Fotograma de divulgação do filme Anjos do Sol (2006), sobre a exploração do trabalho infantil
Há um mês, a BBC apresentou uma reportagem realizada por uma equipe local, no Oriente Médio, denunciando a prática generalizada em países como o Kuwait e Omã de se oferecer em redes sociais trabalhadoras domésticas de origem imigrante. Na prática, o que se negocias são escravas! Os jornalistas se apresentaram como um casal interessado nos anúncios, visitaram endereços, viram as “mercadorias” e gravaram tudo. Um dos vendedores é um policial que explica que basta reter os documentos da moça para ter absoluto controle sobre ela. Algo semelhante acontece no Líbano.
Marian saiu de Lagos, na Nigéria, sonhando com a Itália e terminou escrava sexual na Líbia. Tentando chegar ao Mediterrâneo, acabou presa em um sótão sem janela onde funcionava um prostíbulo. A história costuma ser a mesma: a acusação dos traficantes de pessoas de que há uma dívida a ser paga. Escravidão por dívida. Marian lembra que, se alguma das mulheres se negava a fazer o número de programas arranjado, a patroa rasgava a folha na qual anotava o quanto cada mulher já havia “pago”, obrigando-as a começar tudo de novo. Marian demorou sete meses para ser liberada.
É assim que as máfias do sexo atuam hoje, renovando rapidamente suas “equipes”, sem custos e mantendo alta a frequência dos clientes. Na Europa, são bem conhecidas as redes de prostituição que levam mulheres do leste para países ocidentais, um mercado ávido por moças com ar de bonecas; africanas e asiáticas entram no rol das “exóticas”.
Abou Bacar saiu da Gâmbia e também foi retido na Líbia. Esse país, como milhares de outros subsaarianos sabem, tornou-se o melhor caminho para atravessar para a Europa, dada a pouca fiscalização das fronteiras desde a queda do ditador Muammar Kadhafi, em 2011. Mas a Líbia está tomada por máfias que controlam diferentes regiões explorando o sonho desses imigrantes ilegais. Desde o auge da crise imigratória em 2015, ouvimos histórias de naufrágios no Mediterrâneo com as vítimas abandonadas em alto-mar. Mas existem, ainda, os que são “capturados” e transformados em mercadorias antes de conseguirem embarcar.
Abou também foi acusado de dever o dinheiro da viagem e preso em um local que já funcionou como centro de detenção e agora é conhecido como “gueto de Ali”, na cidade de Shaba. Nesse local, cerca de 300 pessoas estão presas e são oferecidas diariamente a compradores. “Todos os dias chegavam homens árabes para escolher alguns deles”, depois pagavam ao chefe do gueto e os levavam. Enquanto não eram vendidos eram alimentados com água e pão para que “não tivessem força para fugir”. Para Abou, a experiência o fez entender exatamente o que é um “mercado de escravos”.
Mudando um pouco o cenário, encontraremos histórias como as de Marian e Abou no setor têxtil e seu fast fashion; na indústria pesqueira do Sudeste Asiático, onde embarcações tailandesas e indonésias costumam empregar trabalhadores miseráveis; em áreas de mineração nas quais à prisão por dívida se soma a exploração de trabalho infantil; ou em fazendas pelo interior do Brasil, periodicamente denunciadas em operações de fiscalização.
O que se chama hoje de escravidão é melhor descrito como “trabalho em condição análoga à escravidão”. A escravidão atual pertence ao mundo das ilegalidades e, embora extremamente lucrativa, não serve para organizar a base de um sistema econômico, com ampla participação de Estados e aceitação social, como ocorreu alguns séculos atrás.
De acordo com a Organização Internacional do Trabalho (OIT) e a Walk Free Foundation, existem aproximadamente 40,3 milhões de pessoas vivendo sob alguma forma de servidão ou escravidão. Desse total, 24,9 milhões estão empregados em atividades econômicas diversas; os demais 15,4 milhões são mulheres e adolescentes presas a casamentos forçados.
