O PODER DE DESTRUIÇÃO NUCLEAR

 

O poder de destruição nuclear

Memorial em protesto contra os testes nucleares em Papeete, no Tahiti, região onde a França realizou quase 200 testes entre 1966 e 1996

Desenvolvidas durante a Segunda Guerra Mundial, as armas nucleares tornaram-se o principal instrumento do arsenal das grandes potências durante os anos da Guerra Fria (1947-1989). O desenvolvimento dessa tecnologia, contudo, implicou em custos humanos e ambientais gigantescos. Foram milhares de testes nucleares em paisagens remotas, mas por vezes habitadas, calcinadas por armas que simulavam em menor escala o poder de destruição alcançado. No lugar dos testes-espetáculo, coroados por nuvens-cogumelo e destinados a dissuadir rivais geopolíticos, estão crateras de aspecto lunar e vilas abandonados pelo deslocamento forçado de populações nativas atingidas pela contaminação radioativa, uma chaga que atravessa gerações.

As consequências radioativas dos testes realizados na Guerra Fria ainda não foram completamente assimiladas, mas se tornaram parte do imaginário contemporâneo, como a imagem mais próxima do Apocalipse. A criação de organismos internacionais de controle sobre os usos da energia nuclear reflete a necessidade de tentar disciplinar seus fins, que podem ser pacíficos, com importantes desdobramentos científicos, como na área médica, ou tão devastadores quanto “dez mil sóis brilhando ao mesmo tempo” (Baghavad Gita).    

No mundo atual, com a rivalidade aguda entre Estados Unidos e China, a Guerra na Ucrânia e as ambições imperiais de Vladimir Putin ou o isolamento do regime iraniano, os testes atômicos arriscam retornar como “argumento” político. Um novo salto mortal na incerteza.

 

A descoberta da radioatividade

A descoberta da radioatividade, da energia nuclear e da sua capacidade de destruição ocorreu por saltos sucessivos nos campos da Física e da Química durante o século XIX e início do XX. O britânico John Dalton (1766-1844), por exemplo, consolidou a hipótese dos átomos como “tijolos” do universo, enquanto o químico russo Dmitri Mendeleiev (1834-1907) formulou uma lei universal para explicar a constituição diversa da matéria, com a Tabela Periódica dos Elementos (1869).

O poder da destruição nuclear

A polonesa Marie Sklodowska-Curie (1867-1934) foi a primeira mulher a receber os prêmios Nobel de Física, em 1903, e Química, em 1911. Ela morreu em 1934, em decorrência da exposição a materiais radioativos durante toda sua vida

A industrialização impulsionou o avanço dos conhecimentos na área da Química e uma de suas principais frentes esteve associada às artes da guerra. Os explosivos usados para abrir minas, como a nitroglicerina, a dinamite e o TNT (trinitrotolueno), em breve seriam usados nas trincheiras.

Paralelamente, o campo da Física Atômica avançava graças a experimentos cada vez mais sofisticados. Em 1895, o alemão Wilhelm Roentgen encontrou evidências dos “raios-X” – X de incógnito, porque ele não sabia ainda explicar que energia era aquela. Começavam as pesquisas sobre a radiação, que logo teriam impacto na área de medicina. Na virada para o século XX, as pesquisas de Henri Becquerel e do casal Pierre e Marie Curie desvendaram os segredos básicos da radioatividade, termo cunhado em 1910 pela cientista. 

As descobertas trouxeram consigo novos temores, muito bem descritos pela literatura de ficção científica. A radioatividade poderia ser usada para a guerra e a tirania. Em O mundo libertado (1914), o escritor britânico H. G. Wells imaginou uma guerra nuclear na metade do século XX, e nas obras A conspiração aberta e A forma das coisas que virão, publicadas em 1933, descreveu o planeta comandado por um governo ditatorial composto pelos defensores de bombas atômicas. Tais obras teriam grande repercussão no imaginário popular.

