UMA NAÇÃO DIVIDIDA PELA ESCRAVIDÃO

 

20 de julho de 2020

A história nacional dos Estados Unidos fala de uma terra de liberdade, trabalho e oportunidades, aberta a todos. Olhando além do discurso, vemos que “todos” são os brancos, de origem anglo-saxônica e religião protestante – os Wasp. Os demais grupos, também responsáveis pela construção da superpotência americana, continuam sofrendo preconceitos e obstáculos legais enquanto tentam se integrar como cidadãos plenos. A situação política americana de hoje expressa, como no Brasil, as dificuldades e contradições de uma nação erguida sobre uma mentira fundamental: como podiam ao mesmo tempo conviver a liberdade, a luta contra a opressão metropolitana e a escravidão?

Em uma série dedicada à imigração para os EUA, 1948 analisou aspectos dessa relação paradoxal que marca a política do Estado americano até os dias de hoje.

A história dos descendentes de escravos não é igual à dos imigrantes. Escravos e imigrantes carregam consigo condições muito diferenciadas, na ordem legal ou cultural. O imigrante nunca perde o estatuto de homem livre. Já o escravo só existe por meio de brutal coerção cotidiana. No sul dos Estados Unidos após a independência, o emprego do trabalho escravo foi tão generalizado que contribuiu para a própria expansão para o oeste, cristalizando-se a clássica oposição entre um “sulescravista e um “norte” livre e assalariado. Foi preciso uma brutal guerra civil e a devastação de partes do país para acabar de vez com o sistema escravista.

A integração civil da população negra, entretanto, foi bloqueada após a guerra. O racismo foi a ideologia que justificou o imperialismo europeu na Ásia e África e as leis Jim Crow nos Estados Unidos. Os “códigos negros”, o “separados mas iguais”são outros nomes que evocam o racismo organizado na lei. O ordenamento legal – dos municípios e estados até a presidência da República e juízes da Suprema Corte – construiu uma muralha para evitar que os negros exercessem seus direitos como cidadãos de fato. Por mais cem anos, essa parcela populacional essencial à formação da nação, seria virtualmente excluída do contrato político e de boa parte dos espaços públicos, divididos e valorizados de acordo com a cor de seus frequentadores.   

Vieram as lutas pelos direitos civis, os jovens contestadores do Black Power, os atuais militantes do Black Lives Matter. E, ainda assim, todos puderam assistir, em maio de 2020, aos longos minutos durante os quais um policial manteve seu joelho sobre o pescoço de George Floyd, um homem negro e desarmado, até matá-lo. A reação de indignação que tomou conta do país e promete se tornar um tema importante na campanha eleitoral não aconteceu pelo fato do caso ser atípico. Pelo contrário, o que chocou foi a banalidade: durante quase 8 minutos nenhum dos colegas do policial pensou em detê-lo. O racismo é uma ideologia tão entranhada no ethos dos Estados Unidos quanto a crença no Destino Manifesto

1948 lança uma série sobre a história da escravidão e do racismo nos Estados Unidos, em três partes: o tempo da escravidão; a era da segregação racial; a luta contra o racismo.

 

DE TREZE COLÔNIAS A REPÚBLICA FEDERAL  

Marcas da chibatada no escravo Peter

Peter, um dos escravos que fugiu em 1863, em plena guerra civil, para se juntar às tropas da União. Um fotógrafo registrou as marcas deixadas pela escravidão. A imagem correu o país e intensificou a luta abolicionista

O sistema escravista organizado nas colônias do sul  corresponde ao modelo clássico da chamada “escravidão moderna”. Ela estava baseada na tríade monocultura, latifúndio e escravidão – a plantation – e desenvolveu-se no quadro do capitalismo comercial e da colonização da América, entre os séculos XVI e XVIII .

Os primeiros escravos a chegar na colônia da Virgínia desembarcaram em Jamestown em 1619. A falta de colonos livres em quantidade e a necessidade de viabilizar a colonização rapidamente transformaram a mão de obra escrava em solução. Eles produziam o tabaco usado na aquisição de novos escravos na África. Esse lucrativo comércio inicialmente era controlado pela metrópole inglesa. Em pouco tempo, os colonos criaram suas próprias redes de trocas, no que ficou conhecido como “comércio triangular”. Nessa fase do capitalismo, a acumulação de capital diretamente ligada ao trabalho escravo era pequena, ganhando-se mais com o seu comércio do que com o produto de seu trabalho.

