FUNDAMENTALISMO CRISTÃO AMEAÇA ESCOLA PÚBLICA

 

Demétrio Magnoli

26 de outubro de 2020

 

Fundamentalismo Cristão

A OEA foi escolhida como palco para a iniciativa da “Internacional Cristã”

O fundamentalismo cristão tornou-se eixo de política externa dos governos dos EUA e do Brasil. Na 50ª Assembleia Geral da OEA (Organização dos Estados Americanos), em 20 e 21 de outubro, o governo boliviano de Jeanine Áñez produziu um de seus últimos atos desastrosos, patrocinando uma proposta que viola o princípio da laicidade na educação pública. Atrás da iniciativa boliviana, estavam os EUA, o Brasil e o Chile.

O texto foi apresentado sob a forma de adendo à resolução sobre direitos humanos. Nela, aparece “o direito ou a liberdade dos pais de que seus filhos recebam educação moral e religiosa de acordo com suas crenças”. É uma senha para a interferência do fundamentalismo das igrejas nos sistemas de ensino público, desde a seleção de professores até definições sobre conteúdos curriculares.

Os representantes do Canadá, da Argentina, do México, do Peru e da Costa Rica deram o sinal de alarme. Os protestos produziram uma limitada suavização da proposta original, pela ressalva de que o interesse das crianças e jovens em relação à educação deve ser respeitado. Mas o fundo da proposta permaneceu inalterado, evidenciando uma das principais linhas de ação daquilo que deve ser batizado como uma “Internacional Cristã”.

 

Trump e a “Internacional Cristã”

No início de junho, a Casa Branca divulgou uma ordem-executiva presidencial destinada a “promover a liberdade religiosa internacional”. O documento classifica as “organizações e comunidades religiosas” como “parceiros vitais” de política externa dos EUA e prevê o financiamento de iniciativas pela “liberdade religiosa internacional”. Trata-se, no fundo, de um manifesto do fundamentalismo cristão.

A retórica da ordem-executiva sobre a liberdade de religião funciona como roupagem oportuna para vestir a articulação de uma “Internacional Cristã” – isto é, uma coalizão entre governos da direita nacionalista e movimentos fundamentalistas cristãos. Meses antes, em 4 de fevereiro, no discurso sobre o Estado da União, Trump celebrou a liberdade religiosa, enquanto o Departamento de Estado anunciava a adesão de 26 países à Aliança Internacional pela Liberdade Religiosa.

O presidente americano descreveu o sentido político da Aliança nos seguintes termos: “Meu governo perfila-se aos cristãos perseguidos e outras minorias ao redor do mundo”. As palavras parecem perfeitas e remetem a um princípio inegociável, que é a liberdade de religião, proclamada no artigo 18º da Declaração Universal dos Direitos Humanos. Contudo, as aparências enganam.

O secretário de Estado dos EUA utiliza a linguagem da liberdade de religião para a ofensiva contra o Estado laico, que é a única garantia de livre exercício das diversas fés religiosas

Contam-se, entre os integrantes da Aliança, a Hungria e a Áustria, que são exibidas como modelos de liberdade religiosa. Nos dois países, porém, essa liberdade é, essencialmente, um privilégio dos cristãos. Na Hungria, a islamofobia é uma peça central do fundamentalismo no discurso oficial do governo de Viktor Orban, que se refere frequentemente a um “problema muçulmano” num país cuja comunidade muçulmana pouco ultrapassa 5 mil pessoas. Já na Áustria, o combate a um indefinido “Islã político” confunde-se com as política xenófobas anti-imigração.

Além da Hungria e da Áustria, estão entre os fundadores da Aliança o Reino Unido, a Ucrânia, o Brasil, a Colômbia, a Gâmbia, a Geórgia e Israel. Há, nessa lista, governos com diferentes orientações políticas e ideológicas. Todos, porém, distinguem-se como firmes aliados de Trump.

Simone Campbell, diretora de uma organização católica em defesa da justiça social, identificou corretamente o espectro do fundamentalismo cristão. Ela lamentou o rumo político da Aliança, que se baseia numa “estreita perspectiva do que é liberdade religiosa”. Ela quer dizer que o governo responsável pelo banimento geral de entrada nos EUA de cidadãos de diversas nações muçulmanas não tem o direito moral de falar em liberdade religiosa – e usa a expressão como senha para a promoção da discriminação contra muçulmanos.