Em 1939, pouco antes da Alemanha nazista invadir a Polônia, os cientistas Otto Hahn e Fritz Strassmann realizaram o primeiro processo de fissão de átomos de urânio. As pesquisas alemães em torno do que se anunciava como a arma para acabar com todas as guerras” levaram o governo dos EUA a criar seu próprio projeto nuclear, anunciado em 6 de dezembro de 1941, um dia antes do ataque japonês à base de Pearl Harbor colocar o país na guerra. Na corrida contra o tempo para criar o novo armamento antes da Alemanha de Hitler, nasceu o Projeto Manhattan (1942-1945), comandado pelo físico J. Robert Oppenheimer, o “pai da bomba atômica”.

A primeira explosão nuclear da história foi realizada em julho de 1945, no deserto do Novo México, Estados Unidos, quando a Alemanha nazista já estava derrotada. Mas o Japão seguia em guerra e tornou-se alvo das primeiras armas de destruição em massa criadas pelo engenho humano. A primeira foi lançada em 6 de agosto de 1945, alvejando a cidade de Hiroshima e matando imediatamente cerca de 80 mil pessoas. Três dias depois outra bomba atingiu a cidade de Nagasaki e matou cerca de 70 mil pessoas. Não entram nessa conta os mortos pelos efeitos da radiação nos dias e semanas seguintes.

 

Mil vezes mais que Hiroshima

O PODER DE DESTRUIÇÃO NUCLEAR

A modelo Michelini Bernardini apresenta o novo modelo de traje de banho do estilista Jacques Heim. Ele o chamou de bikini, prevendo que a peça seria tão explosiva quanto o teste atômico

As Ilhas Marshall, localizadas no Pacífico Norte, são constituídas por 29 atóis, recifes circulares ou elípticos que circundam uma laguna central. Dominado por alemães e, depois, japoneses, o arquipélago paradisíaco foi tomado pelos Estados Unidos durante a Segunda Guerra Mundial e transformado em um dos principais campos de testes atômicos da Guerra Fria.

Entre 1946 e 1948, centenas de pessoas foram deslocadas dos atóis de Bikini e Enewetak, nas Ilhas Marshall, por ordens do governador militar americano. Até 1958, Bikini e Enewetak foram alvo de 67 testes nucleares, entre os quais se destaca o de Castle Bravo, em 1954, o maior teste da história do país.

Maior por sua capacidade de destruição, mil vezes mais potente do que a bomba de Hiroshima, pois o que se testava era a bomba de hidrogênio. Até então, as bombas eram detonadas por fissão do núcleo dos átomos. A novidade era a fusão nuclear, produzindo uma nova família de armamentos, os termonucleares. O atol de Bikini foi varrido do mapa e toda a região próxima se tornou inabitável.

Castle Bravo provocou a evacuação forçada de 230 habitantes de ilhas próximas para a base americana no atol de Kwajalein. Logo os efeitos da exposição à radiação ficaram evidentes, com o nascimento de crianças sem ossos ou com a pele quase transparente, além do aumento no número de casos de câncer e anomalias na glândula tireoide. Uma embarcação pesqueira japonesa também foi exposta à radiação emitida por Castle Bravo, menos de uma década após Hiroshima.

Em 1986, as Ilhas Marshall foram declaradas um Estado independente em “livre-associação” com os Estados Unidos. O país depende fortemente do programa de ajuda mantido por Washington, como compensação pelo testes nucleares. Na década de 1980 foram US$ 150 milhões, além de programas de educação, saúde e infraestrutura. Já o governo das Ilhas Marshall reivindica mais US$ três bilhões. Difícil medir o dano que atravessa gerações.

 

É só deserto

Localizava-se em território soviético, no Cazaquistão, o mais extenso campo de testes nucleares do planeta, conhecido como o Polígono de Semipalatinsk, um território maior que o Kuwait, onde foram realizados 456 testes entre 1949 e 1989. Já o local com o maior número de experimentos ficava no estado de Nevada, EUA, uma zona desértica a apenas 150 quilômetros de Las Vegas. Foram 928 testes entre 1951 e 1992, em sua maioria subterrâneos. 

Semipalatinsk faz parte das estepes cazaques conquistadas pela Rússia nos século XVIII e XIX e, mais tarde, incorporada como parte da República Soviética do Cazaquistão à União Soviética. Quando Stalin decidiu criar um programa nuclear, em 1938, escolheu Laurent Beria, o chefe da temível polícia política, para implantá-lo. Beria escolheu Semipalatinsk para campo de testes afirmando que a área era “inabitada”. 