Esse é o tempo das primeiras colônias do sul: Maryland, Carolina do Norte, Carolina do Sul, Virgínia e Geórgia.

 

Resistência

Desde o início, os negros se opuseram à escravidão, embora não tenham sido registradas grandes rebeliões nas treze colônias inglesas da América do Norte. De modo geral, a resistência se expressou de forma individual, por meio da fuga e do suicídio. Ainda mais frequentes eram os atos de sabotagem e outras formas de insubordinação. Houve casos de escravas matarem seus senhores, às vezes envenenando-os, às vezes queimando suas casas e depósitos de tabaco. 

A escravidão impunha-se por um sistema físico e psicológico. Além da disciplina corporal imposta com violência, os escravizados eram diuturnamente “educados” sobre a própria “inferioridade” e o dever “conhecer seu lugar”; aprendiam a temer e a admirar o mestre, imolando as próprias necessidades individuais. Para obter tais resultados, contavam a disciplina do trabalho, a ameaça da dissolução familiar, os efeitos calmantes da religião, a divisão entre escravos-de-campo e escravos-domésticos, o poder do castigo por meio de açoites, queimaduras, mutilações e até mesmo a morte.

Mesmo poucas, as rebeliões alimentavam o medo constante entre os plantadores. Apenas um temor era maior: o de que as pessoas livres e pobres se juntassem aos escravos para derrubar a ordem existente. 

Noticia de jornal da rebeliao dos escravos

Em 1831 aconteceu a mais famosa rebelião de escravos da história dos Estados Unidos. A insurreição de Nat Turner, em Southside, Virgínia, começou quando esse pregador negro e seus seguidores se rebelaram e saíram às ruas matando dezenas de brancos. Desde a revolução haitiana (1791-1804), nenhum senhor de escravos podia mais dormir em paz

 

Liberdade, igualdade e escravidão

As treze colônias foram as primeiras da América a conquistarem a independência frente à metrópole, dando início ao desmantelamento do Antigo Sistema Colonial instalado no continente desde a chegada dos europeus.

A obtenção da liberdade exigiu que as colônias se unissem para guerrear contra a Grã-Bretanha, num conflito que só acabou em 1781. Mas não estava decidido que elas permaneceriam unidas para formar um único país. Isso só ocorreu em 1789, quando entrou em vigor a Constituição, elaborada dois anos antes, na Filadélfia, por representantes dos novos estados independentes. A aclamação de George Washington como primeiro presidente da recém-fundada república foi o ato de batismo dos Estados Unidos. 

Desde a hora zero, a sombra divisiva da escravidão pairou sobre a nação. Alguns entre os primeiros legisladores, como Thomas Jefferson, propuseram acabar com a escravidão, tanto por coerência com a ideia da liberdade como um direito natural quanto por necessidade moral. Argumentavam que o ingresso contínuo de escravos alimentava um problema que engoliria a nação, pois o comércio de seres humanos impunha um grau de violência e perversidade que transformava o opressor – eles, os senhores – em ofensor das leis de Deus. A ética protestante cobrava um exercício individual de autocorreção e penitência aos olhos do Criador.

A sugestão foi repudiada com veemência e acabou excluída do texto final. A Constituição que criou os Estados Unidos resolveu o problema ignorando-o: a admissão ou não da escravidão seria decidida por leis estaduais. Nesse sentido, a adoção do federalismo na organização do Estado foi, sobretudo, um compromisso pelo qual a escravidão seria momentaneamente admitida em nome da unidade política. Ao mesmo tempo, o federalismo permitia que a escravidão fosse totalmente recusada (mesmo que alguns comerciantes continuassem no negócio) como ocorreu nos estados do norte. Neles, a defesa da propriedade falou sempre mais alto que a direito à liberdade: as leis de abolição indenizavam os proprietários ou permitiam a preservação dos escravos até a morte. Por isso, até a década de 1840, ainda existiam escravos remanescentes nos estados do norte.

