FASCISMO II – A SOCIEDADE CORPORATIVISTA

Educação Fisica e fascismo

A soma das partes é o Duce

 

O ESTADO FASCISTA

“Desde o início o fascismo concebe a política como a manifestação da vontade de potência de uma elite que sabe plasmar a mentalidade da massa e criar, como um artista, novas realidades históricas.” (Gentile & Felice, p. 31).

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Giovanni Gentile, ministro da Educação desde 1923, foi o responsável pelo plano de escolarização do país, com especial foco na erradicação do analfabetismo e na formação de mão de obra técnica para as indústrias

A máxima “o Estado é tudo, o indivíduo é nada” sintetizava o pensamento político fascista. Giovanni Gentile, um dos principais intelectuais do fascismo, escreveu com Mussolini a Enciclopédia Nacional (a fonte oficial do conhecimento), onde pode-se ler: “Na concepção fascista da história, o homem só é homem em virtude do processo espiritual através do qual ele contribui como membro da família, do grupo social, da nação. (…) O fascismo se opõe a todas as abstrações individualistas baseadas no materialismo do século XVIII.”

Não havia lugar para liberdade individual no Estado fascista. O individualismo era um dogma liberal, inimigo do bem estar nacional. O indivíduo deveria se adaptar aos interesses coletivos e nunca o contrário. Ao invés da “luta de classes” marxista, a unidade de todos – “o Povo” – da qual emanaria a força capaz de transformar cada uma das minúsculas partes (as pessoas) num corpo poderoso: a Nação.  

“Os ritos e os símbolos do squadrismo (as esquadras de camisas pretas) eram parte integrante da sua ideologia e da sua organização. Eles materializavam e transformavam em experiência vivida o mito da nação e do ‘Estado Novo’, na medida em que deveriam imprimir, na consciência dos participantes e dos observadores presentes às cerimônias fascistas, o sentido da força e da fé do movimento.” (Gentile & Felice, p. 31).

Para essa nascente extrema-direita, mais importantes que os argumentos eram os sentimentos. No lugar da Razão, sempre imperfeita, o recurso às emoções. O irracional e subjetivo surgiam como chave de mobilização para transformar a sociedade.

 

O assassinato de Giacomo Matteotti

A ditadura fascista começou efetivamente após as eleições parlamentares de 1924, preparadas para garantir uma larga vitória ao partido de Mussolini, incluindo espancamentos de eleitores vacilantes e roubo de urnas. A nova legislatura teria dois terços das cadeiras na Câmara dos Deputados e no Senado ocupadas por fascistas. Na primeira reunião da Câmara, o deputado socialista Giacomo Matteotti fez um contundente discurso apresentando provas das irregularidades cometidas durante o processo eleitoral. Dias depois, foi sequestrado e seu corpo só foi encontrado após meses de busca.

Giacomo Matteotti

Giacomo Matteotti. Seu assassinato abriu as portas para a ditadura 

Sindicatos e partidos operários, setores do Partido Popular e do Partido Republicano reagiram ao desaparecimento de Matteotti. Era claro o risco de ruptura institucional, pois todos sabiam quem estava por trás do sumiço do deputado. No Manifesto dos Intelectuais Antifascistas, escrito pelo historiador Benedetto Croce e subscrito por outros intelectuais italianos, estava escrito:

“Em que consistiria o novo evangelho, a nova religião, a nova fé, não podemos entender pelas palavras do prolixo manifesto; e, por outro lado, fato prático, em sua eloquência silenciosa, mostra ao observador inescrupuloso uma mistura incoerente e estranha de apelos à autoridade e demagogia, de reverência proclamada pelas leis e violação das leis, de conceitos ultramodernos e de velhos moldes, de atitudes absolutistas e tendências bolcheviques, de descrença e namoro com a Igreja Católica, de cultura abominável e retiros estéreis para uma cultura desprovida de suas premissas, de delinquência mística e cinismo.”

Em janeiro de 1925, Mussolini foi ao plenário da Câmara dos Deputados e, adotando um tom de ameaça perante os adversários, responsabilizou-se diretamente pelos fatos passados, embora sem dizer a que estava se referindo. Como o parlamento se calou, o assassinato de Matteotti ficou sem punição. Ninguém deteria os fascistas.