O poder de destruição nuclear

O cazaque Karipbek Kuyukov nasceu sem os membros superiores devido à exposição de sua família à radiação dos teste soviéticos. Ele se tornou um ativista contra os testes nucleares

De fato, havia mais de meio milhão de habitantes na região de Semipalatinsk e os pastores nômades foram evacuados pouco antes dos testes. Foi o caso dos pais de Karipbek Kuyukov, que nasceu em 1968, sem os dois braços, e fundou o Movimento Antinuclear Nevada-Semipalatinsk no fim dos anos 1980, no contexto das reformas de Mikhail Gorbachev impulsionadas pelo acidente nuclear de Chernobyl, na Ucrânia soviética, em 1986.

A pressão antinuclear teve sucesso. Em 29 de agosto de 1991, o presidente do Cazaquistão soviético, Nursultan Nazarbayev, ordenou o fechamento do campo de Semipalatinsk. A data foi transformada pela ONU no Dia Internacional contra os Testes Nucleares. Segundo o Instituto de Medicina Radioativa e Ecologia do Cazaquistão, entre 400 mil e um milhão de pessoas foram expostas à radiação entre 1949 e 1962, quando os testes ainda ocorriam ao ar livre

As consequências das explosões sucessivas também deixaram marcas nos Estados Unidos. Um estudo do Centro de Controle e Prevenção de Doenças afirma que todos os habitantes do país vivos desde 1951 tiveram algum tipo de exposição a um índice de radioatividade elevado devido aos testes no deserto de Nevada. 

 

Corrida nuclear

A prática de realizar testes nucleares fora do próprio território, como fizeram os EUA na ilha Christmas, no atual Kiribati, com 22 explosões, foi seguida por novos protagonistas que iam ocupando a cena para se afirmarem como potências nucleares. Em 1952, o Reino Unido detonou um artefato atômico nas ilhas Montebello, no oeste da Austrália, sua ex-colônia. Em 1960, a França explodiu uma bomba atômica em Reggane, no Saara argelino, em plena guerra de independência da Argélia (1956-1962).

O poder da destruição nuclear

Fonte: BOUVILLE, André & SIMON, Steven L. (2015)

Em 1964, a China de Mao Tsé-tung realizou seu primeiro teste nuclear em Lop Nor, um local desértico na província de Xinjiang, habitada majoritariamente pelos muçulmanos uigures, hoje perseguidos pelo governo de Pequim. A proliferação nuclear ampliou-se na Ásia quando, em 1974, a Índia realizou seu primeiro teste atômico, o Smiling Buddha, (“Buda Sorridente”), no deserto do Rajastão, vizinho ao rival Paquistão, no contexto das disputas pela estratégica região da Caxemira.

Câmeras registraram nuvens-cogumelo atômicas nos mais variados ambientes do planeta. Na ilha glacial de Nova Zembla, no Ártico soviético, foram realizados 224 testes, inclusive a bomba termonuclear Tsar, a explosão mais potente já registrada, em 1961. Na Polinésia Francesa, foram realizados 193 testes nucleares, superficiais e subterrâneos, até 1996, devastando os atóis de Mururoa e Fangataufa. 

 

Uma loucura planetária 

A bipolaridade da Guerra Fria foi moldada pela era atômica. As superpotências rivais sabiam que se uma delas atingisse a outra com um artefato nuclear seria alvo de uma resposta à altura, que desencadearia uma escalada de aniquilação planetária. A paz entre as superpotências decorria desse equilíbrio estratégico e, por isso, Washington e Moscou evitavam o conflito direto. A constatação desse risco apocaliptico foi transformada em política de Estado, a partir do que ficou conhecido como Doutrina MAD (Mutual Assured Destruction) ou Destruição Mútua Assegurada.

O poder de destruição nuclear

A nuvem-cogumelo do teste de Castle Bravo, em março de 1954, pulverizou parte do atol de Bikini, nas Ilhas Marshall

A doutrina MAD – “louco”, em inglês – cristalizou o equilíbrio de poder bélico entre EUA e URSS, sintetizado pelo sociólogo Raymond Aron ao analisar a ordem política da Guerra Fria: “paz impossível, guerra improvável”.

