Budapeste, 16 de junho de 1958. Há 65 anos, na capital da República Popular da Hungria, Imre Nagy, o dirigente reformista do partido comunista, pagou com a vida por não renunciar ao cargo de primeiro-ministro e entregar a sua rendição às tropas do Pacto de Varsóvia, a aliança militar criada por Moscou em resposta à formação da OTAN pelo bloco ocidental, no quadro da Guerra Fria. Foi o desfecho de uma história que havia começado dois anos antes quando, em 23 de outubro de 1956, um quarto de milhão de pessoas tomou as ruas de Budapeste, atendendo a uma convocação dos estudantes.
Manifestação diante da estátua de Bem, general polonês que em 1849 conduziu forças húngaras na luta pela independência contra os Impérios Austríaco e Russo. Sem sucesso.
Naquela tarde, aconteceu um diálogo bastante esclarecedor nas dependências do Ministério do Interior. O general Ivan Serov, novo “conselheiro” soviético no país, fez uma série de duras críticas aos militares húngaros, pelo que entendia ser uma atitude vacilante em relação ao que chamou de “fascistas e imperialistas” que “enviam suas tropas de choque para as ruas”.
O chefe de polícia da capital, Sándor Kopácsi, respondeu com sarcasmo. “Evidentemente, o camarada conselheiro de Moscou não teve tempo para se informar sobre a situação no nosso país. Necessitamos dizer-lhe que não são “fascistas” ou “imperialistas” os organizadores da manifestação; provêm das universidades, são os melhores filhos e filhas de camponeses e operários que expõem seus direitos e desejos de mostrar simpatia aos poloneses”.
Mas o general Serov não se comoveu. Ele estava ali para garantir que nenhuma contestação ao poder hegemônico de Moscou prosseguisse. Pela primeira vez, o bloco militar comunista – o Pacto de Varsóvia, entrou em ação, deixando claro que, mais do que proteger os países integrantes frente a uma ameaça do bloco capitalista, sua função principal era proteger os interesses da União Soviética, mesmo que contra os seus aliados.
“Atirar! Atirar!” – cidade de Debrecen, 18 horas. “Atirar! Atirar!” – Budapeste, 21 horas e 37 minutos. Estava dada a ordem: tombaram os primeiros estudantes e operários sob o fogo da polícia. Alastrou-se pela capital e outras cidades do país a luta do povo húngaro contra o que parecia mais claramente ser uma nova força de opressão externa.
O movimento húngaro expressara um claro sinal: algo estava acontecendo na disposição das peças do xadrez político da Cortina de Ferro, no Leste Europeu.
O Ocidente significou, desde a Idade Média, a civilização cristã europeia, por oposição ao mundo do Islã. Muito tempo depois, o Ocidente passou a ser identificado ao conjunto de valores derivados do Iluminismo. Já na acepção política contemporânea, Ocidente é uma invenção da Guerra Fria. A sua modelagem envolveu a construção de uma aliança transatlântica entre os Estados Unidos e a Europa Ocidental, formalizada pela criação da OTAN, em 1949. Esse projeto dependia de uma reorientação política dos partidos da social-democracia europeia, rompida com os partidos comunistas desde a Revolução Russa de 1917, mas até então hostil aos Estados Unidos.
Essa aliança teve como uma de suas principais bases o Plano Marshall. O premiê britânico Winston Churchill o classificou como “o menos sórdido ato na História”. Nikolai Novikov, embaixador da União Soviética em Washington, definiu suas intenções como “propaganda demagógica oficial servindo como cortina de fumaça” para disfarçar a “formação de um bloco europeu ocidental como instrumento da política americana”. Os dois estavam certos.
A aposta do governo dos Estados Unidos, reorientada pela nova Doutrina Truman, era a de que os partidos comunistas da Europa Ocidental perderiam espaço mediante a recuperação econômica incrementada pelos vultosos investimentos nos países destruídos pela Segunda Guerra. Foi assim que se materializou a doutrina de contenção à influência da União Soviética: não bastaria estabelecer as regras do jogo; era indispensável mover as próprias peças.
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A história do levante húngaro começou três anos antes, com a morte de Stalin, em março de 1953. Sem a figura absoluta do “Grande Irmão”, abriu-se caminho para a contestação à hegemonia soviética, que havia se tornado uma burocracia centralizadora e autoritária.
