DJOKOVIC NO HOTEL-PRISÃO DOS REFUGIADOS

 

Demétrio Magnoli

17 de janeiro de 2022

 

“Vocês vão lembrar de nossos amigos quando Djokovic partir no seu jato particular?”. A pergunta, escrita a mão num cartaz improvisado, permaneceu à vista dos fotógrafos e cinegrafistas durante os quatro dias de detenção do tenista número um do mundo no Park Hotel, em Melbourne. Depois, Novak Djokovic partiu, mas para treinar na Arena Rod Laver, palco principal do Aberto da Austrália, enquanto prosseguia a tragicomédia de sua deportação.

Os “amigos” mencionados no cartaz são refugiados presos há meses no mesmo Park Hotel e em tantos outros centros de detenção mantidos pela Austrália, seja no seu próprio território, no micro-Estado insular de Nauru ou na ilha de Manus, pertencente a Papua Nova Guiné. A resposta à pergunta não tardou. Logo, só se falava novamente no “caso Djokovic” – e na sacrossanta imagem da Austrália.         

A Austrália tornou-se piada mundial, acusaram deputados de oposição, com toda a razão. Sob o governo federal de Scott Morrison, e com apoio geral dos governos estaduais, a ilha-continente adotou algumas das mais severas restrições sanitárias do mundo ao longo da pandemia de Covid-19. Foram extensas quarentenas rígidas nas principais cidades, como Melbourne e Sydney, e rígidos fechamentos de fronteiras externas e interestaduais.

Porém, e quase sempre há um porém, o Estado australiano permitiu o ingresso no país de um tenista célebre que não se vacinou. 

 

A lei vale para todos?

“A lei vale para todos”, garantiram muitas vezes as autoridades, enquanto produziam clamorosas exceções. Celebridades de Hollywood converteram o país em parque de folguedos, aproveitando a liberdade de movimentos em praias e ranchos, numa terra que permaneceu livre do coronavírus durante mais de um ano. Os ricos e famosos beneficiaram-se de exceções concedidas pelas autoridades para transferir residência temporária, cumprindo supostas quarentenas nas suas novas mansões.

Na “Aussiewood”, idílico paraíso nos mares do sul, pousaram Zac Efron, Mark Wahlberg, Matt Damon, Julia Roberts, George Clooney e Idris Elba, entre outros. Todos circundaram os deploráveis “hotéis de quarentena” obrigatórios para os cidadãos australianos. Enquanto isso, 40 mil australianos residentes no exterior, muitos já sem emprego ou renda, permaneciam impedidos de retornar a seu próprio país, rodeado pelas muralhas intransponíveis da emergência sanitária.

De malas prontas: no Twitter, Djokovic anuncia sua partida rumo à Austrália, depois de obter isenção médica de exceção

A “exceção Djokovic” não foi a primeira. O tenista sérvio não-vacinado, nove vezes triunfante no Aberto da Austrália, anunciou em 4 de janeiro sua partida para Melbourne. A entrada estaria garantida por uma isenção médica.

A operação começou com um acordo entre a Tennis Australia, entidade esportiva que organiza o torneio, e o governo estadual de Victoria, onde se situa Melbourne. Inscreveu-se, entre os motivos de isenção da exigência de imunização, um contágio por Covid-19 nos seis últimos meses. O governo federal aceitou tacitamente a excepcionalidade, declarando que o assunto competia às autoridades estaduais e fornecendo um visto para Djokovic. Contudo, o primeiro-ministro girou 180 graus diante da reação indignada da opinião pública, no exato momento em que o tenista embarcava no voo de 25 horas.

“Ninguém está acima das regras!”, declarou cinicamente Morrison, que enfrenta uma incerta eleição federal em maio. Seu vice, Barnaby Joyce, deu um passo além, acusando o sérvio de tentar “transformar o poder soberano de outra nação numa pilhéria”. Joyce ainda acrescentou, em curto sermão indignado: “você não pode simplesmente perambular pelo mundo imaginando que, por ser muito rico, está acima das leis de outras nações”.

A novela seguiu por rumos imprevistos. No aeroporto, Djokovic teve seu visto revogado e foi enviado ao Park Hotel, utilizado como prisão temporária de solicitantes de asilo. Seus advogados recorreram, argumentando que o tenista cumpriu as regras de exceção fabricadas especificamente para ele mesmo – e obtiveram vitória judicial.

