VENEZUELA, DITADURA SEM MÁSCARA

 

Demétrio Magnoli

5 de agosto de 2024

 

Na Venezuela produziu-se a mais descarada fraude eleitoral da história e, ainda, a mais contundente comprovação do golpe assestado contra o voto popular. A máscara caiu: o ditador Nicolás Maduro está nu e, agora, apoia-se exclusivamente na repressão.

As urnas eletrônicas fecharam no início da noite de 28 de julho. O Conselho Nacional Eleitoral (CNE), totalmente controlado por seguidores de Maduro, fechou-se em copas, proibindo o acesso de observadores da oposição aos trabalhos de totalização dos votos. Muitas horas depois, com demora incomum, o órgão anunciou o suposto triunfo do ditador, com cerca de 7 pontos percentuais de vantagem – e, alegando um ataque hacker, não mostrou as atas eleitorais emanadas dos centros de votação.

A líder da oposição, Maria Corina Machado, com o candidato vitorioso, Edmundo Urrutia, anuncia os resultados verdadeiros da eleição presidencial

Os números do CNE eram um boato, nada mais que isso. Com base neles, Maduro fez-se diplomar presidente menos de 48 horas depois. Mas o fato saltou à luz do dia pelas mãos da oposição, cujos observadores obtiveram – e publicaram na internet – cerca de 80% das atas originais. De acordo com elas, Edmundo González Urrutia bateu o tirano por margem avassaladora, conquistando 67% do total de sufrágios, contra 30,5% para Maduro.

O Centro Carter, ONG fundada pelo ex-presidente americano Jimmy Carter, única instituição independente admitida como observadora pela ditadura, recusou-se a certificar a fraude. 

Diante da prova irrefutável de sua derrota, a ditadura desencadeou a repressão. Ao longo de uma semana, as manifestações de protesto foram suprimidas por militares, policiais e milicianos irregulares. Fizeram-se prisões em massa. Sem o poder da persuasão, o regime recorreu à brutal “persuasão” do poder.

 

A terceira morte do chavismo

O oficial militar Hugo Chávez tentou, pela primeira vez, chegar ao poder por meio de um golpe militar fracassado, em 1992. Conseguiu, pelo voto popular, nas eleições de 1998, ponto de partida da chamada Revolução Bolivariana. O chavismo surgiu das urnas, numa revolução nacionalista pacífica concluída pela Constituição de 1999. Nela estavam as sementes da lenta transição da democracia representativa à “democracia plebiscitária”, ou seja, à tirania da maioria.

Naquela etapa inicial, Chávez representava a maioria, utilizando-a para enfeixar poderes crescentes, subordinando as forças armadas, o Judiciário, o serviço público e os veículos de comunicação. Sob o impulso do ciclo internacional de commodities, à base de extraordinárias rendas petrolíferas, o regime chavista conservou a hegemonia social sem recorrer à violência sistemática.

O falecimento de Chávez, em 2013, assinalou a primeira morte do chavismo. Seu sucessor, Maduro, apontado em acordo com o regime castrista cubano, nunca obteve um triunfo eleitoral conclusivo. O encerramento do ciclo de commodities secou as ilusões. O movimento bolivariano perdeu sua base popular, sedimentando-se como ditadura devastadora. A falência venezuelana reflete-se em inúmeros indicadores, mas deve ser sintetizada num número: 7,7 milhões, um quarto da população total, fugiram do país na última década, num êxodo maior que o deflagrado pela guerra na Síria.

Posse presidencial de Maduro para seu segundo mandato, em 2019

Maduro conservou-se no poder manipulando o aparato estatal, restringindo as liberdades políticas, perseguindo as lideranças opositoras e violando os direitos humanos. Mesmo assim, sofreu derrota avassaladora nas eleições legislativas de 2015, que assinalaram uma segunda morte do chavismo.

O regime não mais conseguia legitimar-se pelo voto do povo. A solução foi romper os limites da precária “legalidade” vigente. Nessa linha, o regime extirpou a Assembleia Nacional de seus poderes, substituindo-a por uma Constituinte oficialista.

A “democracia plebiscitária”, porém, é o solo histórico do chavismo – e, portanto, a legitimação pelas urnas precisaria sobreviver sob a forma de encenação farsesca. Desse imperativo nasceu o Acordo de Barbados, entre o regime e a oposição, que começou a ser costurado em maio de 2023, quando o presidente brasileiro Lula da Silva recebeu Maduro em Brasília.

O acordo previa eleições presidenciais livres, fiscalizadas por observadores internacionais independentes. Em troca, os EUA retirariam as sanções econômicas que pesavam contra um setor petrolífero já decadente, desorganizado pela monumental incompetência administrativa do governo ditatorial.