Mapa escravos nos EUA, 1790

A Pensilvânia foi o primeiro estado independente a invocar os ideais da Revolução Americana contra qualquer tipo de “tirania” para abolir a escravidão.  Sua legislação, de 1780, serviu de exemplo para os demais

 

Fim do tráfico internacional

Jefferson foi o segundo presidente dos Estados Unidos e, em seu governo, em 1808, o Congresso votou pela proibição da importação de novos escravos. Para amplos setores da elite Wasp, esse gesto sinalizava um limite àquele modo de vida profundamente anticristão.

A resposta veio como contrabando, pela Flórida, terra da Espanha. Calcula-se que cerca de dois milhões de escravos tenham entrado dessa forma, para depois percorrerem longas caminhadas até as fazendas do Mississípi. Em 1819 a Flórida foi comprada pelo governo americano e uma motivação para incorporá-la era combater o tráfico de escravos. 

Aparentemente, o dilema moral foi resolvido por muitos donos de escravos por meio de uma distinção psicológica entre o tráfico transatlântico e o tráfico interno. É indicativo o eufemismo “instituição peculiar” adotado pelo linguajar sulista para se referir ao que existia em suas terras. Tal distinção “permitiu que os fazendeiros com mais escrúpulos construíssem uma barreira mental que os separava da violência da produção africana de cativose dos horrores das longas travessias pelos pântanos da Flórida, como informa um artigo do historiador Leonardo Marques. Contrários ao tráfico internacional, aqueles pios senhores abasteciam-se nas fazendas de tabaco em declínio, obtendo parte da mão de obra que deu vida às fazendas de algodão no vale do Mississípi. 

 

Enxotados para a “mãe África”

Por volta de 1820, o presidente James Monroe, manifestou-se favoravelmente à criação de uma colônia na África para onde os “homens de cor” pudessem ser enviados. Além do edificante discurso de ajudar aquelas pessoas a retornarem a seus “lares”, a ideia mal escondia a preocupação em impedir que os ex-escravos e seus descendentes pudessem ser parte da nação. 

Debatida no Congresso, a proposta não avançou, pois ocupar terras em outro continente logo foi denunciado como colonialismo, ato que feria profundamente a autoimagem do país nascido da luta anticolonial. O obstáculo foi contornado pela iniciativa privada, organizada na American Colonization Society. Por meio de doações, essa associação comprou terras em Serra Leoa, onde já existia o porto de Freetown, criado pelos ingleses para “repatriar” as pessoas salvas da escravidão pela marinha britânica no Atlântico. Em 1822, a American Colonization fundou a cidade de Monróvia, em homenagem ao presidente, e seu território foi nomeado Libéria.  

Milhares de ex-escravos foram levados para a Libéria, mas a experiência não teve sucesso. O convívio entre os recém-chegados e os locais foi marcado por tensões, incluindo sentimentos de superioridade dos egressos da América.

A ideia de que bastava mandar as pessoas de volta para a África revela o tamanho do desconhecimento sobre a diversidade africana. Em 1846, quando já era evidente a impossibilidade de repatriar milhões de escravos, a companhia formalizou a independência da Libéria, que se tornou uma república.

A elite Wasp não poderia apagar de sua história os sinais da escravidão.

 

A “MARCHA PARA O OESTE” E A “SEGUNDA ESCRAVIDÃO”

No século XIX uma nova ideologia disseminou-se na Europa e se espalhou pelo mundo: o “racismo científico”. Na Idade Moderna, a cor ainda não tinha uma explicação “científica”, no máximo interpretações de textos religiosos. A sociedade liberal adaptou a teoria evolucionista de Charles Darwin e atribuiu as desigualdades a uma força superior: a Natureza, regida pela luta pela vida e pela lei do mais forte. E a cor da pele passou a ser interpretada como prova dos diferentes estágios da evolução humana.

Desenho hierarquia das raças

Uma versão computadorizada da velha concepção de hierarquia racial

O “racismo científico” ajudou a sustentar toda uma cadeia de iniquidades em nome da civilização. Afinal, como explicar, depois dos iluministas afirmarem que todas as pessoas eram iguais em liberdade e dignidade, que pudesse existir escravidão? A resposta foi oferecida pela nova “ciência das raças”. Se, no século XVII, a pele não-branca era um castigo bíblico, no século XIX passaria a indicar uma suposta desigualdade evolutiva entre “raças”.