Tais questionamentos se instalaram no interior do próprio Partido Comunista soviético (PCUS), especialmente a partir do 20º Congresso do PCUS, realizado em 25 de fevereiro de 1956. O novo Secretário-Geral do Partido, Nikita Kruschev, em seu célebre “discurso secreto”, denunciou as violências, expurgos, deportações e supressões às liberdades impostas sob o mando de Stalin. O momento foi preparado com antecedência. Um ano antes, uma comissão da alta direção partidária investigou detalhadamente os grandes expurgos stalinistas deflagrados a partir do Congresso dos Vencedores, de 1934. O relatório da comissão concluiu que, entre 1937 e 1938, se executaram 700 mil pessoas acusadas de “atitudes antissoviéticas”.
O stalinismo excluía, como premissa, o direito à dissensão. A experiência do terror impunha reconhecer a necessidade de mudar os rumos e depurar o passado. A retórica de Kruschev, entretanto, não estava livre de sectarismos: não era o sistema soviético que estava em causa, tratava-se de enterrar ideologicamente o cadáver de Stalin.
A “desestalinização” era um processo inevitável. Ela permitiu a divergência, inscrita no contexto restrito das cúpulas dos partidos comunistas, inserindo-se, assim, um elemento de perturbação na ordem do “socialismo real”. O dogma da infalibilidade de Moscou produzido por Stalin estava sendo derrubado. Os governos da Polônia e da Hungria demonstravam uma tendência de afastamento frente à hegemonia soviética. Eles foram os principais meios de interlocução entre o poder do Estado e as dissidências organizadas em seus próprios países, expondo a fragilidade desses partidos comunistas locais como forças efetivamente populares.
Deflagrou-se uma temporada crises, marcadas por revoltas dramáticas: as artes, os partidos e os sindicatos ferviam com os caldeirões das fábricas.
Tal qual na Hungria, o comunismo foi imposto na Polônia nos anos subsequentes ao fim da Segunda Guerra, seguindo o Acordo de Ialta, firmados em fevereiro de 1945 entre Stalin, Roosevelt e Churchill.
Wladyslav Gomulka, líder do Partido Unido dos Trabalhadores Poloneses (PZPR) que resistia à subordinação à Moscou, foi substituído pelo fiel stalinista Boleslaw Bierut. Com a aparente reorientação apontada por Krushev, Gomulka voltou ao poder em 1956, como solução para um levante operário que ameaçava os fundamentos do regime (afinal, os governos comunistas seriam a expressão do proletariado). A Polônia jamais se deslindou da crise aberta pelo junho de 1956: uma onda de greves se alastrou rapidamente pelo país e as reivindicações operárias ecoaram entre os vizinhos.
Naquele momento, a parte oriental de Berlim, a cidade que materializava os antagonismos entre duas visões de mundo, viu eclodir um levante de trabalhadores que rapidamente se transformou numa revolta generalizada contra o governo da República Democrática Alemã, a Alemanha Oriental. A repressão do regime, endossada pelos soviéticos, logo sufocaria as manifestações com prisões em massa e execuções sumárias.
Mas, a “simpatia aos poloneses” que motivara a multidão a tomar as ruas de Budapeste, descrevia, em verdade, uma trajetória de reformas paralela à da Polônia. O comunismo húngaro experimentava uma série de dissidências internas que se aglutinavam no Círculo Petofi, um centro de discussões políticas batizado em homenagem a Sándor Petofi, poeta inspirador da revolução liberal de 1848. No turbulento ano de 1956, se tornou em veículo para a heterogênea dissidência que funcionava como base informal de Imre Nagy, o líder proscrito.
A estátua de Stalin no chão: o povo sonhava com uma verdadeira revolução.
No fim de junho daquele ano, o Petofi organizou um debate público sobre liberdade de imprensa, atraindo mais de 6 mil pessoas, deixando Mátyàs Rákosi, o secretário-geral e líder do partido comunista, furioso. Semanas depois, sob intensa pressão popular, ele renunciou e se exilou na União Soviética.
Em outubro, Budapeste estava tomada por manifestantes e uma gigantesca estátua de bronze de Stalin estava tombada na rua. Foi então que Imre Nagy retornou ao cargo de primeiro-ministro, para retomar as reformas liberalizantes.
