A Lei de Segurança de Hong Kong foi aprovada, quase por unanimidade, pelo Congresso Nacional do Povo, o parlamento fantoche chinês, em 28 de maio. O ato, uma violação flagrante da Lei Básica de Hong Kong, assinala o virtual encerramento da autonomia política da cidade consagrada pela Declaração Conjunta Sino-Britânica (1984) que definiu o retorno da antiga colônia à soberania chinesa, em 1997. Assim, ao seu modo, o regime de Xi Jinping celebrou os 30 anos do massacre da Tiananmen, a Praça da Paz Celestial.
No 29 de maio de 1989, uma segunda-feira, milhares de estudantes acampados na Tiananmen, centro de Pequim, descerraram os panos que cobriam a “Deusa da Democracia”, uma estátua branca de dez metros de altura, feita com espuma e papel-maché sobre estrutura metálica. Uma semana depois, 4 de junho, forças militares e policiais investiram contra a multidão, deixando centenas de mortos e milhares de feridos. O regime chinês estava dizendo que a abertura econômica, em curso havia uma década, não se traduziria em descompressão política.
Manifestantes na Praça da Paz Celestial (Tiananmen), em Pequim, maio de 1989
Os protestos da Tiananmen desenrolaram-se no contexto da etapa final da crise do bloco soviético, que culminaria com a queda do Muro de Berlim, em novembro de 1989. A China, então dirigida por Deng Xiao Ping, separava-se nitidamente do caminho da glasnost, a abertura política na URSS de Mikhail Gorbachev. A pressão pela democracia, que partia dos estudantes mas encontrava amplos ecos nas metrópoles do país, seria contida pela repressão totalitária inclemente, pela promessa de forte crescimento econômico e pela manipulação do discurso nacionalista.
Seria viável, no horizonte de longo prazo, proibir a circulação de ideias, enquanto acelerava-se a circulação de mercadorias e capitais?
A indagação, que segue no ar, adquire contornos mais agudos quando se trata da reincorporação da colônia britânica de Hong Kong. A cidade, uma base de empresas multinacionais e um dinâmico mercado de capitais, funcionava como ponte crucial entre a economia chinesa e a economia mundial. Seu sistema jurídico, organizado em moldes ocidentais, garantia as liberdades públicas e ancorava os negócios em regras sólidas, estáveis.
Qual seria o impacto, para Hong Kong, da implantação de soberania chinesa? E, na direção oposta, qual seria a influência de Hong Kong sobre o sistema político chinês?
Margaret Thatcher e o primeiro-ministro chinês Zhao Ziyang assinam a Declaração Conjunta em 19 de dezembro de 1984
Pelo Tratado de Nanquim, de 1842, o decadente Império da China cedeu Hong Kong aos britânicos. A colônia foi ampliada em 1898, por meio de um segundo tratado, que concedeu aos britânicos uma vasta área circundante, chamada de Novos Territórios.
A concessão venceria em 99 anos, o que provocou negociações sigilosas entre a primeira-ministra britânica Margaret Thatcher e seu contraparte chinês, Zhao Ziyang, sobre o futuro do enclave colonial. O resultado foi a Declaração Conjunta, firmada em 19 de dezembro de 1984, que estabeleceu a devolução do território à China.
A Declaração Conjunta, com força de tratado, definiu os contornos da Lei Básica de Hong Kong, cujo pilar é o princípio de “uma nação, dois sistemas”. De acordo com ele, a antiga colônia ganharia o estatuto de região autônoma e não seria submetida, ao menos durante meio século, ao sistema de governo e ao regime econômico vigentes no restante da China.
A crise deflagrada pelo massacre da Tiananmen não afetou o tratado sino-britânico. A Lei Básica entrou em vigor em 1 de julho de 1997, data da transferência de soberania. Em tese, Hong Kong teria direito a autogoverno até 1947. Isso significa, explicitamente, que conservaria poderes executivos, legislativos e judiciários independentes. A soberania chinesa seria exercitada, exclusivamente, nos domínios da emissão de moeda, da defesa e das relações exteriores.
Uma ilha de democracia em meio ao oceano totalitário? “Devemos nutrir um senso de história, de orgulho e de confiança no futuro”, disse Thatcher na hora da assinatura da Declaração Conjunta.
Lei Básica de Hong Kong
Os otimistas enxergaram no experimento de Hong Kong uma oportunidade para a democratização da China, de baixo para cima, pela gradual concessão de autonomia nas escalas local e regional. A antiga colônia se converteria em modelo para o restante do país: a chave de uma glasnost de meio século.
As esperanças permaneceram acesas até a ascensão de Xi Jinping à Secretaria-Geral do Partido Comunista Chinês, em 2012, e à presidência da China, no ano seguinte. Contudo, a concentração de poder promovida por Xi Jinping representou um novo aperto no parafuso do sistema totalitário, que não pouparia Hong Kong.
Em junho de 2014, um relatório político publicado pelo regime chinês proclamou separou o princípio fundante da autonomia da região em duas partes contraditórias. Segundo o relatório, os interesses da China (“uma nação”) deveriam prevalecer sobre os direitos autônomos de Hong Kong (“dois sistemas”). A Lei Básica começava a se transformar em palavras vazias. O arreganho de dentes foi recebido com protestos de massa dos estudantes de Hong Kong, a chamada “Revolução do Guarda Chuva”.
Hong Kong não foi uma democracia durante o século de soberania britânica, exceto nos cinco anos derradeiros, após a introdução de uma Carta de Direitos pelo último governador colonial, Chris Patten, em 1992. O gesto representou uma reação à brutal supressão dos protestos de Tiananmen – e contrariou os desejos do regime chinês. Mas a China conviveu, incomodada, com os direitos civis dos habitantes da região autônoma até a deflagração da onda repressiva de Xi Jinping.
O cerco às liberdades de Hong Kong fechou-se um pouco mais em fevereiro de 2019, quando o Conselho Legislativo local, mais ou menos controlado pelo regime chinês, tentou passar uma nova lei de extradição. A iniciativa provocou uma avalanche de manifestações de rua inspiradas na “Revolução do Guarda Chuva”. A lei de extradição terminou suspensa, mas a agitação popular em defesa da autonomia prosseguiu. Os protestos foram interrompidos apenas pela emergência sanitária do coronavírus.
A Lei de Segurança é diferente da lei de extradição, sob dois aspectos fundamentais. Em primeiro lugar, ela abre as portas para a prisão sumária de dissidentes políticos e para a criminalização da palavra, tal como ocorre na China. Em segundo, ela foi aprovada pelo Congresso chinês, não pela Assembleia de Hong Kong, o que derruba o pilar central da Lei Básica.
Hong Kong transforma-se em mais uma cidade chinesa, como as outras, no plano político e jurídico. A triste conclusão dos governos ocidentais tem sentido. De certa forma, é como se a tragédia de Tiananmen se repetisse, três décadas depois.
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