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O Manifesto dos Intelectuais Antifascistas publicado no jornal Il Popolo

 

Il Duce

Nessa época Mussolini adotou o pronome de tratamento Duce, derivado do verbo ducere, que em latim significa guiar, comandar, liderar. O fascismo propõe um líder totalmente devotado ao “povo” e, por isso, capaz de decidir por ele, priorizando o bem estar da nação e não interesses pessoais ou de grupos. Esta seria a solução para acabar com a luta de classes.

Assim, il Duce e o Partido Nacional Fascista (PNF) organizaram uma ampla onda de perseguições prendendo e eliminando seus opositores. O Estado reconheceu o direito de exceção, criando o Tribunal Especial de Defesa do Estado, que julgaria os “crimes políticos”. Às vezes esses “juízes especiais” pertenciam à Milícia Voluntária de Segurança Nacional. Para evitar a “ameaça bolchevique”, o rei Vitor Emanuel III e as Forças Armadas aceitaram o atropelo das leis.

Completando o golpe, em 1928 uma reforma constitucional proibiu a existência de partidos políticos, impôs censura a todos os meios de comunicação, permitiu a prisão e deportação de lideranças políticas que se recusassem a jurar fidelidade ao chefe da nação (isto é, ao Duce, não ao rei). A ditadura se consolidou quando o Grande Conselho Fascista passou a dirigir as pautas do Legislativo e as decisões do Judiciário.

A filiação ao PNF tornou-se quase um pré-requisito para a convivência na vida civil. Sem ela, um indivíduo não poderia participar de concursos, exercer cargo no funcionalismo público ou receber os passes necessários para as viagens regionais. Passados alguns anos, as pessoas comuns perceberam que havia bastante de teatro na administração fascista. Logo o humor popular traduziu a sigla do PNF por Per Necessità Familiare (por necessidade familiar).

 

Fascismo e propaganda 

Se nos primeiros anos o governo fascista apenas censurava qualquer produção artística e intelectual, a partir de 1926 houve a incorporação das novas formas de comunicação (rádio e cinema), e de suas linguagens (especialmente da propaganda, em pleno surgimento). A política cultural tornou-se um assunto de Estado, ajudando a moldar a consciência e a autoimagem da nação. O caráter moderno do fascismo e suas influências futuristas manifestaram-se na rápida adoção das novas mídias e na percepção do potencial que elas traziam.

Os responsáveis por tais diretrizes falavam em “andar em direção ao povo”, uma suposta busca por referências na cultura popular numa época em que cultura era apenas o que as elites consumiam. Educação, artes e esportes eram os componentes fundamentais da máquina de propaganda do regime, que orientava a população a assumir um modo de vida fascista: solar, ativo e altivo. Houve um esforço efetivo para combater o analfabetismo infantil e isso incluía as meninas, muitas das quais se tornariam professoras.

Mussolini foi hábil na construção de uma figura mítica para dar substância ao Duce. Ele, um homem forte, viril, cuidadosamente filmado trabalhando junto aos camponeses ou comandando as tropas, para ser exibido nas salas de cinemas. O poder do rádio era ainda maior, por sua própria difusão. Os aparelhos de rádio ainda estavam se disseminando, mas um alto-falante junto à igreja local ou na sede do PNF transmitindo a voz forte do Duce já era um evento capaz de reunir toda a comunidade local. Pela primeira vez, o conjunto da população percebia a figura de um líder político tão próxima.

Balila: as crianças fascistas

Uniformes, marchas, exercícios, disciplina foram as ferramentas para moldar o “novo italiano”: “formar a consciência e o pensamento daqueles que serão os fascistas de amanhã”

 

Essa ação política tornou-se tão importante que passou a ser controlada pelo Escritório de Imprensa do Chefe de Governo, por sua vez incorporado ao Ministério das Relações Exteriores. Já a seção do Escritório dedicada à imprensa italiana estava subordinada ao Ministério do Interior, por ser vista como assunto de segurança nacional. O discurso oficial falava na “Itália Nova”: um país estável, com uma sociedade de moral sóbria e vida dedicada ao trabalho e à família, em oposição ao caos e à desordem provocados pelos valores liberais.

Os jornais foram proibidos de publicar notícias criminais, epidemias, crimes passionais ou suicídios, enquanto campanhas sociais valorizavam a maternidade e a família, símbolos de continuidade da nação. Já imagens de mulheres seminuas ou excessivamente magras estavam vetadas.

