OS DESAFIOS DE PETRO E MÁRQUEZ NA COLÔMBIA

 

Rafael Pepe Romano

(Bacharel em Direito, graduando em Ciências Sociais/USP e pesquisador do site 1948 – Declaração Universal dos Direitos Humanos)
27 de junho de 2022

 

Gustavo Petro e a sua companheira de chapa, Francia Márquez, durante a campanha eleitoral

 

“Obrigado a todos por esse dia que certamente é histórico. Uma história nova para a Colômbia, para a América Latina, para o mundo inteiro…aqui temos uma mudança de verdade…não vamos trair esse eleitorado que gritou ao país que a partir de hoje a Colômbia muda, uma mudança real que nos conduz a algumas das propostas que fizemos nessas praças públicas”, declarou Gustavo Petro logo após o anúncio da vitória de sua chapa no segundo turno da eleição presidencial, realizada no dia 19 de junho passado.

A aliança de esquerda Pacto Histórico, encabeçada por Petro, ex-senador e ex-prefeito da capital Bogotá, e pela advogada e ativista ambiental Francia Márquez, uma mulher negra oriunda das periferias, derrotou com apenas 700 mil votos de diferença a chapa do candidato Rodolfo Hernández, um outsider com discurso de extrema-direita que soube utilizar as redes sociais em seu favor e se destacou como fenômeno do TikTok.

Fonte: Registro Nacional Civil da Colômbia

A eleição, na qual o voto não é obrigatório, foi marcada por expressivo comparecimento às urnas e trouxe resultado inédito na Colômbia: a opção por um governo de esquerda. Há décadas, a política colombiana é marcada pelo ambiente de “guerra suja” contra as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc), resultando na eleição de sucessivos governos de direita ou centro-direita.

Hoje, a direita tradicional é representada pelas figuras do ex-presidentes Álvaro Uribe, mais conservador, e Juan Manuel Santos, mais liberal. No entanto, eles foram os grandes derrotados no pleito presidencial, uma vez que seus candidatos não conseguiram chegar ao segundo turno, sinal de esgotamento do velho modelo político.

No Congresso recém-eleito, o bloco de centro-esquerda que engloba o Colômbia Humana, o Partido Comunes (ex-Farc), os grupos indígenas e a Coalizão Centro Esperança soma 35% dos assentos. A direita, com a metade das cadeiras do Legislativo, mantém o controle parlamentar. A geografia eleitoral expôs as contradições do país: as regiões mais populosas e desiguais da Colômbia – Bogotá e sua periferia, el Valle, Atlántico, Nariño e Cauca – garantiram o triunfo de Petro e Márquez.

Em discurso triunfal, a primeira vice-presidente negra, mãe solteira aos 16 anos e ex-trabalhadora doméstica, se dirigiu especialmente às mulheres, jovens e indígenas. “Quero agradecer a todos os colombianos e colombianas que deram a vida por esse momento. Todos nossos irmãos e irmãs, líderes sociais que foram assassinados neste país, à juventude que tem sido assassinada neste país, às mulheres que foram violadas e desapareceram. Obrigada por terem plantado a semente da resistência e esperança.”

Depois das eleições, vem o desafio de governar e estabelecer uma agenda pública que priorize o combate às desigualdades, capaz de negociar com os diferentes setores de uma sociedade fortemente dividida. 

 

Violência na política e a tradição de armas

A violência é um componente inerente à tradição política do país e ganhou relevo a partir das tensões no campo que deflagraram uma longa guerra civil a partir de 1964. No quadro da Guerra Fria, que depois se entremeou com o “Plano Colômbia” (a política de “guerra às drogas” financiada pelos Estados Unidos, que modernizou o Exército colombiano mas fortaleceu as milícias da direita colombiana), desenrolou-se o mais duradouro conflito armado da América Latina. A guerra interminável cortou os caminhos para a esquerda democrática, consolidando o status quo e possibilitando alianças entre o poder político e o narcotráfico.