O tirano jamais pretendeu honrar o compromisso. Violando-o seguidamente, proibiu o acesso de observadores europeus, vetou a candidatura de Maria Corina Machado e de sua substituta, Corina Yoris, emitiu ordens de prisão contra dezenas de opositores, bloqueou os sites independentes venezuelanos. Nada disso funcionou, como atestam as atas eleitorais divulgadas pela oposição. A fraude do 28 de julho marca a terceira morte do chavismo.

 

Os bons companheiros

A qualidade distintiva da democracia é a garantia de que os governantes derrotados não enfrentarão a vingança arbitrária dos oposicionistas triunfantes. Ditadores não têm o hábito de ceder o poder pacificamente pois temem a justa punição por seus crimes. É por isso que, ainda antes da eleição, Maduro proclamou aos sócios civis, militares e policiais do regime que triunfaria “por bem ou por mal”.

O boato oficial da vitória de Maduro produziu um efeito previsível. China, Rússia e Irã logo ofereceram suas congratulações ao tiranete. Na América Latina, os regimes ditatoriais de Cuba e da Nicarágua seguiram o mesmo roteiro, acompanhadas pelo governo democrático carente de princípios da Bolívia. Diante das atas, porém, Estados Unidos, Argentina, Uruguai, Peru, Equador e Costa Rica reconheceram o triunfo de Urrutia, enquanto o Chile chegou perto disso, apontando as evidências de fraude.

Sobrou ao tirano rezar pelo apoio do Brasil, que enviara o assessor presidencial Celso Amorim para acompanhar o processo eleitoral. Lula da Silva, antigo aliado de Chávez e do próprio Maduro, foi um dos fiadores do Acordo de Barbados. O presidente brasileiro aceitou, entre murmúrios de cautelosa reprovação, as violações do compromisso anteriores à eleição. Amorim celebrou a “normalidade democrática” no dia do voto. Depois, o governo Lula desencadeou uma valsa diplomática destinada a proteger o ditador.

Oficialmente, o Brasil solicitou ao regime venezuelano a divulgação das atas eleitorais. Lula, porém, logo desfez as esperanças de que exigiria o respeito à vontade popular. Numa entrevista, indicou o rumo da legitimação da fraude: “Como vai resolver essa briga? Apresenta a ata. Se a ata tiver dúvida, a oposição entra com recurso e vai esperar na Justiça andar o processo. E aí vai ter uma decisão, que a gente tem que acatar.”

Celso Amorim chega a Caracas como enviado do Brasil às eleições presidenciais venezuelanas

De fato, com tais palavras, traçou o roteiro que Maduro seguiria. O tiranete continuou escondendo as atas, mas entregou o veredito aos juízes amestrados do tribunal superior venezuelano – os mesmos que ordenam a prisão e vetam as candidaturas de opositores. Na sequência, por meio da abstenção, o Brasil barrou a aprovação de resolução da Organização dos Estados Americanos (OEA) que pedia a exibição das atas e sua análise por observadores independentes.

A operação diplomática não se deteve nisso. A diplomacia brasileira lamentou o reconhecimento da vitória de Urrutia pelos EUA e entregou-se à articulação de um bloco com o México e a Colômbia para oferecer algum tipo de respaldo a Maduro. Os três países voltaram a pedir a exibição das célebres atas mas, sobretudo, alertaram contra a “ingerência externa” nos assuntos venezuelanos. Tudo indica que, se depender de Lula, a valsa será concluída por um reconhecimento da legitimidade do tirano fraudador.

A repressão não se limita às ruas. A promotoria venezuelana emitiu ordens de prisão contra Urrutia e Corina Machado, enquanto o regime ordenava à imprensa local manter silêncio sobre as manifestações de protesto e expulsava jornalistas estrangeiros.

A indignidade atingiu um ápice numa entrevista concedida por Celso Amorim. Pouco depois da invasão e depredação do escritório da oposição por milicianos chavistas encapuzados, o assessor internacional de Lula declarou-se preocupado com o “isolamento da Venezuela” e com a hipótese desvairada de “perseguição aos chavistas caso a oposição chegue ao poder”.

Nenhuma democracia tem meios para evitar que, pela força desmedida, o ditador conserve o poder. Mas nenhuma democracia que se preze tem o direito de ajudar a ocultar a fraude e abandonar as lideranças perseguidas da oposição aos desígnios sombrios de um regime violento acuado. Lula e Amorim escrevem, na Venezuela, um capítulo vergonhoso sobre a democracia brasileira.

 

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