A atitude etnocêntrica sempre esteve presente na história e muitas vezes a palavra raça emergiu como sinônimo de nação ou povo. É distinto do que ocorreu no século XIX, quando ideias apoiadas pelas Ciências Naturais, supostamente objetivas e racionais, justificaram medidas legais baseadas no tratamento desigual entre seres humanos. Medidas que favoreciam os brancos em detrimento de todas as demais “raças”.

O que a ideologia racista faz é atribuir as desigualdades sociais à Natureza, desvinculando suas raízes dos sistemas políticos e econômicos. 

Um estudo referente à Grã-Bretanha mostra que o discurso de discriminação racial foi ensinado com sucesso à classe operária, inculcando a crença numa superioridade dos trabalhadores brancos em relação aos escravos e negros libertos. Nos EUA é amplamente conhecida a rejeição dos imigrantes, que formavam a base do proletariado, ao convívio com trabalhadores negros, mesmo livres, cuja presença era considerada, por si só, causa de depreciação para os demais trabalhadores.

Justificados pela ideologia racista, os europeus podiam colonizar Ásia, a África e Oceania à vontade impondo seu poder e usando a força sempre que necessário. O imperialismo legitimava-se pela “missão civilizadora do homem branco”, destinada a conduzir as raças menos evoluídas ao “progresso”, uma palavra escrita em letras douradas no século XIX. Nos Estados Unidos, a mesma lógica justificaria subordinar indígenas, mexicanos e, claro, negros. Não havia limites para o homem branco.

 

A escravidão no capitalismo industrial

O século XIX, durante o qual se desenrolaram as lutas abolicionistas, foi, ao mesmo tempo, aquele no qual o maior número de pessoas foram escravizadas na África e enviadas para as plantations do sul dos Estados Unidos, Brasil e Caribe.

O destino de populações e Estados africanos foi selado na virada para o século XIX, quando a demanda por commodities tropicais como o algodão e o café, impulsionada pela revolução industrial, deu um salto. A existência de uma rede já organizada de tráfico de escravos, somada à expansão territorial favorecida pelo surgimento das ferrovias e barcos a vapor, permitiu suprir rapidamente esse mercado em expansão. O sistema escravista podia ser mal falado, mas gerava uma espetacular acumulação do capital. 

O capitalismo industrial mantém relação complexa com o sistema escravista. De um lado, a expansão da economia industrial foi possibilitada pela difusão do trabalho assalariado. De outro, a economia industrial nasceu no interior dos sistemas de trabalho anteriores – inclusive, com grande destaque, o sistema escravista. A escravidão moderna, inscrita nos fluxos de trocas de mercadorias que se mundializavam, alavancou a acumulação de capitais que sustentaram a arrancada industrial. 

Escravos eram um patrimônio, frequentemente maior que os demais bens do proprietário, e serviam como garantia para empréstimos levantados pelos senhores, depois aplicados nos setores modernos do capitalismo. O setor financeiro em expansão beneficiava-se indiretamente do sistema escravista. Uma corrente de historiadores batizou como “segunda escravidão” essa fase de recrudescimento do sistema escravista ocorrido no século XIX. 

Uma diferença em relação à “primeira escravidão” moderna, dos três séculos anteriores, é que nos Estados Unidos e no Brasil setores da elite assumiram o controle sobre o tráfico de escravos. “Os donos de escravos nestes lugares agora mandavam em si próprios e dirigiram o aparato estatal para a proteção de seus interesses e a consolidação de sua autoridade. Eles também aplicaram novos sistemas racionalizados de plantation e as tecnologias das máquinas a vapor para o processamento e transporte das commodities agrícolas para o mercado.” (Beckert & Rockman, 2016).

