NAVALNY E A DITADURA DO MEDO

 

Demétrio Magnoli

4 de março de 2024

 

Milhares de pessoas reuniram-se em Marino, a área de Moscou onde realizou-se o funeral de Alexei Navalny, sob um céu cinzento e temperaturas pouco acima de zero. Desafiando as ameaças do regime de Vladimir Putin, cantaram o nome do líder oposicionista, gritaram “não à guerra”, “Rússia sem Putin” e “a Rússia será livre”. A multidão provou que não tinha medo – mas o medo domina a Rússia.

Velório de Navalny, em Moscou, 1º de março de 2024

 

Navalny passou os três últimos anos de sua vida no inferno – isto é, numa colônia penal do Ártico russo. Durante 300 dias, em média cem por ano, foi submetido ao “shizo”, abreviação de shtrafnoy izolyator, a mais extrema forma de punição nas prisões do que foi denominado Gulag, o sistema carcerário da antiga URSS. Nathan Sharansky, célebre prisioneiro do Gulag entre 1977 e 1986, descreveu o “shizo”, no qual passou 405 dias:

“É uma pequena cela escura de três metros por dois. Você sente tanto frio que não consegue dormir. Recebe três pedaços de pão e três canecas de água quente por dia. Nada para ler, nada para escrever, ninguém com quem falar. A punição é restrita a 15 dias por vez, mas se o sistema pretende esmagá-lo, te coloca ali repetidamente.”

Sharansky não se deixou quebrar pelo gulag, ao qual se referia ironicamente como sua alma mater. Navalny também não. Cerca de um ano atrás, o primeiro recebeu uma carta do segundo. “Na sua alma mater, tudo é como era. As tradições são honradas. Na sexta-feira à noite eles me deixaram sair do shizo. Hoje, segunda, peguei mais 15 dias. Tudo de acordo com o Eclesiastes: o que foi, será. Mas continuo a acreditar que nós corrigiremos isto e, um dia, a Rússia será o que não foi. E não será o que foi.”

Conferência de Helsinque, 1975

Meio século atrás, em 1975, os Acordos de Helsinque, sobre segurança e cooperação na Europa, definiram compromissos mútuos entre os EUA e seus aliados, de um lado, e a antiga URSS e seus países-satélites, de outro. O documento abrangia promessas de respeito aos direitos humanos – e, com base nelas, as democracias ocidentais passaram a pressionar a URSS pelo respeito aos direitos dos dissidentes. Sharansky insiste para que, diante da Rússia de Putin, o Ocidente retome a prática inaugurada em Helsinque.

No funeral de Navalny estavam presentes os embaixadores dos EUA, da Alemanha e da França. Sharansky tem razão: do ponto de vista da repressão política, o regime putinista imita os procedimentos da ditadura totalitária soviética.

 

Como? – a pergunta sem resposta

A notícia da morte de Navalny surgiu, inesperdamente, em 16 de fevereiro, transmitida pela direção da colônia penal FKU IK-3. mais conhecida como Lobo Polar, situada acima do Círculo Polar Ártico. As autoridades russas registraram, como causa mortis, “síndrome de morte súbita”, expressão abrangente para diversas síndromes cardíacas que provocam parada do coração.

Quase ninguém acreditou na alegação oficial do Kremlin. Navalny sofrera duas tentativas de assassinato: em 2017, por um misterioso assaltante que o borrifara com uma substância química altamente tóxica e, em 2020, no episódio de envenenamento por Novichok que provocou longa hospitalização na Alemanha. No currículo criminal do regime putinista, há uma longa lista de mortes misteriosa de opositores, críticos e dissidentes.

Apesar das duras condições carcerárias, Navalny mantivera contato com familiares dias antes, exibindo boa saúde. Além disso, também pouco antes, comparecera virtualmente a uma audiência judicial na qual, jovialmente, dirigira ironias ao juiz. O médico alemão que o tratara do envenenamento de 2020 declarou que ele não sofria de morbidades capazes de provocar tromboembolismo.

