“Esse é o mais agressivo e abrangente esforço para confrontar um vírus estrangeiro na história moderna”, proclamou Donald Trump, em pronunciamento pela TV, no Salão Oval da Casa Branca, no 11 de março. Os EUA estão semanas atrasados na tarefa vital de testar suspeitos de infecção, passo indispensável para cartografar a difusão do novo coronavírus e adotar as medidas sanitárias adequadas. Mas seu presidente ocupa a linha de frente na manipulação nacionalista da pandemia. A proibição de viagens entre EUA e Europa não segue um roteiro traçado por estratégias epidemiológicas, mas aperta a tecla da xenofobia para ocultar a negligência do governo americano.
A doutora Ai Fen, diretora de emergências do Hospital Central de Wuhan, que sofreu repreensão oficial por ter alertado, em 30 de dezembro de 2019, para o surgimento da nova enfermidade
A crise global do Covid-19 evidenciou a estreita conexão entre as políticas da negligência e do pânico. Inicialmente, a China camuflou as informações sobre a doença e calou os médicos que soavam o alarme. Naquelas semanas, milhões saíram da província de Hubei para o feriado do Ano Novo chinês. Depois, o regime impôs, por meios militares e policiais, a inédita quarentena forçada de dezenas de milhões de cidadãos. Disposta a tudo para entrar, finalmente, na China, a Organização Mundial de Saúde (OMS) emudeceu sobre o ocultamento mas celebrou o arbitrário isolamento da província de Hubei.
A história da China se repetiu no Irã e, na Itália, atingiu em cheio os direitos civis consagrados nas democracias ocidentais. O Irã minimizou a gravidade da situação e mentiu sobre a extensão das infecções – para, em seguida, ativar o modo pânico, prometendo reprimir com “uso da força” os esperados deslocamentos internos do Nowruz (o Ano Novo persa, 20 de março).
As estatísticas atualizadas em 15 de março registravam quase 13 mil casos de infecções no Irã, atrás da China (80.849) e da Itália (24.747), mas bem à frente da Coreia do Sul (8.162) e da Espanha (7.798). De fato, ninguém tem ideia do cenário epidemiológico iraniano, pois desconfia-se que o regime continue a mentir. As parcas notícias que emanam do país sugerem um quadro grave e evidenciam a ausência de políticas eficazes de contenção.
Imagem de satélite de meados de março de 2020 revela o que parecem ser covas coletivas no cemitério Beheshte Masoumeh, em Qom (Irã), para vítimas do coronavírus. Ao lado, provável pilha de cal, que tem sido usado nesses enterros
Já a Itália quase nada fez para interromper a difusão do vírus na Lombardia, até decidir imitar as medidas autoritárias adotadas na China. Diante do início das infecções, o líder da direita nacionalista, Matteo Salvini, cavalgou o vírus para exigir medidas drásticas anti-imigração. O governo de Giuseppe Conte refutou seu discurso xenófobo, mas exibiu complacência face ao silencioso avanço da epidemia. Quando a batalha havia sido perdida, decretou a quarentena geral do país, substituindo o despreparado sistema de saúde pelas forças policiais.
Ditaduras confrontam emergências de saúde com leis de exceção e forças de repressão. Democracias apostam na informação, na persuasão da opinião pública, na responsabilidade e na solidariedade cívicas. Conte mencionou Winston Churchill (a “hora mais sombria”) para cobrir a incompetência oficial e acondicionou suas medidas arbitrárias no envelope da “coragem”. De fato, ao ameaçar os cidadãos com a prisão, o que fez foi importar para uma democracia violações intoleráveis de direitos e liberdades.
Salvini pretendia identificar o vírus ao imigrante árabe ou africano. Numa triste ironia, a Áustria passou a identificar o vírus aos italianos, fechando a fronteira entre os dois países.