Bonde em chamas em frente ao Capitólio Nacional onde acontecia a IX Conferência Pan-Americana, no Salão Elíptico do Capitólio Nacional, durante o Bogotazo, em 1948

A tragédia começou em 1948, quando o candidato presidencial Jorge Eliécer Gaitán, cujo discurso era voltado à proteção da classe trabalhadora e ao reconhecimento de direitos sociais, foi assassinado a tiros nas ruas de Bogotá. Seguiu-se uma onda de intensa violência urbana, conhecida como Bogotazo, que prenunciava o ciclo de golpes e ditadura militares que marcaria toda a América Latina.

Em 1989 foi a vez da violência provocada pelo narcotráfico dificultar a normalização civil do país. Naquele ano, o candidato favorito nas eleições para presidente, Luís Carlos Galán, foi assassinado a tiros em pleno comício eleitoral, em Soacha, na região metropolitana de Bogotá. 

Agora, Petro deverá acertar contas com o seu passado de guerrilheiro do M-19, um grupo guerrilheiro que depôs as armas, aceitou o processo de paz e participou do processo constituinte de 1991. O novo presidente precisa convencer aqueles que não o escolheram a aceitar sua conversão ao jogo democrático. Apesar do processo de paz, a sombra das Farc e do Exército de Libertação Nacional (ELN), que ainda não depôs as armas, paira sobre a política colombiana.

 

O passado que assombra o presente

Ainda é muito cedo para saber se o Pacto Histórico conseguirá realizar suas promessas corajosas e seu compromisso de modificar a cultura política e combater as feridas abertas por desigualdades seculares. As dificuldades formam uma longa lista. 

Uma das mais importantes e delicadas diz respeito à urgência de reestruturação das Forças Armadas e de segurança pública. Essas instituições ainda carregam o pensamento oriundo da Doutrina de Segurança Nacional, desenhada pelos Estados Unidos na década de 1960 em resposta à Revolução Cubana. O comunismo e a reforma agrária eram os grandes inimigos. Membros das forças militares já declararam anonimamente que temem que mudanças significativas ocorram; a eclosão de motins e outras desobediências militares não é uma hipótese estapafúrdia.

Na Colômbia, há mais de um século, a polícia tem como seu chefe máximo o presidente da República. A Constituição de 1991 retirou da polícia o status de componente das Forças Armadas. Na prática, porém, quase nada mudou porque ela continua subordinada ao Ministério da Defesa. Isso significa que a polícia segue operando a partir de uma lógica bélica. Eis a contradição: como conceber uma polícia garantista da cidadania, isto é, como instituição de tutela dos direitos e liberdades públicas, se seus integrantes são treinados para combater “inimigos internos”?

Por isso a desmilitarização das forças do Estado é uma questão central da agenda Petro. As forças policiais e militares que atuavam nas selvas combatendo as Farc e outras guerrilhas é a mesma que atua contra os manifestantes nas cidades e reprime brutalmente as formas legítimas de oposição civil. Hoje, a Colômbia tem o segundo maior gasto militar da América Latina, atrás apenas do Brasil, com US$ 11 bilhões, o equivalente a 12% do orçamento do Estado.

“A função do Exército é a defesa, e a função da polícia é proteger direitos e liberdades”, declarou Petro um pouco antes do segundo turno. Além de crítico do establishment militar, o presidente eleito defende o julgamento de militares acusados por violações de direitos humanos em tribunais civis, dado o costumeiro espírito corporativo dos tribunais militares quando julgam os seus pares, o que resulta em absolvições ou penas brandas.

O escândalo dos “Falsos Positivos”, revelado pela Jurisdição Especial para a Paz (JEP), um órgão provisório criado em 2016 pelo Acordo de Paz que encerrou a guerra entre o Estado colombiano e as Farc, ilumina a dimensão dos desafios. Descobriu-se que a política oficial do Exército para a contagem de mortos em combate acabava incentivando a “produção” de cadáveres. Premiados pelos números que rendiam benefícios, militares matavam civis e alegavam, nos documentos oficiais, que as vítimas eram guerrilheiros e narcotraficantes mortos em combate.