Na manhã de 19 de fevereiro, a mãe de Navalny, Lyudmila Navalnaya, chegou à colônia penal, mas foi-lhe negado acesso ao corpo. Apenas em 24 de fevereiro, o corpo foi entregue a seus familiares.

Certificado oficial de óbito de Navalny emitido em 25 de fevereiro pelo Serviço Penitenciário Federal da Rússia

Nem todos, porém, responsabilizaram a ditadura russa pela morte súbita e inexplicada de um opositor sob custódia estatal. “Para que essa pressa de acusar alguém?”, indagou retoricamente Lula da Silva em 28 de fevereiro, durante uma viagem à África. O presidente brasileiro foi adiante, imitando o hábito de Putin de omitir o nome de seu principal opositor: “Então, o cidadão morreu na prisão. Eu não sei se ele estava doente, não sei se ele tem algum problema.” No fim, criticou “os interesses” ocidentais em acusar Putin e recomendou aguardar as conclusões dos legistas russos.

Lula tornou-se presidente do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo em 1975. Vladimir Herzog foi assassinado, após tortura, numa cela do DOI/CODI, em São Paulo, em outubro daquele ano. Na época, declarações políticas contrárias à ditadura militar brasileira implicavam riscos – e Lula preferia o silêncio. Ele nada disse sobre o caso Herzog. O que diria, seguindo a lógica de seus comentários sobre a morte de Navalny?

Herzog, como Navalny, morreu sob custódia de uma ditadura. O paralelo não se encerra aí. Os legistas a serviço da ditadura brasileira “confirmaram” que o prisioneiro político cometera suicídio, por enforcamento, “absolvendo” o regime criminoso. O Lula de hoje talvez sugerisse aguardar o laudo dos peritos oficiais. Já a família de Herzog contestou o laudo mentiroso – e, finalmente, em 2018, uma sentença da Corte Interamericana de Direitos Humanos determinou a culpa do Estado brasileiro.

 

Por que? – a pergunta com resposta

Putin tinha bons motivos para temer Navalny. O opositor era a única figura oposicionista de influência nacional. Sua organização estabeleceu bases em todas as regiões da Rússia. Seus vídeos tinham dezenas de milhões de visualizações.

“Eu te amo”, escreveu Yulia nas redes sociais, dias após a morte de Navalny, compartilhando uma foto dos dois na plateia de um show 

Sem Navalny, a oposição russa foi decepada. A esposa do opositor, Yulia, apresenta-se como sua sucessora. Contudo, não pode voltar à Rússia em segurança, atuando a partir do exílio, o que limita seu peso político e sua audiência.

O Kremlin pretendia livrar-se de Navalny há muito tempo. Daí, os atentados de 2017 e 2020. O oposicionista foi preso em 2020, ao voltar para a Rússia – e, então, acendeu-se a luz de alarme. Seria exterminado na prisão?

Putin, contudo, evitava comprometer suas digitais num assassinato que teria graves ramificações diplomáticas: os EUA e diversos países europeus ameaçaram sancionar o regime russo caso o opositor fosse exterminado.

Daí, a pergunta: por que o ditador decidiu-se, agora, a dar o passo sem volta? 

A resposta encontra-se fora da Rússia: na Ucrânia. A invasão de 2022 explodiu as pontes diplomáticas da Rússia com o Ocidente. As sanções ocidentais ultrapassaram tudo que pudesse ser imaginado antes. Além disso, o Tribunal Penal Internacional emitiu ordem de prisão contra Putin, devido aos crimes de guerra na Ucrânia. O Kremlin já não tinha quase nada a perder.

“A Rússia controla a sociedade principalmente pelo medo”, explica Sharansky. Navalny rompia o medo, mesmo na cadeia. Como ele escreveu ao opositor: “Por permanecer uma pessoa livre na prisão, você, Alexei, influencia as almas de milhões de pessoas, mundo afora”. É para sedimentar o medo que Putin ordenou a eliminação de Navalny. 

 

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