MOÇAMBIQUE, À SOMBRA DA JIHAD

 

Elaine Senise Barbosa

13 de abril de 2020

Estará Moçambique correndo o risco de se tornar palco de uma nova jihad no continente africano? O norte do país – região  historicamente muçulmana – sofre as ações de um movimento jihadista que se torna cada vez mais confiante e agressivo.  

Moçambique é governado pelo mesmo partido, a Frente de Libertação de Moçambique (Frelimo), de origem marxista, desde a independência, em 1975. A longa guerra civil travada entre a Frelimo e a guerrilha da Resistência Nacional Moçambicana (Renamo), no quadro da Guerra Fria, entre 1975 e 1992, desorganizou o Estado e empobreceu ainda mais a sociedade.

O filme, tão conhecido, no qual imensas riquezas são levadas para fora enquanto os locais permanecem em extrema pobreza desenrola-se também no país lusófono. Coincidências do destino, na virada do século, uma China ávida por áreas para produção de recursos primários estabelece parceria com outro governo de origem marxista em um mundo onde isso se tornou uma raridade. Descobrem-se riquezas naturais de grande valor, especialmente reservas de gás natural, atraindo investimentos das potências ocidentais e alimentando vastas redes domésticas de corrupção. Agora, homens jovens pobres, insatisfeitos,  estão dando ouvidos a pregadores radicais importados e se alinhando a movimentos jihadistas armados.

Cabo Delgado e ataques

Fonte: The Economist, 4 de abril de 2020

Desde o ano passado, multiplicaram-se os ataques feitos por pequenos grupos a vilarejos no norte do país, mais precisamente na província setentrional de Cabo Delgado, foco dos investimentos internacionais na exploração de gás natural. As comunidades atingidas são postas em fuga, enquanto suas vilas queimam.

As células de militantes jihadistas atuam de forma muito independente para aumentar sua segurança, segundo explicam os estudiosos de terrorismo. Ainda não estão claros os objetivos e a estrutura desse movimento surgido em Moçambique. Seu nome é Ansar Al-Sunna, mas frequentemente as pessoas referem-se a ele como Al-Shabaab, pois há certa semelhança entre seu modus operandi e o do grupo jihadista ligado à Al-Qaeda que surgiu na Somália. Contudo, inexiste comprovação dessa aparente ligação externa.    

 

O banquete e as migalhas

Desde que a nova ameaça política surgiu, as reações do governo moçambicano têm sido marcadas pelo mesmo tipo de ações pouco eficazes aplicadas na Somália, contra o Al-Shabaab, e na Nigéria, contra o Boko Haram.  Lançam-se ondas de repressão indiscriminada sobre as populações do norte, tratando todos como suspeitos e mantendo centenas de pessoas encarceradas sem acusação formal. E, como boa parte das forças policiais são compostas por ateus ou cristãos, o velho preconceito contra os muçulmanos agrava ainda mais as injustiças e alimenta ressentimentos que agora estão sendo explorados politicamente.

Imagem de satélite do ciclone Kenneth sobre o norte de Moçambique, em 25 de abril de 2019

A intensificação das ações armadas jihadistas e da repressão governamental seguiram-se à devastação provocada pela passagem do ciclone Kenneth, em março de 2019, exatamente sobre a região de Cabo Delgado. A crise humanitária decorrente do ciclone agravou as condições de pobreza e favoreceu o maior esgarçamento do tecido social naquela que já era uma das regiões mais pobres do país, com os piores índices de analfabetismo e desnutrição infantil.

Não é difícil compreender, portanto, a atitude dos mais jovens, contestando as autoridades tradicionais – inclusive as religiosas. Um dos primeiros sinais emitidos por esses jovens rebeldes foi comparecer às mesquitas usando sapatos, para dizer que os líderes mais velhos corromperam o Islã e suas práticas.

Mas a situação é mais complexa, pois não se trata apenas de uma “guerra religiosa”.

Por volta de 2010 foi descoberta uma das maiores áreas de gás natural do continente, na bacia do rio Rovuma. São reservas offshore, localizadas na plataforma continental. Isso significa que, antes de começar a extração do gás, obras gigantescas de infra-estrutura deverão ser executadas. Os valores potenciais calculados para o negócio são da ordem de US$ 60 bilhões. A americana ExxonMobil e a francesa Total já estão investindo. Estima-se o início da operação comercial para 2022, mas o Estado moçambicano não deverá auferir receita efetiva antes de 2028.

Enquanto todos falam do megaprojeto, da possibilidade de transformar o país em uma “Qatar africana”, nenhum benefício real chegou às populações locais, nem como ofertas significativas de emprego. A pobreza perene e a falta de perspectiva para o futuro, aliadas à corrupção das autoridades, alimentam discursos radicais, especialmente para os mais de cem mil deslocados nos dois últimos anos em decorrência dos ataques jihadistas. 

 

O contrabando financia a jihad

Além das reservas de gás, foram descobertas no país, há pouco mais de uma década, minas de rubi de altíssima qualidade, que atualmente abastecem boa parte do mercado mundial. E há também valiosos comércios de marfim e madeiras, em geral na ilegalidade. Difícil dizer se é bênção ou maldição, mas todas essas riquezas se concentram na província de Cabo Delgado. O quadro se completa com o tráfico de heroína, que costuma usar essa área pouco controlada pelo governo para distribuir a droga destinada à África do Sul e à Europa. 