O tráfico de pessoas e sua escravização é uma chaga que atinge tanto países pobres quanto países ricos. São práticas que agridem a essência da Declaração Universal dos Direitos Humanos, especialmente em seu Artigo 4 – “Ninguém deve ser mantido em escravidão ou servidão; a escravidão e o tráfico de escravos são proibidos em todas as suas formas”.
Por isso, o 2 de dezembro foi declarado Dia Internacional para a Abolição da Escravidão, marcando a adoção da Convenção para a Supressão do Tráfico de Pessoas e a Exploração da Prostituição e de Outros, em 1949, pela Assembleia Geral da ONU.
Quando falamos da escravidão atual, estamos pensando em pessoas coagidas a trabalhos forçados por meio de intimidação física, verbal e moral. As atividades nas quais se encontra esse tipo de relação de trabalho são: limpeza de residências; produção de roupas no setor têxtil; trabalho agrícola; pesca; mineração; construção civil (como os operários que morrem nas obras de construção dos estádios para a Copa do Qatar); prostituição forçada.
Fonte: https://www.globalslaveryindex.org/2018/findings/global-findings/
A moderna escravidão talvez não fosse tão expressiva se não andasse de braços dados com outra rede de ilegalidades: a do tráfico ilegal; nesse caso, de pessoas. Começando pelo fato de a clandestinidade favorecer o desaparecimento temporário ou definitivo daqueles que se tornam vítimas nas mãos de tais grupos. Em meados de outubro, um caminhão frigorífico foi abandonado na cidade de Sussex, Reino Unido, com 39 imigrantes ilegais mortos. Coiotes na fronteira Estados Unidos/México não só abandonam muitos dos imigrantes sozinhos em pleno deserto como, ultimamente, deram de roubá-los e matá-los.
O tráfico de seres humanos é, hoje, a terceira maior atividade criminosa do mundo, atrás apenas do tráfico de armas e de drogas. Estima-se que tais negócios movimentem cerca de US$ 32 bilhões por ano. Por isso, o combate à escravidão deve-se fazer acompanhar de repressão efetiva contra as redes de traficantes, o que depende de políticas públicas e de Estados comprometidos em erradicar esse mal.
No ano 2000, os Estados integrantes da ONU firmaram a Convenção das Nações Unidas Contra o Crime Organizado Transnacional, mais conhecida como Convenção de Palermo. Um de seus protocolos se refere especificamente ao combate ao tráfico de pessoas, especialmente mulheres e crianças.
O documento define o crime de tráfico: “o recrutamento, transporte, transferência, alojamento ou o acolhimento de pessoas, recorrendo à ameaça ou uso da força ou a outras formas de coação, ao rapto, à fraude, ao engano, ao abuso de autoridade ou à situação de vulnerabilidade ou à entrega ou aceitação de pagamentos ou benefícios para obter o consentimento de uma pessoa que tenha autoridade sobre outra para fins de exploração. A exploração incluirá, no mínimo, a exploração da prostituição de outrem ou outras formas de exploração sexual, o trabalho ou serviços forçados, escravatura ou práticas similares à escravatura, a servidão ou a remoção de órgãos.”
O gráfico revela que o engajamento dos governos na repressão ao tráfico e à escravização de pessoas mantém relação direta com os níveis de PIB per capita. Fonte: https://www.globalslaveryindex.org/2018/findings/global-findings/
Das estimadas 40,3 milhões de pessoas submetidas à escravidão, 71% são meninas e mulheres. 71%!
Quase 83% das vítimas das redes de tráfico – nacionais e internacionais – são mulheres na faixa dos 18 aos 29 anos. 83%!!
É assustadora a correlação entre vulnerabilidade à escravidão e gênero. E o pior, os papeis sociais tradicionalmente atribuídos às mulheres são a primeira causa dessa justificativa para a exploração.
