ILHAS DO DESTERRO

 

Demétrio Magnoli

5 de outubro de 2020

 

Que tal transferir demandantes de asilo para ilhas de desterro, centros de detenção de além-mar? A Austrália, inventora da prática perversa, inspira o projeto do governo britânico, revelado dias atrás. 

Uma fonte anônima do Home Office (o Ministério do Interior britânico) explicou que a ideia nasceu na mente de Dominic Cummings, assessor-chefe do primeiro-ministro Boris Johnson: “ele concentra-se, obsessivamente, nas travessias do Canal da Mancha”.

Imigrantes e refugiados tentam, regularmente, chegar ao Reino Unido a partir da França, cruzando o canal. Neste ano, cerca de 7 mil migrantes conseguiram pisar em solo britânico pela rota marítima, mais de três vezes o total registrado em 2019.

Dominic Cummigs (à esquerda), o guru de Boris Johnson

A obsessão de Cummings decorre de cálculos eleitorais: “Ele se incomoda pois essas notícias sempre aparecem na imprensa e pega mal com os eleitores do ‘muro vermelho’, o que de fato ocorre”. “Muro vermelho” é a expressão utilizada para designar o eleitorado do norte da Inglaterra, que tradicionalmente votava no Partido Trabalhista mas, sob o impacto do discurso nacionalista e xenófobo, deslocou-se para os conservadores.

Se funciona eleitoralmente, danem-se os princípios de direitos humanos – eis o raciocínio do poderoso assessor, que se espraiou até o chefe de governo. Daí que, ao longo das últimas semanas, o governo encomendou detalhados estudos sobre a construção de centros de detenção nas ilhas britânicas de Ascensão e Santa Helena, no Atlântico Sul, e em países como Marrocos, Moldávia e Papua Nova Guiné.

Kate Allen, diretora da seção britânica da Anistia Internacional, qualificou o projeto como “inteiramente imoral e desumano”. Contudo, ela sabe que não é inédito.

 

A Austrália como inspiração

A conduta imoral e desumana surgiu em 2001, quando a Austrália transferiu 438 refugiados afegãos resgatados de um barco de pesca à deriva para a ilha de Nauru. Logo, Nauru e Manus, outra ilha perdida no Oceano Pacífico, ganharam centros de detenção para demandantes de asilo.

Nauru é um país insular independente. Manus é uma ilha de Papua Nova Guiné. O governo australiano estabeleceu nelas “prisões de aluguel”, mediante ajuda financeira aos dois governos. A chamada “Solução do Pacífico” tornou-se uma política aprovada pelo Parlamento. Seus principais defensores estão no Partido Liberal, mas os opositores dos partidos Trabalhista e Verde, temerosos em contestar a xenofobia, tendem a calar ou a moderar suas críticas.

A reprodução da “Solução do Pacífico” pelo Reino Unido provocou reações de indignação e perplexidade. Minnie Rahman, do Conselho para o Bem-Estar dos Imigrantes, uma ONG, rotulou a proposta como “tão ridícula que é quase risível”. Stephen Hale, da Ação pelos Refugiados, outra ONG, clamou por um sistema de asilo “baseado em compaixão, segurança e legalidade”, antes de concluir, esperançosamente, com as palavras “o Reino Unido é melhor que isso”.

Nada indica, porém, que o Reino Unido de hoje, com suas múltiplas políticas de discriminação nas fronteiras, seja “melhor que isso”. Nem que os planos do governo sejam “risíveis”, pois contam com amplo apoio entre deputados conservadores.

Ilhas do desterro

Ilha britânica de Ascensão, no Atlântico Sul. Uma futura ilha-prisão?

A ideia não é nova. Durante o governo liderado pelo trabalhista Gordon Brown, entre 2007 e 2010, o deputado conservador Oliver Letwin formulou a proposta de imitar a “solução” australiana. Na ocasião, David Cameron, então líder da oposição conservadora, respondeu-lhe com a sugestão de “tomar um banho gelado”. De lá para cá, com o Brexit e a ascensão de Johnson, o que era “risível” tornou-se quase política oficial. Os tratados internacionais de direitos humanos, a moralidade e a compaixão já quase nada valem na nação que inventou o governo constitucional.

 

O plano das ilhas-prisão

Desde agosto, pelo menos, forças navais britânicas e francesas conduzem exercícios de teste de bloqueio do Canal da Mancha destinados a interceptar embarcações com migrantes, segundo documentos sigilosos obtidos pelo jornal The Guardian. Os documentos também contêm recomendações ao governo britânico para “negociar centros offshore de processamento de solicitações de asilo similares ao do modelo australiano em Papua Nova Guiné e Nauru”.

Diante das revelações do jornal, uma fonte do Home Office declarou que “preparamos táticas inovadoras” para “inviabilizar o uso de pequenos barcos destinados ao ingresso ilegal no Reino Unido”. A preocupação com a imigração ilegal tem legitimidade, mas as “táticas” supostamente “inovadoras” não têm. De fato, elas sintetizam uma concepção militar sobre um impasse de natureza humanitária. A “guerra à imigração”, a atual abordagem britânica, coloca o Reino Unido à margem da lei internacional.

A “Solução do Pacífico” custa à Austrália cerca de US$ 9,3 bilhões ao ano. No passado recente, ministros britânicos fizeram chegar ao governo australiano suas preocupações sobre as violações de direitos dos demandantes de asilo isolados nas ilhas-prisão onde se situam os centros de detenção. As preocupações humanitárias, reais ou simuladas, deram lugar ao plano de imitação.

Aparentemente, o governo de Johnson já faz cálculos sobre os custos de construção dos centros prisionais offshore nas ilhas britânicas do Atlântico Sul e de hipotéticas propostas de arrendamento de áreas no Marrocos, na Moldávia e em Papua Nova Guiné. No caso deste último país, que já abriga uma prisão offshore australiana, a concretização do plano representaria algo como uma trágica e imoral especialização econômica na detenção de refugiados que buscam asilo em outras nações.

A Austrália circunda espertamente suas obrigações sob os tratados internacionais, pois seu sistema baseia-se na apreensão das embarcações com migrantes fora de suas águas territoriais. Já os britânicos, “inovadores”, pensam grande. Segundo os documentos obtidos pelo The Guardian, o projeto envolve a relocação de solicitantes de asilo que “chegaram ao Reino Unido e estão nitidamente sob a jurisdição britânica para efeitos da Convenção Europeia de Direitos Humanos e da Lei de Direitos Humanos de 1998”.

A lei? Ora, a lei…

 

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