Pintura plantation moderna

Uma fazenda de escravista algodão no vale do rio Mississípi. Observe as chaminés e vapores: o estabelecimento pertence à esfera da economia industrial

 

Outra mudança decisiva deu-se em relação de tratamento dispensado aos escravos. O sistema tornou-se mais violento e coercitivo para gerar maior produtividade. Nos Estados Unidos particularmente, as mulheres foram duplamente penalizadas, pois cresceu o número de filhos. Essa natalidade elevada foi uma particularidade da sociedade sulista e ia ao encontro do discurso da “escravidão benéfica e civilizatória”. Os senhores evitavam separar as famílias de escravos, a fim de aumentar a natalidade, ainda que estupros fossem comuns. Dessa forma, se explica os quase dois milhões de escravos existentes nos estados do sul, além dos provenientes do tráfico internacional, perfazendo um total de quase quatro milhões de escravos em 1860, às vésperas da eclosão da guerra civil. 

 

O algodão é o rei

A invenção da descaroçadeira mecânica de algodão, por Eli Whitney, em 1793, para separar rapidamente as fibras do algodão das sementes, foi uma resposta ao declínio da economia algodoeira sulista no final do século XVIII, na qual esse processo era feito manualmente. O equipamento era barato, fácil de ser fabricado e se espalhou rapidamente pelas fazendas. O salto de produtividade nessa etapa da produção provocou maior demanda pela matéria-prima e, por extensão, aqueceu o mercado internacional de escravos.

A expansão da economia algodoeira estimulou o avanço para o oeste. As grandes fazendas de algodão se alastraram pelo recém-adquirido território da Louisiana.  Comprada das mãos do próprio Napoleão Bonaparte, em 1803, essa imensa área englobava os largos vales do rio Mississípi. Ali nasceram os estados do chamado “Deep South” como Louisiana, Mississípi, Alabama e Texas, posteriormente ícones do racismo e da segregação legalizada.

Mapa escravidão 1850

A combinação entre o poder comercial britânico e a inesgotável capacidade de aumentar o fornecimento de algodão por meio da expansão territorial e do aumento do número de escravos foi o carro-chefe da economia mundial naquele século. Em 1790, informa uma pesquisa, os Estados Unidos produziram 1,5 milhão de libras de algodão; em 1800, 35 milhões de libras. O número saltou para 331 milhões em 1830 e para espantosos 2.275 milhões de libras em 1860. 

Naquele mesmo ano, o valor dos escravos era “aproximadamente três vezes maior do que o valor total investido nos bancos; era igual a cerca de sete vezes o valor total de toda a moeda em circulação no país, três vezes o valor de todo a população pecuária, doze vezes o valor de toda a safra de algodão dos EUA e quarenta e oito vezes a despesa do governo federal naquele ano”, detalha um historiador.

 

UMA GUERRA CIVIL PARA UNIFICAR O PAÍS

O federalismo foi a solução para acomodar as diferenças entre norte “livre” e sul “escravista”, já sabemos. O que pouco se analisa são as consequências práticas para a administração política dos Estados Unidos no momento em que o país estava se formando.

O federalismo concede ampla liberdade para cada estado legislar de acordo com as características e necessidades locais. Mesmo assim, existe o compromisso maior com a União Federal, decidido livremente por cada estado (a realização do “contrato político” iluminista). A união de forças era necessária para questões comuns como capacidade militar e comércio exterior, e outros temas surgiriam com a marcha para o oeste. A organização prática desses problemas e soluções ocorreria no Congresso Nacional.

Desde o início, preocupados em equilibrar o jogo político e agregar os 13 estados originais, os “pais fundadores” idealizaram um Congresso bicameral. A Câmara de Deputados, eleita proporcionalmente à população de cada estado, e o Senado, eleito à base de dois representantes por estado.  Se existisse apenas a Câmara, os estados livres rapidamente dominariam a política nacional, pois elegeriam muitos mais representantes, uma vez que a população de escravos não era contada igualmente para fins eleitorais, enquanto a imigração crescia, aos milhões, a cada década. O Senado, com o mesmo número de senadores por estado, neutralizava a diferença demográfica; por isso o Senado podia barrar leis aprovadas pela Câmara.

A rápida expansão para o oeste, em uma época na qual o Texas ainda pertencia ao México, provocou pesadas discussões sobre até onde a União permitiria a escravidão. Em 1819, quando a população do Missouri solicitou sua incorporação como futuro estado dos Estados Unidos, o debate no Congresso jogou luz, mais uma vez, sobre o problema sempre evitado.

