Desde o final de abril, a Colômbia tem aparecido no noticiário associada a cenários de violência e desrespeito aos direitos humanos que chegaram a merecer uma advertência do Conselho de Direitos Humanos da ONU. Lá, como em outros países, a pandemia agravou as condições socioeconômicas da maioria da população e deixou os nervos à flor da pele.
A partir do dia 28 daquele mês, manifestações tomaram conta das ruas do país, especialmente na cidade de Cali, contra a proposta de reforma tributária enviada ao Congresso pelo presidente Iván Duque, que incidiria fortemente sobre mais pobres e a classe média. Prevista desde 2019, a reforma teria adquirido urgência devido ao desequilíbrio fiscal gerado pelas medidas de emergência adotadas para amenizar os efeitos da pandemia de Covid-19.
“Se falamos nos matam! Se calamos nos matam! Resolvemos falar para não morrer calados!!!”
Convocadas por sindicatos de trabalhadores, as marchas logo terminaram em choques com as polícias nas principais cidades do país (Bogotá, Cali, Barranquilla e Cartagena). As manifestações eram pacíficas, mas ações de violência individual, inclusive contra instalações da polícia, forneceram pretextos para a ação dos agentes de segurança pública, que descambou rumo à barbárie.
De acordo com as ONGs locais Indepaz e Temblores, 74 pessoas morreram durante os protestos, 44 por ação direta das forças de repressão. Pelo menos 83 pessoas sofreram lesões nos olhos por uso de balas de borracha e bombas de gás lacrimogênio. Depois de mais de 1,8 mil prisões, 200 pessoas foram indiciadas.
Difícil, contudo, imaginar que possa haver algo pior do que os relatos de estupros coletivos contra manifestantes – praticados por agentes de segurança pública – feitos por grupos feministas locais e pela Human Rights Watch. Os dados coletados até 3 de julho dão conta de 28 casos de violência sexual durante os protestos – número que pode ser bem maior por conta do medo das vítimas em denunciar os responsáveis.
O presidente colombiano Iván Duque
Aproximadamente um mês após o início das manifestações, em maio, Duque determinou a militarização de Cali, epicentro dos protestos, e de mais sete departamentos, transformando as tropas do Exército em força de policiamento ostensivo em nome de “evitar a violência” nas manifestações.
Ocorreu o contrário e os conflitos se intensificaram, mesmo após a retirada da proposta de reforma tributária. Porque a ampliação do movimento nas ruas trouxe pautas sociais há muito reprimidas, sobretudo entre as classes populares, que enfrentam alta taxa de desemprego, informalidade e desalento frente a ausência de serviços estatais básicos. Os efeitos da sanitários e econômicos da pandemia estiveram entre as prioridades dos manifestantes nas ruas. A Colômbia está entre os países com maior taxa de mortalidade por Covid-19 do mundo.
Diante da violência registrada no país, foi criada uma missão internacional de solidariedade que percorreu cinco regiões (Popayán, Pereira, Cali, Bogotá e Medellín) recolhendo denúncias de abusos policiais. O relatório, quando concluído, será enviado para organizações internacionais como a ONU e a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) que, por sua vez, encontrava resistência do governo para entrar no país.
A escalada de violência policial precipitou, em 6 de junho, uma proposta do presidente Duque para reformar a corporação, como a criação de canais de denúncias e ouvidoria, além de um novo estatuto disciplinar. No dia seguinte, após forte pressão internacional, representantes da CIDH desembarcaram na Colômbia.
A atual polícia da Colômbia foi estruturada nos anos 1960 para combater os movimentos de esquerda, vistos como ameaçadores no contexto da Guerra Fria e da Doutrina de Segurança Nacional. O papel de “maior inimigo” foi ocupado pela guerrilha das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc), contra a qual sucessivos governos lutaram sem sucesso, desde os anos 1980. O envolvimento de militares e outros agentes de segurança em grupos paramilitares de direita foi um dos frutos podres dessa “guerra suja”, marcada por incontáveis violações aos direitos humanos. Outro fruto foi o envolvimento de ambas as partes com as redes de narcotráfico, que forneceram recursos para o financiamento desses grupos.
