O minúsculo Theatre Doc, em seu atual endereço , passou a ser assediado pelas autoridades por abordar temas que desagradam ao governo Putin
Esqueçam Trump. Putin é o modelo.
Dia 28 de novembro último, a polícia de Moscou fez mais uma investida contra o Theatre Doc, um marco na atividade intelectual e crítica independente na cena russa, onde a mão gelada de Putin silencia seus desafetos. Dessa vez, a visita das autoridades foi justificada por “evidências” de que ali se promove terrorismo, drogas e “propaganda gay”, que por acaso são os temas de algumas das peças em cartaz num teatro marcado pela crítica social.
O diretor do Theatre Doc, Alexander Rodionov foi levado pela polícia para depoimento; seu advogado contou que eles queriam saber sobre os roteiros e conteúdos das produções. A causa aparente para a ação policial foi a denúncia de um parlamentar russo. A história começa a ficar assustadora quando o responsável oficial diz que agiu em nome da “opinião pública que se queixa”, para na prática censurar e intimidar aquele grupo e seu trabalho.
A história do Doc começou em julho de 1999, quando um intercâmbio de uma delegação do Royal Court Theatre de Londres, em Moscou, apresentou aos jovens dramaturgos e diretores russos a técnica do teatro literal. A proposta é uma técnica de escrita de roteiro baseada em entrevistas com pessoas reais, que pertencem a um grupo social específico ou que compartilham determinadas circunstâncias sociais, especialmente os marginalizados.
Em 2002, o casal de dramaturgos Elena Gremina e Mikhail Ugarov decidiu bancar a ideia, obra de um coletivo de artistas, mas essencialmente financiada pelo dinheiro que Elena ganhava escrevendo séries para a TV. Estiveram por anos em um pequeno espaço no qual cabiam 50 ou 60 pessoas. Mas, ao entrar na mira das autoridades, passaram a enfrentar problemas imobiliários, com direito a visitas de zelosos fiscais, e o teatro teve que mudar de endereço mais de uma vez.
Mikhail Ugarov
Elena Gremina
O Doc, como é chamado, sempre foi um teatro de vanguarda no seu sentido mais preciso, de buscar inovar no conteúdo e na linguagem, o que sempre lhe custou críticas por parte da tradicional academia russa, sendo um espaço de experimentação, mas com direção. Gremina e Ugarov foram o esteio do Doc, dando rumo ao projeto, escrevendo roteiros e montando as peças. Por uma dessas coincidências trágicas da história, os dois faleceram entre março e maio de 2018, de causas naturais.
Depois das mortes dos fundadores, o Theatre Doc tornou-se um coletivo independente de atores, dramaturgos e diretores. O momento de transição o torna mais vulnerável à investida do Estado russo contra um espaço de crítica e reflexão que, há exatos 20 anos, queria trazer para a sociedade russa recém saída do comunismo. Contudo, os temas sociais antes vetados pelo partido único são agora censurados pelo regime autoritário.
O teatro para pensar traz, em apresentações sempre repletas, histórias de imigrantes, sem-tetos, presidiárias com filhos pequenos, questões LGBT e até uma sátira que fundia Putin e Berlusconi num só personagem. Claro: já há algum tempo o Doc está na mira do Estado, em um país cada vez menos tolerante com dissensos, onde Putin sabe que controla a máquina sem contrapesos.
BerlusPutin é o personagem híbrido, corpo de Putin e cabeça de Berlusconi, usado pelo Doc para falar dos arroubos populistas do líder russo, que admirava o premiê italiano
O Doc não é caso isolado. Em 2017, o teatro Bolshoi preparava-se para estrear um espetáculo totalmente inédito, algo que o prestigiado balé não fazia havia décadas. A grande novidade luzia na imprensa internacional especializada e atraía a atenção do público. De repente, poucas semanas antes da aguardada estreia, o diretor teatral foi preso sob acusação de desvio de verbas e o espetáculo foi suspenso sob a estranha alegação de que não estava adequadamente ensaiado. O problema não estava num suposto escândalo de corrupção mas no tema do balé: a vida do genial bailarino russo Rudolf Nureyev. O governo Putin simplesmente não queria ver, sob as luzes dos holofotes, a história de um dissidente que fugira da URSS – e, que, “pior”, era gay.
As autoridades russas usam, frequentemente o argumento de “reclamações do público” para justificar investidas contra eventos de arte e cultura. São produções teatrais, shows de música e humor, filmes e exibições consideradas inadequadas para os “valores tradicionais e sentimentos patrióticos”. Ao mesmo tempo, as mesmas autoridades convivem com ações violentas de grupos ultranacionalistas e religiosos que, atuando como censores efetivos, vandalizam exibições de arte e peças de teatro.
Os grupos extremistas cumprem uma função. Seus atos de vandalismo ajudam a alimentar a imagética das redes sociais, no quesito intolerância e truculência, fornecendo aos políticos as imagens necessárias para “comprovar” a rejeição de uma “opinião pública” alinhada ao regime. Na sua política autoritária, contrária aos direitos humanos, o putinismo simula operar como representante dos valores e interesses da maioria.
Putin não aprecia críticas, como sabem diversos opositores presos. Em novembro, entraram em vigor novas leis destinadas a ampliar o poder estatal de controle das redes sociais. É a chamada “internet soberana”, que obrigou os provedores em território russo a instalarem bloqueadores de sinais a serem acionados por decisão governamental. “Agora o governo pode censurar diretamente o conteúdo ou até transformar a internet da Rússia em um sistema fechado sem informar ao público o que está fazendo ou por quê”, explicou Rachel Denber, vice-diretora de direitos humanos na Europa e Ásia Central da Human Rights Watch.
Protesto pela liberdade da internet, em Moscou, em março de 2019
O cerco se fecha. Em 25 de novembro, a Duma (parlamento russo) aprovou uma lei que estende a figura jurídica de “agente estrangeiro” para empresas privadas. Os alvos são jornalistas e blogueiros que atuam como correspondentes. Devido à nova lei, explodiram os custos tributários e de licenciamentos dessas empresas, o que impede muitas delas de operar. É, obviamente, uma forma de censura. Uma ferramenta para cercear a liberdade de expressão e silenciar a oposição.
O “estrangeiro” é um velho inimigo da Rússia autocrática, mobilizado no século XIX pelos czares e no século XX pelo regime totalitário comunista. Putin não é original.
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