Um funcionário do Departamento de Estado explicou, cinicamente, que a iniciativa sobre a liberdade religiosa no mundo e o banimento de entrada nos EUA são “assuntos diferentes”. De fato, são assuntos inteiramente conectados: a cola que os liga é feita de xenofobia e nativismo.

 

Estado laico e liberdade religiosa

“A igreja deve governar”, exclamou Damares Alves, no final de 2018, pouco antes de assumir o cargo de ministra da Mulher, da Família e Direitos Humanos do Brasil, dirigindo-se aos fiéis sua seita evangélica. O núcleo ideológico do governo Bolsonaro investe, diretamente, contra o princípio constitucional do Estado laico.

Fundamentalismo cristão ameaça escola pública

Damares Alves, ministra de Bolsonaro, conduz a missão de borrar a fronteira entre Estado e religião no Brasil

A fé não precisa de uma igreja para se manifestar. Igrejas, como partidos, são ferramentas de exercício de poder. No Ocidente medieval, a Igreja Católica exercia um poder absoluto sobre as sociedades: o papado legitimava os reis. Um paralelo apropriado é com os totalitarismos do século 20: os partidos de Stalin e Hitler identificavam-se com o Estado. Sob as democracias laicas, contudo, partidos e igrejas ocupam lugares radicalmente diferentes. Os primeiros almejam governar; as segundas só podem almejar a liberdade de pregar uma fé.

O partido é a expressão política de uma parte da sociedade que pretende representar, provisoriamente, a sociedade inteira. A meta é atingida por meio do voto majoritário, veículo da soberania popular, que sagra a verdade do partido como verdade geral provisória. Mas o partido que chega ao governo continua a ser a parte, não o todo – e, por isso, corre o risco de ser substituído na eleição seguinte. Já a igreja (qualquer igreja), define a sua verdade como Verdade eterna – e, por isso, não tem o direito de querer governar.

O contrato da cidadania estabelece a igualdade perante a lei. Isso significa, entre outras coisas, que os cidadãos não se distinguem por suas opções de fé. Ninguém pode ser discriminado – ou favorecido – por sua opção religiosa.

A laicidade estatal é a única garantia da liberdade de religião. Se o Estado não é laico, uma fé singular ganha o estatuto político de religião oficial, o que condena todas as demais a posições subalternas – ou, frequentemente, à perseguição movida pelo poder estatal. As proclamações de defesa da liberdade religiosa que não afirmam, ao mesmo tempo, o princípio da separação entre Estado e igreja devem ser lidas como aventuras políticas no perigoso terreno do fundamentalismo. Isso é o que é a Aliança patrocinada por Trump.

 

A escola, sob a cruz

O “direito” dos pais de que seus filhos “recebam educação moral e religiosa de acordo com suas crenças”, tal como aparece no adendo proposto à resolução da OEA, representa a negação do direito dos estudantes à educação.

A frase abre caminho para o veto ao ensino das Ciências – e a teoria da evolução encontra-se na mira do fundamentalismo cristão. No lugar do evolucionismo, o alegado “direito” dos pais serve como pretexto para igrejas exigirem o ensino do criacionismo.

A frase é uma nítida ameaça aos sistemas públicos de ensino. Sob o seu amplo guarda-chuva, igrejas ganham a oportunidade de vetar o exercício da profissão por educadores que não rezam segundo as suas cartilhas. Nessa mesma linha, igrejas poderiam pressionar pela inclusão nos currículos das escolas públicas de cursos de religião ministrados por pastores ou padres.

A educação pública universal, uma conquista propiciada pelo Estado-Nação, corre o risco de ser atropelada pelo cristianismo fundamentalista. Os grupos cristãos mais extremados defendem a “educação familiar” – ou seja, a substituição da escola pelo ensino doméstico, realizado pelos pais ou por tutores contratados pelas famílias.

O suposto “direito” dos pais colide em cheio com o direito à educação das crianças e jovens. Isso nada tem a ver com a liberdade de religião.

 

 

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