Em março de 2019, Nursultan Nazarbayev, presidente do Cazaquistão, anunciou sua retirada do poder. Nos últimos 30 anos foi o Elbasy, “líder da nação”, do país de quase 20 milhões de habitantes, o maior do mundo sem saída para o mar. Em seu discurso de renúncia deixou claro que se manteria nos bastidores da política do país, inclusive como presidente do partido que tem maioria no parlamento.
Na linha dos regimes autoritários que se implantaram em toda Ásia Central após a dissolução da União Soviética, o Cazaquistão de Nazarbayev deixa como legado um governo pouco afeito aos direitos humanos e fortemente alinhado com o também autocrático Vladimir Putin, líder que cultua a Rússia dos czares.
Nazarbayev, 78 anos, governou o Cazaquistão desde 1990, pouco antes da dissolução da União Soviética, como primeiro-secretário do Partido Comunista local. Escolhido presidente da república desde agosto de 1991, convocou eleições apenas em 2011 e 2015, nas quais ele mesmo venceu com 95,5% e 97,75% dos votos, respectivamente. Mesmo com a renúncia, anunciou que manteria o título de Elbasy e que continua sendo o presidente do Conselho de Segurança, além de chefe do maior partido do país, o Nur Otan, fundado por ele mesmo em 1999.
Nur-Sultan, que foi Astana, renomeada em homenagem ao líder autocrático que governou o Cazaquistão de 1990 a 2019
A própria geografia política interna cazaque guarda uma profunda marca deixada por Nazarbayev: uma nova capital, Astana. A antiga Almaty havia sido a sede dos poderes do Cazaquistão soviético desde 1929. Em 1998, Nazarbayev anunciou a transferência do posto de centro político para a cidade de Akmoly, renomeando essa última como Astana, que significa literalmente “capital”. No próprio discurso de renúncia ressaltou orgulhosamente que “Astana é a personificação tangível de todas as nossas conquistas e vitórias”.
Seu longo governo fomentou um vasto programa de modernização e crescimento econômico do país, em nome da transição para a economia de mercado, principalmente pela exportação de petróleo e gás natural à Rússia e ao resto da Europa. Todavia, foi marcado pela repressão às liberdades de expressão e de manifestação e ao funcionamento independente de sindicatos. Em 2014, por exemplo, após uma série de greves nos anos anteriores, adotou uma nova Lei de Sindicatos, a qual praticamente eliminou a possibilidade de organização de uniões de trabalhadores com autonomia em relação ao governo. A KNPRK (Confederação de Sindicatos Independentes do Cazaquistão), a maior organização sindical independente do país, foi fechada pelo Estado em 2017.
O próprio líder deixou claro seu apego frágil à democracia no discurso de renúncia, quando afirmou que “compreendendo que era impossível construir instituições democráticas com uma economia fraca e de cidadãos pobres, nós colocamos o desenvolvimento econômico e o crescimento do bem-estar dos cidadãos em primeiro plano”. No mesmo pronunciamento, Nazarbayev consagrou a transição do poder para o já conhecido político Kassym-Jomart Tokayev, presidente do Senado, o qual seria responsável pela organização de novas eleições, em junho de 2019. Que Tokayev venceu, por acaso, com 70,76% dos votos.
Segundo a Human Rights Watch, o governo de Tokayev tem se mostrado vacilante quanto a reformas que possam garantir os direitos humanos no Cazaquistão. Mesmo tendo prometido uma profunda reforma nas legislações acerca de protestos, por exemplo, continua em vigor o artigo 174 do Código Criminal do país, que prescreve punição para qualquer cidadão que “incite discórdia social, nacional, racial, de classe ou religiosa”. Nos dias das eleições de junho, cerca de 4 mil pessoas foram presas em manifestações, as quais ainda são fortemente reprimidas pela polícia. Além disso, uma série de ativistas continuam detidos, como Max Bokaev, condenado a cinco anos de prisão em novembro de 2016, após participar de protestos pacíficos contra uma emenda no código agrário. Mais uma herança do antigo regime.
Nazarbayev (à direita), em reunião com seu herdeiro e sucessor, Tokayev, em julho de 2019
A continuidade também se faz sentir na política externa. Em maio de 2019, ainda como presidente interno, Tokayev foi o anfitrião de uma reunião de líderes da União Econômica Eurasiana. Essa organização internacional é liderada pela Rússia, com o objetivo de manter sua hegemonia sobre as antigas repúblicas soviéticas, consideradas pelo governo de Putin como seu “Exterior Próximo”. Um de seus fundadores foi justamente Nazarbayev. À reunião, compareceram representantes de Rússia, Armênia, Moldávia, Belarus, Quirguistão, Tajiquistão. Duas semanas após sua posse, em junho, Tokayev visitou Moscou e Putin lhe ofereceu assistência para a construção de uma usina nuclear.
O espectro do regime político autoritário forjado nos anos 1990 e 2000, em meio à prosperidade dos recursos advindos da exportação de petróleo e gás natural, ainda parece determinar os rumos do país. Talvez o maior símbolo seja que Tokayev, no seu primeiro dia como presidente interino e antes de começar a organizar eleições, apresentou projeto de mudança do nome da capital do país, e logo depois discutiu a proposta de colocar o mesmo nome nas ruas mais centrais da cidade. Como resultado, em homenagem ao líder da nação Nursultan Nazarbayev, a capital do Cazaquistão agora se chama Nur-Sultan.
“Eu vou ficar com vocês”, foi o que Nazarbayev prometeu em seu discurso de renúncia.
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