 

Do equilíbrio à paralisia

A incorporação do Missouri provocou uma árdua disputa sobre a admissão da escravidão nas terras do oeste. Na prática, era uma batalha pelo controle da máquina do Estado, que até aquele momento tinha favorecido os interesses sulistas; afinal, o algodão respondia por mais de 50% das exportações do país.

A solução veio em 1820, com a assinatura do Compromisso do Missouri, que estabeleceu uma fronteira legal interna. O paralelo de 36º30’ seria a linha divisória: as terras ao norte eram vedadas à escravidão, enquanto as terras ao sul poderiam admitir a prática. Assim, enquanto houvesse “oeste” a ser ocupado, aparentemente não haveria problemas e, pelo contrário, as duas economias poderiam crescer juntas. Havia um curioso detalhe, destinado à manutenção do equilíbrio de votos no Senado: os novos estados entrariam aos pares, um livre e escravista: um voto para cada lado.

Compromisso do Missouri

 

A expansão territorial demandava medidas destinadas à integração dos territórios e mercados, como a construção de ferrovias e a definição de regras bancárias comuns, sem as quais os setores industrial e financeiro (concentrados no norte do país) tinham muito de seus interesses prejudicados. Contudo, para os estados sulistas, a quem só interessava produzir mais algodão e defender a escravidão, a batalha no Congresso era para que nada mudasse.

O ponto que gerava máxima tensão política à época em que estourou a guerra dizia respeito às políticas alfandegárias. O norte industrial e protecionista opunha-se ao sul livre-cambista e importador de manufaturados. No fundo, o debate era sobre o destino do país: potência industrial ou potência agrícola? Qual das duas formações sociais prevaleceria?

A União Federal chegou à metade do século XIX no limite dessa ambivalência.

 

Abolicionismo e racismo

Do ponto de vista dos direitos humanos, a peça que moveu a balança a favor da abolição foi a difusão dos valores de liberdade, igualdade e dignidade humana. Mesmo que muitos dos que lutaram pelo fim da escravidão considerassem os negros racialmente inferiores, moral e eticamente a exploração ilimitada de seres humanos não era mais admissível para a sensibilidade média das pessoas – que estavam conquistando o direito ao voto. Abolicionismo e racismo eram coisas distintas e podiam ser defendidas pelas mesmas pessoas.

Cartaz de propaganda anti-trafico

O cartaz ao fundo anuncia grande venda de negros, cavalos e gado. A legenda diz que maridos, esposas e famílias vendidas a diferentes compradores são violentamente separadas e talvez nunca mais e encontrem. Essa propaganda da campanha abolicionista apelava diretamente à sensibilidade moral das classes médias

Como explica em um artigo o historiador Robert Slenes, “muitos homens e mulheres urbanos da classe média do norte, assim como muitos trabalhadores industriais e negros livres tinham suas próprias razões para se engajar em uma luta política para impedir a expansão da instituição da escravidão nos estados livres. Pensa-se particularmente no efeito pernicioso da escravidão sobre os salários, sua tendência a concentrar a propriedade da terra, seu fortalecimento das hierarquias sociais e sua promoção do poder político dos grandes proprietários de escravos, que não eram muito favoráveis ​​à expansão da educação pública e de outras oportunidades de emprego e mobilidade social. (…) Para os trabalhadores brancos, o espectro da abolição provavelmente levantou temores de aumento da concorrência no mercado de trabalho, salários decrescentes e ‘desclassificação’ adicional.”

 

O Partido Republicano e a eleição de Lincoln

O Partido Democrata, criado na década de 1820, era controlado pela aristocracia sulista, que rapidamente aprendeu a se unir para votar em bloco no Congresso, transformando o partido na “voz oficial” dos interesses escravocratas. Apenas em 1854, quando o Compromisso do Missouri deixou de ser aplicado e a briga entre escravistas a abolicionistas ganhou as ruas, os liberais se uniram para criar um partido, o Republicano.

