A Turquia abriga, hoje, mais de 63% dos refugiados do mundo. Os sírios, expulsos pela guerra que já dura quase uma década, compõe a extensiva maioria desses abrigados: são quase 4 milhões de pessoas. Na última semana, crianças morreram de frio em Idlib, na Síria. Nessa mesma semana, crianças foram gravemente afetadas por bombas de gás lacrimogênio disparadas por policiais de fronteira da Grécia e da Bulgária, com apoio da União Europeia (UE).
A batalha por Idlib ameaça deixar pelo caminho uma crise de refugiados como a de 2015, e é essa possibilidade que se tornou a rainha do tabuleiro da guerra. Manobrando a peça, o presidente turco Recep Erdogan tenta obter algum apoio ocidental para que o desfecho da guerra na Síria não se transforme em um desastre geopolítico para seu governo. Ao abrir as fronteiras para a saída de cerca de 13 mil migrantes rumo aos países europeus vizinhos, como fez na semana passada, Erdogan assombra a UE com o fantasma da crise migratória de 2015.
Enquanto isso, o líder russo Vladimir Putin continua assistindo de camarote ao jogo político-diplomático do qual ele sairá como o único grande vencedor.
O compromisso do governo turco de manter o apoio aos fundamentalistas opositores de Bashar Assad em Idlib, o último bastião controlado pelos rebeldes, resultou, desde fevereiro passado, em dezenas de vítimas entre os soldados turcos atingidos por ataques aéreos comandados pela Rússia; em uma reunião de emergência em Moscou entre Erdogan e Putin, na madrugada de 5 de março, para acertar um cessar-fogo; e um novo ataque das forças sírias horas depois do encontro em Moscou, vitimando mais dois soldados turcos, e num contra-ataque turco.
A Erdogan já não restam muitas opções. Pior, o resultado na Síria pode decidir o futuro do seu projeto autoritário. Durante anos, o presidente turco contou com a conivência dos líderes ocidentais e mesmo da União Europeia, em razão de ter aceitado receber os refugiados que tentavam desesperadamente atravessar o Mediterrâneo para atingir a Europa. Além disso, durante o governo de Barack Obama, os Estados Unidos, aliado da OTAN, fingiram não notar que a Turquia fornecia ajuda militar a fundamentalistas e jihadistas sírios em guerra com a ditadura síria de Bashar al Assad.
A única coisa duradoura desse encontro será a foto
Mas Erdogan se deixou enganar pela crença na própria esperteza e, achando que poderia obter ganhos reais com a guerra, abriu a porta para a Rússia entrar. Logo quem!
Os impérios russo e turco-otomano se estranham nessa região há pelos menos dois séculos e, bem ali, naquela divisa com a Síria, os armênios sofreram o genocídio de 1915. Putin ofereceu armamentos para o governo turco e aceitou um acordo destinado a afastar as forças curdas das fronteiras turcas. Erdogan acreditou que, no fim, obteria um acordo mais amplo com Moscou, de partilha de esferas de influência na Síria.
Isso não ocorreu, pois a Rússia mantém seu compromisso de apoiar Assad na reconquista do conjunto do território sírio. E, de quebra, os Estados Unidos, cada vez mais inclinados ao isolacionismo, distanciaram-se tanto do conflito sírio quanto da Turquia.
Kay Bailey Hutchison, embaixadora dos EUA na OTAN, aproveitou os choques entre forças sírias e turcas para mandar um recado à Turquia. Erdogan, explicou, deve aprender “quem é seu parceiro de confiança e quem não é”. A expectativa em Washington é que Ancara abandone a compra do sistema de defesa antiaérea de origem russa.
Agora, a peça que restou no tabuleiro do líder turco é chantagear a UE com a liberação da passagem dos refugiados em direção à Grécia, via mar Egeu, e à Bulgária, via Cáucaso. O que Erdogan quer é algum tipo de apoio diplomático que pressione o governo sírio (e seu aliado russo) a uma negociação, evitando a derrota no campo de batalha. Ele teme abrir o flanco para críticas e contestações ao seu poder na própria Turquia. Nesse momento, é a sua sobrevivência política que está em jogo. Lembremos que partiu do Exército a última tentativa de golpe em 2016.
