Sim, definitivamente. Em Israel, nós previmos quase 20 mil feridos até o fim do ano, agora, mais informados sobre o estresse pós-traumático, a previsão é de que aproximadamente 40% desses feridos tenham um quadro de estresse pós-traumático.  No caso, refiro-me aos soldados. No entanto, acho que o 7 de outubro gerou um efeito traumático em todos os cidadãos israelenses. Mas ainda estamos em guerra e eu acho que, pelo menos para a população civil, não houve tempo para lidar com isso. No caso dos soldados, a conscientização é maior. Admitimos 100 novos pacientes para a nossa clínica de estresse pós-traumático, que é filiada ao Ministério da Defesa para realizar tratamento.

Hoje sabemos que quanto mais cedo vier a intervenção melhores são os resultados, e nós melhoramos nossa capacidade de atendimento nesse âmbito. Isso é muito importante. Outro ponto é o tratamento da equipe do hospital, porque nesse último ano os funcionários também viveram dificuldades. Muitos têm familiares no exército, ou um ente querido passando por problemas inesperados… Os funcionários precisam de apoio, oferecido pelo hospital. Podem ser sessões individuais ou em grupo, com o objetivo de ajudá-los com o estresse do dia a dia.

Esse trabalho também resulta em pesquisas e inovações?

MM: Como existem dados sendo coletados em escala nacional, estou certa de que essas informações serão reunidas, assim como ocorreu com guerras anteriores. Digamos, por exemplo, que o exército intervém imediatamente e tenta localizar e identificar soldados que precisam desse tratamento o quanto antes. Isso é algo que foi um aprendizado de guerras anteriores. Então os dados são coletados e talvez teremos um entendimento melhor no futuro.

Para finalizar, você poderia falar um pouco sobre o seu trabalho e a sua  especialidade?

Maimonides_stamp_1953

Selo comemorativo emitido por Israel em 1953, homenageia o rabino Maimônides

MM: Sou vice-diretora do hospital. Profissionalmente, eu sou uma cirurgiã geral e realizo cirurgia endócrina e de tireoide. Ao longo deste ano, meu trabalho envolveu os preparativos para a guerra, para receber os pacientes, organizar as instalações subterrâneas, levar os pacientes de cima para baixo e vice-versa. Ainda assim, eu continuei realizando as cirurgias que costumo fazer. Afinal, como comentei, precisamos manter os serviços de atendimento rotineiros.

 

Rambam é um acrônimo para Rabino Mosheh Ben Maimon, mais conhecido como Maimônides, um nome que ressoa desde a Idade Média como sinônimo de sabedoria e compaixão.  Assim como seu pai, ele foi rabino e deixou escritos de grande valor para o judaísmo, mas Maimônides é mais conhecido por ter sido um médico inovador, capaz de conquistar a confiança de Saladino, o líder muçulmano que combateu os Cruzados, a ponto de se tornar seu médico pessoal. Maimônides também foi testemunho direto da expulsão dos judeus de Córdoba, sua cidade natal, quando os berberes almóadas ocuparam o sul da Península Ibérica, por volta de 1140. A perda da Sefarad pautou o destino dos judeus sefaraditas e marcou a vida de Maimônides como um desterrado.

É meritória a existência desse complexo médico-científico e seu compromisso com a tolerância religiosa. É difícil não pensar nos hospitais palestinos da Faixa de Gaza sistematicamente destruídos nessa guerra e em seus pacientes sem saída ou escolha.  

 

Parceiros

Receba informativos por e-mail