Sobre o Duce, os jornais não noticiavam questões de saúde ou eventos da vida privada (como as muitas amantes), reforçando sua aura. Uma diretriz oficial determinava que os discursos de Mussolini seriam publicados na primeira página e que os jornalistas estavam proibidos de elogiar outros políticos, exceto o rei (ele mesmo, porém, reduzido a figura decorativa).

 

O LUGAR DE CADA UM

Em seus primeiros anos, as ações político-econômicas do fascismo destinaram-se a reduzir o papel do Estado na economia, numa linha bastante liberal. Mas tudo mudou depois da quebra da Bolsa de Valores de Nova York, em 1929, e a conclusão foi que a instabilidade da mão invisível do mercado deveria ser substituída pela mão pesada do Estado, cujo papel seria de orientador e legislador.

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Capa de La moda illustrata, 1936. A escassez de matérias-primas fez a indústria de moda italiana buscar soluções inovadoras, utilizando materiais até então pouco valorizados 

Os fascistas acreditaram que a luta de classes poderia ser superada por meio da colaboração econômica entre as classes, que daria lugar a uma sociedade mais produtiva e próspera. Os ricos deveriam acatar orientações do Estado e, assim, encerrava-se o debate em torno da propriedade privada e do lucro. Das elites agrárias e industriais esperava-se adesão ao projeto de autarquia, ou seja, a busca pela autossuficiência econômica para  libertar a Itália da dependência externa.

Para executar a autarquia, foram criados os Instituti ou Enti Nazionali (Institutos ou Entes Nacionais), entidades mistas reunindo representantes do governo e das principais empresas do setor para traçar objetivos, possíveis subsídios, política de preços e salários etc.

Em meados dos anos 1930, contudo, o que os historiadores demonstraram é que Itália acompanhava a mesma tendência de concentração de riqueza de outros países e multiplicam-se os trustes. “Em 1937, existem 5 mil estabelecimentos industriais a menos do que em 1934” e “em 1936, menos de 1% das sociedades anônimas italianas agrupa 50% do capital-ação global e mais de 80% destas companhias não totalizam senão 8% do capital”. (M. Crouzet, p. 210).

 

A Carta del Lavoro e o corporativismo

Na “nova era” anunciada pelo fascismo nada deveria prejudicar a capacidade produtiva nacional. O Estado assumia o papel de mediador das relações entre capital e trabalho, a fim de conter a insatisfação dos trabalhadores. Era essa a intenção da Carta del Lavoro, de 1927, fonte de inspiração para governos como os de Getúlio Vargas, no Brasil, e Antônio Salazar, em Portugal. Como resultado, impôs-se uma forma autoritária de negociação trabalhista,  por silenciar qualquer organização independente ou sindicato não autorizado. Lembre-se: “não há nada fora do Estado”. Mas o patronato também foi obrigado a reconhecer direitos dos trabalhadores . 

A “Carta do Trabalho” foi a primeira legislação trabalhista italiana. Ela protegia o proletariado da superexploração, incluindo regras previdenciárias e de assistência social. Regulava-se a jornada de trabalho (embora não citasse as oito horas, objetivo comum dos trabalhadores nessa época e símbolo do internacionalismo), férias, trabalho feminino. Proibia o trabalho infantil.  De fato, porém, em uma década depois muitas dessas regras foram rompidas pelos patrões sem que houvesse punição.

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Mussolini na propaganda da Batalha pelo Trigo, lançada em 1925. A Itália precisava libertar-se da “escravidão do pão estrangeiro”

A Carta funcionou como veículo legal para a instalação da ordem corporativa na sociedade italiana. A corporação foi definida como a “organização unitária da força de produção” responsável pela coordenação de todos os aspectos da produção de um dado setor. Cada corporação era composta por um representante dos empregados, outro, da empresa, e um terceiro – o poder moderador – designado pelo Estado. Eis a gênese da Justiça do Trabalho.

Patrões e empregados deveriam participar das 22 corporações previstas pelo Estado, doravante o único canal de negociação legítimo. Subordinando os sindicatos ao Estado, os fascistas cumpriam o seu projeto de “nacionalizar” as massas trabalhadoras.