Desde o final do ano passado a imprensa tem mostrado o fechamento do cerco sobre Idlib e como as operações militares visam deliberadamente a alvos civis, como escolas e hospitais. O resultado foi o deslocamento de quase um milhão de civis, provocando uma das piores crises humanitárias desde o início da guerra civil. A novidade desse momento foi a decisão turca de fechar a sua fronteira e não receber novos refugiados. Hoje, cerca de 170 mil pessoas estão acampadas na área em condições desesperadoras, em meio a quedas bruscas de temperatura e quase mais nada para queimar.
A decisão de liberar a passagem dos refugiados veio logo depois do ataque aéreo sírio que matou 33 soldados turcos. Aproximadamente 13 mil pessoas seguiram rumo à fronteira, apenas para serem recebidas por tropas de choque da polícia antimotim. As forças gregas lançaram bombas de gás lacrimogênio e canhões de água, e investiram com suas lanchas contra botes lotados de pessoas desesperadas. Do lado oposto, o ministro do Interior turco, Süleyman Soylu, enviou mil policiais extras à fronteira grega para impedir Atenas de empurrar as pessoas de volta à Turquia, deixando-as reféns em meio ao fogo cruzado de armas e atos diplomáticos.
As cenas de brutalidade contra refugiados da semana passada, protagonizadas por agentes de segurança de países da UE, seriam impensáveis décadas atrás. Uma reportagem da revista alemã Der Spiegel informa que os guardas de fronteira gregos abriram fogo contra a multidão de refugiados, causando a morte de alguns deles. São pessoas que tentavam escapar do inferno da guerra em seu próprio país.
Um deles, Mohammed al-Arab, tinha 22 anos, ou seja, desde os 13 anos sua vida resumia-se a sobreviver em meio ao caos. Ele escapou da morte em seu país, mas não no lugar onde, acreditava, estaria finalmente em segurança… Previsivelmente, o governo grego afirma que seus policiais não atingiram em ninguém.
Como a reportagem aponta, a morte dessas pessoas é um marco e expõe as dificuldades da própria Europa em lidar com a condição de ser lugar de refúgio, e não do foco do conflito. No 5 de março, diante da pressão na fronteira, o governo grego anunciou a suspensão das concessões de asilo por um mês. E disse estar amparado pelas leis da UE.
As leis humanitárias estão sendo postas à prova e a atuação da UE tem sido decepcionante, para dizer o mínimo. Representantes de entidades humanitárias já não economizam palavras – e falam em desrespeito à Convenção de Genebra.
Tiros de dissuasão da guarda costeira grega atingem a água, muito perto de um bote de refugiados provenientes da Turquia
A maioria dos sírios que alcançaram o Egeu tenta chegar às ilhas de Lesbos, Chios e Samos, próximas ao litoral turco. Mas a história fica mais horripilante quando se sabe que, em Lesbos, moradores comuns e radicais da extrema-direita se uniram para vigiar as praias e evitar o desembarque de refugiados, além de haverem incendiado uma hospedaria que alojava os recém-chegados.
Em meio ao caos, a UE mantém silêncio sobre os bombardeios aéreos sírios e russos em Idlib. Os líderes europeus concentram-se, de fato, numa estranha prioridade: evitar o ingresso dos refugiados, com “tiro, porrada e bomba”. O ministro turco do Interior disse que a Grécia e a Frontex (Agencia de Proteção de Fronteiras da UE) empurraram de volta para a fronteira turca quase 5 mil migrantes desde 1º de março, incluindo 164 feridos. Ursula von der Leyen, presidente da Comissão Europeia, festejou as ações gregas e qualificou a Grécia como o “escudo da União Europeia”.
A crise não terminará tão cedo. O acordo entre Erdogan e a UE que estancou o fluxo de refugiados iniciado em 2015 envolveu um compromisso de ajuda financeira de 6 bilhões de euros à Turquia, no horizonte de 2025. Agora, a Comissão Europeia adicionou ao pacote a promessa de mais 700 milhões de euros. Erdogan, porém, quer mais que dinheiro. Ele almejava apoio militar da OTAN e amparo diplomático da UE.
Na Turquia, assolada pela estagnação econômica, a presença dos refugiados começa a ser tratada de modo mais hostil. Agressões físicas contra refugiados sírios têm sido relatadas. Depois das mortes dos soldados turcos, na semana passada, dois jovens foram linchados pela multidão, enquanto uma senhora perguntava a um terceiro: porque os nossos jovens estão morrendo lá e vocês estão aqui?
O cerco vai se fechando.
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