Deste modo, a rivalidade deixava de ocorrer de forma direta, deslocando-se o campo de batalha para outros elementos, como o número de aliados por continente, de medalhas olímpicas, a vantagem na corrida espacial ou a potência dos testes nucleares. Atóis, estepes, desertos e zonas glaciais foram pulverizados nessas demonstrações de poder travestidas de investigação bélica ou científica. 

De 1945 a 2017, mais de dois mil testes nucleares foram realizados, principalmente pelos Estados Unidos e pela União Soviética. Mas o Reino Unido, França, China e Índia fizeram propaganda de seus arsenais com testes nucleares. Depois, Paquistão, Israel, Irã e Coreia do Norte também ingressaram no clube de países detentores de tecnologia para a produção de armamentos atômicos. No século XXI, a Coreia do Norte é o único país a realizar testes, seguindo a mesma lógica de exibir um poder de dissuasão nuclear.

 

O átomo e o apocalipse

A questão da energia atômica e seus efeitos tonou-se parte do imaginário popular. Os governos davam publicidade aos testes nucleares por meio de fotos e vídeos para serem usados como exibição de força e elemento de dissuasão. A literatura e, principalmente, o cinema, produziriam inúmeras histórias a partir dessa temática. Não existiria Godzilla sem Castle Bravo.

Em 1954, ano de Castle Bravo, era lançado no Japão o filme Gojira, de Ishiro Honda. O Godzilla, no Ocidente, inovou em efeitos especiais com seu monstro marinho gigante, cuja natureza decorria da realização de testes atômicos, causando enorme destruição em toda a Baía de Tóquio. Desde então, a criatura foi protagonista de 38 filmes, japoneses ou americanos. 

No cinema, a era atômica chegou rapidamente, tanto pela memória das bombas lançadas sobre o Japão, como em Hiroshima, mon amour (1959), de Alain Resnais, como na sátira corrosiva da corrida armamentista de Dr. Strangelove (1964), de Stanley Kubrick. No século XXI, o tema chegou ao mundo das séries, com Dark (2017-2020), trama alemã que envolve a criação de uma distorção espaço-temporal após um acidente nuclear, em 1986, não por acaso o ano do acidente de Chernobyl.

O poder de destruição nuclear

 

Em linha mais jornalística, o enredo do premiado Síndrome da China (1979) tratava do derretimento (“meltdown”) do núcleo de uma usina atômica, que ameaçava provocar uma implosão catastrófica e até romper a crosta terrestre do outro lado do mundo, na China. Por incrível coincidência, dias após a estreia do filme, aconteceu o acidente na usina de Three Mile Island, na Pensilvânia, o maior acidente nuclear em solo americano, responsável pela suspensão temporária dos investimentos na área de energia nuclear nos EUA. O risco de “síndrome da China” foi incorporado ao vocabulário do pânico.

O medo de um cataclisma causado por desastres nucleares confluiu para o leito do imaginário apocalíptico, antes alimentado apenas por religiões e agora nutrido por uma das criações mais sofisticadas da ciência. 

 

SAIBA MAIS

  • CÉSAR, Luís Fernando Panelli. Tratado de Não-Proliferação Nuclear – TNP (1968) In: MAGNOLI, Demétrio (org.) História da Paz: os tratados que desenharam o planeta. São Paulo: Contexto, 2008, p. 385-417
  • Atomic Archive – No link ao lado você pode conferir informações básicas sobre a constituição das armas nucleares, a história dos testes e a geografia dos experimentos atômicos e dos seus respectivos efeitos fallout

Para assistir

  • Radioactive (2019, Netflix). Direção: Marjane Satrapi. Conta a história de Marie Curie, seu trabalho pioneiro e também a mulher que desafiou muitas convenções
  • Oppenheimer (2023). Direção: Christopher Nolan. A história do Projeto Manhattan, centrada na personalidade do cientista J. Robert Oppenheimer
  • Meltdown: Three Mile Island (2022, Netflix). Documentário em quatro episódios sobre o maior acidente nuclear na história dos EUA 

 

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