No lugar das centrais sindicais, cuja força refletia o tamanho de suas bases de apoio, concentrou-se o poder nas mãos das lideranças trabalhistas, que passavam a decidir a vida de milhares de representados nas negociações. O resultado foi a criação de relações de privilégio em favor dos representantes sindicais. É o que, no Brasil de Getúlio Vargas, ficou conhecido como peleguismo.

 

A submissão do Eu

O corporativismo, além de ser uma resposta ao individualismo burguês, desmobilizava a sociedade civil, pois as organizações autônomas tenderam a desaparecer (ou se tornaram irrelevantes). Para o fascismo o aparelhamento corporativo de todas as instituições garantiria o controle social. Os direitos dos cidadãos derivavam dos direitos dos trabalhadores, ambos dependentes de regulação estatal para existir.

Agrupadas nessas associações, as pessoas se vigiavam mutuamente, mesmo que de forma involuntária. Não pertencer a nenhuma corporação tinha graves consequências: era praticamente a morte social. A ordem fascista não reconhecia o direito à divergência e muito menos a liberdade de pensamento.

Contudo, ao longo dos anos as fragilidades econômicas se impuseram mostrando que o corporativismo favorecia apenas um lado. “A massa do povo, paciente e trabalhadora, continuava a levar uma vida difícil e resignada; a depressão (1929) intensificou o cansaço, e tanto operários como camponeses mergulharam na miséria e no desespero, de forma que o regime viveu numa atmosfera cada vez mais impregnada de ceticismo e mesmo de indisciplina. Já em 1933, só metade das crianças italianas pertencia às diversas formações fascistas; os operários e camponeses desinteressam-se delas, sobretudo as classes dirigentes inscrevem seus filhos, por saberem que tais organizações constituem a chave das funções administrativas e das profissões liberais. Da mesma forma, é o interesse que, amiúde, inspira as adesões ao partido. De outro lado, o controle do partido sobre o país e mesmo sobre os seus membros nunca foi tão total como na Alemanha.” (M. Crouzet, p. 306).

 

A paz com a Igreja

Papa Pio XI. Realista, ele salvou a Igreja Católica de ser engolida pela transitoriedade do mundo terreno

Para realizar seu maior projeto, um Estado italiano forte e respeitado internacionalmente, Mussolini teria que resolver o conflito com a Igreja Católica. Cinquenta anos depois de perder o domínio sobre Roma, a Igreja tinha poucas esperanças de reverter a situação. O problema principal, contudo, não residia nas perdas materiais, mas na impossibilidade da Igreja abrir mão de sua soberania política: afinal, o papa e a Igreja só se submetem a Deus.

Longas negociações conduziram aos Tratados de Latrão, assinados pelo Papa Pio XI e Mussolini, em 1929. Os acordos previam: 1) O reconhecimento da soberania da Igreja dentro da área do Vaticano. Isso significava dar à Santa Sé o estatuto de Estado e ela, em contrapartida, deveria reconhecer a legitimidade do Estado italiano; 2) O governo indenizaria a Igreja pelas perdas materiais; 3) o catolicismo seria declarado religião oficial do Estado e seu ensino seria obrigatório nas escolas.

Além disso, foi garantida isenção de serviço militar aos membros do clero. O casamento religioso adquiriu validade jurídica de casamento civil. Era uma maneira encontrada pelo Estado para obter algum controle (mesmo que indireto) sobre áreas isoladas do país, onde a autoridade dos padres costumava ser a única conhecida.

Depois de Latrão, os católicos italianos se sentiram livres para aderir ao fascismo de corpo e, agora, também de alma.

 

SABER MAIS

  • Estatuto do Partido Nacional Fascista, com modificações até 1943
  • CROUZET, Maurice. História geral das Civilizações, v. 15. RJ: Bertrand Brasil, 1996
  • GENTILE, Emilio &; FELICE, Renzo de. A Itália de Mussolini e a origem do fascismo. São Paulo, Ícone, 1988. Coleção Rediscutir o Fascismo
  • MAGNOLI, Demétrio & BARBOSA, Elaine Senise. “Benito Mussolini e os fascismos” IN: O mundo em desordem (1914-1945). Rio de Janeiro/São Paulo: Editora Record, 2011, p. 233-252
  • PARIS, Robert. As origens do fascismo. São Paulo: Editora Perspectiva, 1993
  • VACCARI, Alessandra. Moda na autarquia: políticas de moda na Itália fascista nos anos 1930

 

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