Favela em Medelín

Favela em Medellín. Nas comunidades periféricas se concentram as vítimas da pobreza e da “guerra às drogas”  

A Human Rights Watch afirma que vários desses processos estão “esquecidos” na Justiça Militar. Não se trata de retaliação, mas de grave falha na obtenção de dados e informações que darão a real dimensão dos crimes contra a humanidade perpetrados pelas forças de segurança do Estado colombiano durante as décadas da guerra civil.

A necessidade de punir e coibir os excessos cometidos pelas forças oficiais de segurança torna central o recolhimento de testemunhos. Trata-se de estabelecer a verdade, a fim de que a justiça de transição estenda-se a todos, um objetivo contra o qual a direita conservadora mobiliza sua base de apoio.

O esquadrão de choque colombiano indica outra encruzilhada. Deve ser desmantelado e é muito criticado pelo Conselho de Direitos Humanos da ONU, por estar diretamente ligado às graves violações de direitos na repressão aos protestos populares de 2019 e 2021.

Naquelas manifestações, uma população enraivecida pela piora das condições socioeconômicas provocadas pela pandemia da Covid-19, somada ao desinteresse do governo de Iván Duque no enfrentamento à pobreza, sofreu violências policiais sistemáticas. O novo governo assumiu o compromisso de investigar as múltiplas denúncias de assassinatos e prisões arbitrárias, além de estupros coletivos contra manifestantes.  

 

O desafio de conciliar realidade e esperanças

O resultado eleitoral rompe a inércia que caracterizou o comportamento da política colombiana nas últimas décadas. Mas Petro e Márquez terão de adequar o discurso à realidade, porque as suas políticas correm o risco de não saírem do papel, dadas as resistências que enfrentarão, começando pelo parlamento.

Por outro lado, presidente e vice têm o imperativo de responder aos anseios das forças políticas que compõem a base das suas alianças e às angústias dos colombianos. E não é por menos: a Colômbia tem mais da metade de sua população na pobreza. Dos 50,8 milhões de colombianos, 26 milhões estão na pobreza. Nesse contingente, 39,3% estão na pobreza monetária, o que reflete 19,9 milhões de pessoas sem renda para consumir bens e serviços e comprar uma cesta básica; e 12,2% estão na extrema pobreza. Isso significa que 6,1 milhões de pessoas são vítimas do seu flagelo mais imediato: a fome.

Fonte: Departamento Administrativo Nacional de Estatísticas da Colômbia

A pobreza conheceu um salto significativo com a pandemia, ultrapassando os níveis de 2012. Reduziu-se um pouco em 2021, mas permanece em patamar muito elevado.

Segundo Carlos Sepúlveda, economista e professor da Universidade do Rosário, “a Colômbia é um país de regiões muito diferentes umas das outras e, portanto, esse crescimento e aumento da pobreza é muito desigual”. Os departamentos (estados) que apresentaram maior índice de pobreza monetária são La Guajira com 67,4% e Chocó com 63,4%. Neles, Petro obteve votação amplamente majoritária. Em La Guajira, foram 64,5% de votos para Petro e 33,7% para Hernández; em Chocó, 81,9% a 16,4%.

O cenário aponta para a necessidade de uma agenda voltada para o crescimento, com a adoção de programas sociais de transferência de renda mais imediatos para aliviar a pobreza, articulados com reformas para viabilizar o ingresso e permanência das pessoas na classe média. Para isso, Petro precisará do Congresso: negociar com partidos que não compõem a sua base e atrair a confiança do mercado para poder avançar com seus projetos de mudanças estruturais, de modo a conseguir recursos suficientes para implementar os programas propostos.

Quando o geógrafo Alexander von Humboldt investigou os costumes dos antigos habitantes nos planaltos de Bogotá, aprendeu que os indígenas chamavam de quihica as vítimas das cerimônias rituais. Quihica significa porta: a morte de cada eleito abria um novo ciclo de 185 luas. Agora, com a saída de Duque, Petro precisa aproveitar o novo ciclo para conciliar a dura realidade com as grandes expectativas que tomam conta do país.

 

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