Existe o mercado do casamento, que sujeita meninas e mulheres geralmente muito pobres ao poder de homens que as usam como escravas sexuais e domésticas, além de todo o tipo de violência. Na Índia, famílias paupérrimas vendem suas filhas, às vezes ainda crianças, para casamentos com homens que as levarão para outra parte do país, de onde elas não sabem como escapar – e, pior, sabem que serão rejeitadas se voltarem para casa. Não raro essas jovens são sequestradas, às vezes por seus parentes, e enviadas para longe em “casamentos” desse tipo.
Existe a prostituição, que geralmente é imposta a jovens iludidas com promessas de emprego como modelos, artistas ou casamentos, mas em outros países. Ao chegarem ao local de destino, têm seus documentos retidos e se tornam vítimas de organizações mafiosas com ramificações internacionais. Para aquelas que conseguem escapar, resta a vergonha e o silêncio, pois não importa a condição de vítima, importa a valoração machista da família e da sociedade. Para Marian, a emigrante de Lagos, o pior temor enquanto voltava para casa era que a família descobrisse que ela fora prostituída…
Existe a servidão doméstica, que faz das crianças suas vítimas preferenciais. Não é raro a família, muito pobre, entregar seus filhos e filhas a pessoas conhecidas, ou a estranhos bem apessoados e gentis, iludida pela promessa de moradia em uma casa com melhores instalações, comida garantida e até a chance de estudar; ou mesmo de conseguir enviar algum dinheiro para a família. De modo geral, todos são levados para longe de seus lugares de origem, tornando muito difícil conseguir escapar à exploração, à prisão e aos maus-tratos que muitas vezes marcarão toda a sua vida.
Segundo a OIT, o trabalho doméstico é o que mais emprega meninas menores de 16 anos. Muitas vezes, tais meninas fugiram de casa para escapar à violência sexual, ao casamento forçado e à miséria, mas acabam sujeitas a tudo isso em um único local, no qual acreditavam poder encontrar segurança.
Há que se cuidar para não chamar qualquer trabalho doméstico abusivo de “escravidão”, pois existe diferença entre super exploração do trabalho e escravidão (fortemente ligada à liberdade pessoal). O uso indiferenciado dos termos faz com que a luta se confunda no campo das demandas jurídicas e das soluções legais e penais, retardando as soluções.
A servidão doméstica afeta quem trabalha em casa de família, pois a facilidade de combinar emprego e moradia deixa a funcionária na dependência e subalternidade em relação aos patrões. Por exemplo, é disseminado o hábito de tratar o trabalhador doméstico como alguém disponível 24 horas por dia. Não há definição clara sobre o serviço: limpeza da casa e das roupas; preparação de refeições; cuidados com crianças, idosos, animais – essencialmente é aquilo que for determinado. O salário é baixo e justificado pelos custos da moradia, que são descontados; é comum que o pagamento seja feito com atraso, de forma parcial, quando não suspensos temporariamente a título de dificuldades financeiras dos empregadores.
Tais situações configuram super exploração do empregado e violação de direitos trabalhistas por parte de empregadores. Seu campo é do direito civil e trabalhista. Mas, quando o empregador impede que a funcionária saia da residência sem estar acompanhada de gente por ele indicada; se retém passaporte ou documento de identidade do empregado para impedi-lo de partir; se submete a pessoa a castigos físicos e assédio moral; se dificulta a comunicação com os familiares; se a submete a serviços degradantes, então entramos na seara dos direitos humanos. A privação da liberdade de ir e vir fere o mais primordial direito de qualquer ser humano.
Na Tanzânia, mais de um milhão de crianças vivem nessa condição. No Haiti existe até uma palavra para essas crianças: restaveks, oriunda do francês rester avec, que significa “ficar/permanecer com”. Mas, em muitas moradias. o que se tem é uma vida de maus tratos, violência física e humilhações das quais não se pode escapar.
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