A capa do jornal francês Courrier picard de 26 de janeiro lança o estigma sobre os chineses: “Alerta amarelo” e “coronavírus chinês”
O “vírus estrangeiro” não nasceu na boca de Trump. No final de janeiro, o jornal regional francês Courrier picard escreveu, na manchete de capa, “Alerta amarelo”, referindo-se ao “coronavírus chinês”. O tema do “perigo amarelo” tem longa história. Foi utilizado principalmente nos EUA, durante o entre-guerras, quando o Japão imperial concorria com os americanos pelo controle geopolítico do Oceano Pacífico, para estigmatizar os japoneses. Seu retorno numa publicação europeia, na forma de preconceito contra os chineses, revela o grau de envenenamento xenófobo das democracias ocidentais.
A Coreia do Sul, primeiro grande foco da epidemia fora da China, está vencendo a doença sem aplicar as receitas do arbítrio tão festejadas pela OMS. Lá, não foram aplicadas quarentenas coletivas ou restrições genéricas e compulsórias de deslocamentos. O país recorreu à educação sanitária da população e a uma mobilização sem precedentes do sistema de saúde. A partir do uso intensivo de tecnologias da informação e de uma campanha admirável de testes laboratoriais para identificar clusters de infecção, a epidemia parece estar sendo contida.
Os “amarelos” sul-coreanos são a solução, não o problema. No país, a taxa de letalidade do Covid-19 gira em torno de 0,9%, contra 3,7% na Espanha, 3,9% na China, no mínimo 5,2% no Irã e 7,3% na Itália, um número horrendo ligado à elevada proporção de idosos mas, principalmente, ao fracasso da reação oficial.
“Vírus estrangeiro”? O novo coronavírus é, certamente, “estrangeiro” à humanidade, pois chegou a nós por um salto entre espécies. Mas, no mundo globalizado, ele não tem pátria. A frase perversa de Trump cumpre diversas funções políticas.
A primeira: esconder a incúria do seu governo, que desmantelou uma unidade da Casa Branca criada por Barack Obama e dedicada ao planejamento diante de pandemias. Os EUA só agora começam a testar intensivamente – e, nessa tarefa, enfrenta o obstáculo representado pela limitada cobertura populacional de seu sistema de seguros privados.
A segunda: justificar o fracasso estatal apelando ao espectro do “inimigo externo”. Trump coloca a China na sua alça de mira simplesmente porque o vírus realizou o salto entre espécies numa cidade chinesa, mas não critica a quarentena forçada imposta aos habitantes de Hubei. No fundo, inveja o poder absoluto de Xi Jinping.
A terceira: normalizar o recurso ao fechamento da fronteira. No início da crise, Trump vetou a entrada de qualquer um que tenha passado recentemente por território chinês. Agora, proibiu unilateralmente as viagens entre Europa e EUA, uma iniciativa sem nenhuma base científica.
Ruas vazias em torno da Via Corsico, em Milão, 8 de março de 2020, numa Itália submetida a algo parecido com a lei marcial
A nova proibição de viagens ignora os fatos conhecidos. O vírus circula entre os americanos – e em escala ignorada devido ao reduzido número de testes. Na Itália, foco principal da epidemia na Europa, os deslocamentos internos e externos tornaram-se virtualmente impossíveis. No restante do continente europeu, o cenário epidêmico é mais ou menos similar ao americano.
De fato, a única diferença importante é que o vírus alastrou-se nos EUA um pouco mais tarde. Contudo, o avanço das infecções registrado nos EUA segue a mesma curva de tendência verificada na Europa.
O discurso de 11 de março foi escrito por Stephen Miller, o arquiteto do decreto que baniu a entrada nos EUA de cidadãos de sete países muçulmanos, em 2017, e da política de separação de famílias imigrantes na fronteira com o México, em 2018. Trump aliou-se ao “vírus estrangeiro” para promover a xenofobia. O precedente do fechamento da fronteira à Europa destina-se a demolir resistências a outras iniciativas xenófobas direcionadas contra latino-americanos, muçulmanos ou africanos.
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