Em 24 de outubro, Nagy assumiu o seu posto, enquanto tanques soviéticos entraram na capital e tomaram posições ao redor do Parlamento. O chefe de governo pediu calma, enquanto pipocaram confrontos entre manifestantes e a polícia política húngara, a AVH. No dia seguinte os manifestantes tomaram as armas da AVH. A revolução tomava o lugar das reformas.
O reformismo representado por Nagy não poderia desembocar em uma conciliação parecida à da Polônia. Gomulka atendeu parcialmente às reivindicações operárias. O líder húngaro se confrontou com exigências mais amplas disseminadas entre intelectuais e estudantes: liberdade de expressão, liberdade de organização, liberdade partidária. Além disso, somava-se, essencialmente, a presença das tropas soviéticas que transformava a questão da soberania nacional numa bandeira urgente.
Nagy obteve um cessar-fogo em 28 de outubro e as tropas soviéticas recuaram para fora de Budapeste; era uma ilusão de triunfo entre os revolucionários. No dia anterior, ele havia abolido a odiada AVH, anunciado a libertação de presos políticos, declarado o fim do sistema de partido único, formado uma coalizão multipartidária e retirado a Hungria do Pacto de Varsóvia. Formaram-se comitês revolucionários autônomos por todo o país, que assumiriam as administrações locais. Horas antes, Moscou já tinha decidido esmagar o novo pacto social que se formava a partir do levante popular. A segunda intervenção soviética, combatida pelo povo durou seis dias, rendeu 20 mil húngaros e 3 mil soldados soviéticos mortos.
A “normalização” provocou o exílio de 200 mil pessoas, demandou milhares de prisões e resultou na execução de 350 líderes da insurreição, incluindo Nagy. Ele foi morto dois anos depois. A experiência da Hungria mostrou que o “socialismo real” era o Stalinismo.
O governo americano nada fez, além de falar, no desenrolar da crise húngara. O presidente Eisenhower temia a reação de Moscou, em circunstâncias que ameaçavam o próprio Pacto de Varsóvia: com a deterioração soviética nos países satélites, era possível uma reação extrema, precipitando uma guerra mundial. Em 27 de outubro o chefe da diplomacia americana John Foster Dulles disse, publicamente, que os Estados Unidos não perseguiam a independência dos países satélites e não enxergavam essas nações como potenciais aliados militares. Na prática, era uma garantia a Kruschev de que uma invasão não causaria maiores complicações.
O símbolo da Revolução Húngara de 1956: a bandeira nacional sem os símbolos da Hungria comunista, arrancados pelos manifestantes.
Mas a paralisia não apenas decorria dos riscos militares. Washington convocou uma reunião no Conselho de Segurança da ONU, um pouco antes da segunda intervenção. Entretanto, concomitantemente, desenvolvia-se uma crise motivada pela nacionalização do canal de Suez, pelo líder egípcio Gamal Abdel Nasser, contribuindo para que Kruschev decidisse esmagar de uma vez por todas a insurreição húngara.
Paralelamente, tropas israelenses invadiram a península do Sinai e, numa operação conjunta, tropas franco-britânicas atacaram o Egito e ocuparam o canal de Suez. Era uma situação difícil: os Estados Unidos não tinham como condenar a intervenção do Pacto de Varsóvia sem, ao mesmo tempo, reprovar a ação neocolonial de seus aliados da OTAN.
A Revolução Húngara provocou uma fenda, que se abriria cada vez mais, nos partidos comunistas da Europa Ocidental, principalmente na Itália e na França. A repressão sangrenta abalou a postura protetora com que os comunistas ocidentais cercavam a União Soviética para justificar o stalinismo, dando espaço para as primeiras críticas e rupturas abertas.
As reflexões provocadas influenciaram uma outra concepção de democracia, motivada por uma sociedade civil que se organiza numa expectativa emancipatória contra formas autoritárias de Estado e de governo.
A execução de Nagy e o legado do levante húngaro certamente reverberam na Europa democrática… Sobretudo na conjuntura atual: a decisão de Vladimir Putin de agredir a Ucrânia, onde acumulam-se crimes de guerra, é a primeira invasão territorial de um Estado soberano na Europa em 80 anos.
Os processos históricos, de fato, são elementos de legitimidade para a democracia moderna. Hoje, em um mundo distante da Guerra Fria, vemos o mesmo Estado agressor. A resistência dos ucranianos ecoa o passado.
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