Nesse intervalo, o governo australiano revogou o visto da tenista tcheca Renata Voracová, que se aproveitara da “exceção Djokovic”, já estava na Austrália há oito dias e disputara um torneio preparatório. O gesto do governo, uma involuntária confissão de duplicidade, destinava-se a criar uma aura ilusória de coerência em torno da decisão de última hora de impedir a entrada do sérvio. No fim, diante de um desastre político insanável, para salvar sua face, o governo voltou a revogar o visto de Djokovic. Assim, o tenista foi impedido de disputar o torneio e deportado.  

 

Os “mais iguais” e os “diferentes”

Djokovic é “mais igual” que os cidadãos comuns, australianos ou estrangeiros, assim como as celebridades de Hollywood que o precederam. Também é “mais igual” que Voracová, pois tem recursos suficientes para levar o governo de Morrison a um tribunal. Entretanto, o cartaz exibido diante do Park Hotel ilumina uma ferida ainda pior: além de fazer distinção entre “mais iguais” e “menos iguais”, a Austrália discrimina com especial ferocidade os totalmente “diferentes”.

Quando, no início da novela, o juiz australiano reinstituiu o visto de Djokovic, Nigel Farage tuitou em apoio ao tenista, como se a decisão significasse uma vitória da “liberdade”. A réplica ao líder da direita ultranacionalista britânica, o mais notório arauto do Brexit, veio na forma de um tuíte do tenista escocês Andy Murray: “Registre-se o embaraçoso momento no qual você explica que passou a maior parte de sua carreira fazendo campanha para deportar pessoas da Europa Oriental”.

Um juiz barrou temporariamente a deportação de Djokovic, mas a Austrália prende e deporta sem clemência imigrantes que demandam asilo. São eles os totalmente “diferentes”.

O destino da maioria é o confinamento nas ilhas-prisão extraterritoriais de Nauru e Manus, uma ideia que o Reino Unido estuda imitar. Há, ainda, os que permanecem meses, às vezes anos, numa rede de centros de detenção em território australiano, enquanto aguardam interminavelmente a análise de seus pedidos de asilo.

A rede principal de centros de detenção é suplementada pelo uso de hotéis-prisão, geralmente destinados a acomodar solicitantes de asilo em trânsito ou que necessitam cuidados médicos. O Park Hotel, de Melbourne, no qual Djokovic permaneceu por quatro dias, é um deles.

“Não há ar fresco, houve um incêndio recente, a comida é ruim, não temos acesso ao ginásio, o hotel é totalmente fechado”, explicou Jamal Mohamed, um dos detidos. Mehdi, um refugiado que está preso em diferentes locais há nove anos, revelou-se “desapontado”: “Todos perguntam sobre Novak, como o hotel é para ele. Mas não perguntam sobre nós: estamos trancados nesse lugar por meses, por anos.”

Mehdi, como outros, passou anos no centro extraterritorial de Nauru, e foi transferido para o Park Hotel para receber atenção médica. Os médicos não apareceram, mas os detidos encontraram larvas e pão mofado nas refeições, no final de dezembro. Ishmael, também detido no hotel, registra que “passamos 23 horas por dia num quarto sem janelas”. Ele entendeu perfeitamente a farsa operada por meio da detenção da estrela das quadras de tênis:

“Sabemos que eles pretendem enviar uma mensagem: que eles têm uma forte polícia de fronteiras e que ela trata a todos igualmente. Mas ela não tem sido igualitária por nove anos. Eles diferenciam as pessoas com base na classe social. Agora, querem enviar uma mensagem, mas ela é falsa e jamais foi verdadeira. Eles discriminam contra quem chega em barcos: os mais vulneráveis, que não dispõem de outra opção.”

Os australianos sempre nutriram orgulho de seu igualitarismo, um traço nacional supostamente disseminado a partir das origens históricas do país, que nasceu como colônia penal britânica. O “caso Djokovic” joga um raio de luz sobre o mito. A Austrália não tem vergonha de discriminar – nem de organizar uma moderna colônia penal para refugiados.

 

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