Na Colômbia, desde o século XIX, a polícia tem como comandante máximo o presidente da República. Durante a Guerra Fria, a Polícia Nacional (PN) chegou a ser incorporada como a quarta força do Comando Geral das Forças Armadas. Nos anos 1990, a PN foi desassociada do alto comando militar, embora ainda subordinada ao Ministério da Defesa. A proposta de reforma da polícia do presidente Duque não mexe nesse ponto.
A proximidade com o poder militar e o ambiente de “guerra contra as Farc” influenciou a mentalidade dos agentes policiais, com uma lógica beligerante oposta à que deve reger políticas de segurança pública, nas quais se reconhece o contraditório como parte legítima do diálogo e garante manifestações democráticas. Mas o que se vê pela estética robocop há muito incorporada por forças de segurança em todo o mundo são policiais que equipados como soldados prontos para a guerra contra um inimigo mortal.
A organização Unidade pela Busca de Pessoas Desaparecidas manifesta preocupação quanto as mortes causadas por agentes do Estado. Nos protestos dos últimos meses, 16 manifestantes foram mortos pela polícia, a maioria com ferimentos em regiões vitais como o tórax e a cabeça. Teme-se descobrir um número de vítimas muito maior que o divulgado, se a mesma postura criminosa de ocultação de cadáveres, utilizada na luta contra as Farc, estiver sendo aplicada contra opositores do governo Duque.
A Polícia Nacional de Duque está se tornando o maior fator de risco para a manutenção de direitos humanos básicos na Colômbia. As denúncias de estupro são muito graves e não podem ser tratadas como “casos isolados”, porque já somam 28 relatos confirmados e existe a suspeita de que o número seja ainda maior.
O inesperado, talvez inédito, uso de violência sexual por forças de segurança confirma que a crescente presença de mulheres jovens em movimentos sociais e de protestos assusta mais do que parece. Adolescentes que participavam das manifestações relataram não poder voltar há mais de 20 dias para suas casas pelo risco de serem perseguidas e violentadas, pois já teriam sido rastreadas e marcadas pela polícia.
O estupro em ambientes de guerra sempre existiu e, a partir de 1997, passou a ser considerado um instrumento de genocídio e um crime de guerra pelo Tribunal Penal Internacional para Ruanda. A violência sexual é uma das formas mais primitivas de promover a humilhação do inimigo e, quando praticado por policiais, é ainda pior, pois indica que os agentes do Estado consideram cidadãs como inimigas e, portanto, merecedoras da mais brutal agressão “em nome da lei e da ordem”.
Afirmar que o estupro foi utilizado para dissuadir a ida das mulheres às manifestações é quase normalizar o ato: jatos de água fria, gás lacrimogênio, estupro… É uma forma de dizer: vocês não podem agir com a cabeça e pensar e falar; vocês são mulheres e só existem como objetos sexuais. E, claro, gera um ciclo de violência no qual a mulher passa a ser a vítima preferencial, independente de qual lado esteja, pois já existem registros de manifestantes “devolvendo na mesma moeda”, e pelo menos uma policial estuprada, segundo a Human Rights Watch.
É inadmissível que o policiamento civil empregue de violência sexual contra manifestantes, seja qual for o gênero e orientação das vítimas, sob risco de explodir o pacto social que cria uma sociedade
Dois meses depois, a estratégia do presidente Duque para manter o controle da situação não tem surtido efeito. A mobilização popular e o clima de animosidade com o Estado devem continuar até as eleições do ano que vem, abrindo o caminho para que os abusos persistam. É urgente cobrar o governo de Bogotá pela investigação e punição rigorosa dos responsáveis por esses crimes, contra manifestantes em geral – e, especialmente, contra as mulheres.
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