Ali, há anos, barões do crime organizado estão constituindo verdadeiras milícias para defender seus negócios. Apoiar, financiar e empregar jovens sem perspectivas ou vinculados a irmandades muçulmanas radicalizadas tem servido aos negócios clandestinos em todos os sentidos, começando por impedir que as autoridades estatais assumam controle mais efetivo sobre a região.

Isso não significa que os chefes do crime sejam líderes islâmicos, mas que existe uma relação de mutualidade entre duas forças que têm em comum o mesmo inimigo: o governo da Frelimo e sua intenção de estender o controle estatal efetivo para essa região periférica, cada vez mais valiosa. Calcula-se que apenas o comércio irregular de madeira movimente US$ 3 milhões por ano, enquanto o de rubi chegaria a US$ 30 milhões, valor que parece superestimado para alguns analistas. O fato é que esse dinheiro financia os grupos armados, que transitaram de machetes para rifles de repetição automática; as viagens de recrutas para estudos no exterior, em madrassas radicalizadas; as visitas de clérigos fundamentalistas estrangeiros; as campanhas para novos recrutamentos.

 

Um mundo apartado

Mesquita de Inhambane

A pequena mesquita da cidade de Inhambane, no litoral meridional de Moçambique, estabelecida em 1845

De onde vieram os muçulmanos de Moçambique?

Eles estão na região há séculos. Adeptos do Islã estavam no que hoje é Moçambique quando a expedição do português Vasco da Gama passou por ali, a caminho da Índia, em 1498. Boa parte da costa oriental da África integra a “costa suaíle”, a extensa área onde se fala suaíle, uma língua comum resultante da expansão árabe-muçulmana na bacia do oceano Índico, nos séculos da Idade Média.

No norte de Moçambique difundiu-se o Islã sufi, vertente mística, avessa ao jihadismo, cuja expansão foi contida pela colonização portuguesa, que discriminou negativamente os adeptos dessa fé.

Depois, no quadro da Guerra Fria, vieram a longa Guerra de Independência (1964-1974) e a guerra civil entre Frelimo e Renamo. A Renamo, com grande implantação territorial no norte, soube manipular a repressão às mesquitas e irmandades religiosas muçulmanas para vocalizar a insatisfação dessa parcela da população contra a guerrilha marxista-leninista e seu Estado ateu.

Os muçulmanos formam quase 20% da população moçambicana, mas a maioria dos habitantes de Cabo Delgado. Quando a guerra civil terminou e começou a reconstrução econômica, a Frelimo teve que reconhecer a presença muçulmana como parte do jogo político e parar de tentar obrigá-los a abandonar sua fé. Aos poucos, as irmandades muçulmanas foram se organizando e reivindicando participação na composição governamental. Hoje, são exatamente essas entidades as acusadas pelos jihadistas de haverem se corrompido – e corrompido o Islã. Os fundamentalistas pedem a aplicação da sharia (a lei corânica) e o fechamento das escolas laicas.

As duas correntes estão separadas por uma geração e pelo fenômeno da ruptura do isolamento geográfico. Nos anos 1990, jovens muçulmanos saíram de Moçambique para buscar melhor formação religiosa, ligando-se a irmandades e líderes radicalizados na Tanzânia, no Sudão, no Egito, no Afeganistão e no Paquistão. Desse modo, a antes isolada região mais meridional da esfera muçulmana na costa oriental africana conectou-se com as redes internacionais do jihadismo pós-moderno. 

Por esses caminhos, o jihadismo começou a ganhar a atenção entre os jovens submetidos à pobreza e ao abandono. Como em tantos outros lugares, o vínculo social oferecido por esses grupos preenche o vazio e dá sentido às vidas desses homens. Daí, num segundo passo, muitos deles convertem-se em soldados rasos dos barões do contrabando e são obrigados a agir por razões com as quais nem sempre concordam.

A articulação dos jihadistas moçambicanos com as redes internacionais do terror abre uma nova frente de violência na África. A repressão indiscriminada do governo da Frelimo só contribui para as campanhas de recrutamento da jihad

No atual estágio, sabe-se que o Al-Shabaab estabeleceu comunicação com o Estado Islâmico, agora praticamente um fantasma tanto na Síria quanto no Iraque. Contudo, o declínio do Estado Islâmico não se traduz por enfraquecimento do jihadismo em outros lugares. As células implantada em Moçambique, no modelo da Al-Qaeda, operam de modo autônomo, nutrindo-se de proclamações em redes sociais e organizando ações em nível local.

No último 23 de março, a insurgência galgou um degrau, atacando e chegando a ocupar a cidade de Mocimboa da Praia, de pouco mais de 30 mil habitantes, um porto bem localizado em relação às futuras operações de exploração do gás natural. As forças jihadistas bateram em retirada horas depois. Certamente, não poderiam sustentar uma operação de ocupação, pois carecem de tropas e material, mas mostraram do que são capazes.

“Parece que essa guerra está acontecendo por causa do gás; se é assim, eu preferiria não termos gás, para viver em segurança”, lamentou Djapo Mario, um comerciante de Mocimboa da Praia, à reportagem da Al Jazeera. É difícil não concluir que a disputa pelas novas riquezas funcionará como combustível para maior violência, de turbante ou de farda. E não imaginar o quanto o comércio ilegal pode lucrar de uma permanente “guerra civil de baixa intensidade”.

 

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