Defensor do liberalismo político e econômico e do trabalho livre (mas, também, do protecionismo no comércio exterior), o Partido Republicano organizou a elite do capitalismo industrial e financeiro. Nos primórdios, chegou a contar com grande apoio dos trabalhadores livres e colonos, que temiam a concorrência do trabalho escravo e não queriam os latifúndios ocupando o lugar das pequenas propriedades.

Na eleição presidencial de 1860, o Partido Democrata cindiu-se em torno da questão abolicionista e concorreu com dois candidatos. Assim, o Partido Republicano elegeu seu primeiro presidente, o advogado Abraham Lincoln. A campanha eleitoral havia sido dominada pelo tema, mas o republicano nunca se comprometeu publicamente com a causa abolicionista.

Os sulistas entenderam o resultado como uma encruzilhada existencial e, antes mesmo da posse de Lincoln, decidiram convocar uma reunião em Montgomery, Alabama. Compareceram representantes da Carolina do Sul, Geórgia, Flórida, Alabama, Mississípi, Louisiana e Texas, para deliberar e declarar a secessão e a criação de um novo país, os Estados Confederados da América. A União, ou seja, o governo federal encabeçado por Lincoln, não aceitou a separação e foi à guerra em nome da unidade nacional. Unionistas e confederados se enfrentariam em luta fratricida.

 

Finalmente, abolição

O país foi à guerra pela unidade política e territorial, não pelos escravos. O próprio Lincoln declarou a um jornalista que, se pudesse salvar a União sem libertar um único escravo, ele o faria.

No fim, o equilíbrio de poder tão longamente construído aparentava dar a ambos os lados do conflito a chance de vitória. Aparência enganosa. Fez diferença ter indústrias e capacidade de autoabastecimento ou depender de importações e sofrer um bloqueio naval. Apesar dos soldados dedicados, os confederados foram derrotados pela superioridade industrial, financeira e demográfica da União. 

Mais de 600 mil homens morreram entre 1861 e 1865. Foi uma devastação humana e material que sinalizava como seriam travadas as guerras da era industrial. A destruição física das propriedades rurais e urbanas em terras confederadas foi brutal.  Embora fixada como imagem cinematográfica, as fazendas e suas grandes casas senhoriais sofreram extensivos incêndios, também para evitar que aquele modo de vida ressurgisse.

Negros livres e libertos se alistaram nas forças da União. Foi o caso do 54º Regimento de Massachusetts, o primeiro batalhão de homens negros da guerra (retratado no filme Tempo de glória, de Edward Zwick).

Em setembro de 1862, Lincoln assinou a ordem executiva conhecida como Proclamação ou Ato de Emancipação, declarando ilegal a escravidão nos estados secessionistas caso eles não se rendessem até janeiro de 1863. O objetivo estratégico era estimular a fuga dos escravos, desorganizando a produção do algodão que financiava a guerra confederada.  

Tropa de soldados negros

Uma das raras tropas de soldados negros a lutar na guerra como conscritos. Os soldados brancos não os queriam a seu lado

A medida teve tremendo efeito simbólico, criando um objetivo moral e legal para a guerra, pois era a primeira vez que o presidente falava aberta e oficialmente contra a escravidão. Com o Ato de Emancipação, a lei que impunha a devolução de escravos fugidos para seus proprietários deixou de valer. Além disso, a Grã-Bretanha e a França deixaram mais evidente seu apoio à União, o que representou um golpe na estratégia sulista, e passou a ser aceito o alistamento militar de negros.

Negros lutaram na guerra, mas nunca ombro a ombro com os brancos. A segregação oficial começou a nascer no conflito, sob a forma dos batalhões negros separados. 

Em janeiro de 1865, quando a vitória já era certa, o Congresso – que havia sido abandonado pelos confederados desde o início das hostilidades  – formulou a 13ª Emenda à Constituição. Os confederados se renderam em 4 de abril de 1865. Dez dias depois, Lincoln foi assassinado a tiros em um teatro na capital, Washington, por um sulista indignado. Em dezembro, o Congresso ratificou a emenda constitucional que aboliu definitivamente a escravidão em todo o país. O ressentimento tomou conta de vencedores e derrotados. A conta seria paga pelos ex-escravos e seus descendentes, para quem a liberdade teria o gosto de uma “fruta estranha”.

 

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