Houve um tempo em que sediar grandes eventos esportivos era um importante instrumento de propaganda, colocando a cultura do país, sua economia e seus avanços sociais numa vitrine global. O Ministério da Propaganda de Hitler já tinha percebido esse potencial quando organizou os Jogos Olímpicos de Berlim em 1936, convertendo-o num grande espetáculo publicitário do regime nazista. O mesmo ocorreu com o Japão, ao organizar as Olimpíadas em Tóquio, em 1964, que exibiu ao mundo o resultado da reconstrução econômica e a modernidade atingida pelo país menos de duas décadas após a derrota na Segunda Guerra Mundial. A primeira Copa do Mundo de Futebol realizada no continente africano, em 2010, apresentou a nova República Sul-Africana, uma nação moderna e reconciliada depois de décadas de apartheid.
Hoje, emprega-se o termo sportswashing para falar do uso de grandes eventos esportivos, de visibilidade internacional, por parte de ditaduras e outras modalidades de governos autoritários para melhorar sua imagem. Foi assim na última Copa do Mundo, na Rússia de Vladimir Putin, em 2018. A “lavagem esportiva” também é usada por grandes empresas acusadas de violações de direitos, ou que representam governos com esse perfil. Exemplo: a Air Qatar patrocinou o Barcelona Futebol Clube em seu período mais vitorioso.
O Mundial do Qatar, iniciado ontem, é mais um exemplo de sportswashing. A elite do futebol masculino do planeta e, sobretudo, suas federações e órgãos responsáveis não deveriam manifestar grandes indignações pelas denúncias de violações de direitos humanos ocorridos no país. É hipocrisia. Desde 2010, quando a FIFA, entidade suprema do futebol, anunciou o minúsculo e opulento emirado como sede da Copa do Mundo de 2022, as reações negativas de dezenas de entidades ligadas à defesa dos direitos humanos foram constantes, sobretudo no que diz respeito à situação dos trabalhadores, em especial os imigrantes, das mulheres e da população LGBT naquele país.
Em entrevista concedida no começo de novembro, Joseph Blatter, presidente da FIFA na ocasião da escolha da sede, afirmou ter se arrependido. Seu argumento explícito: o Qatar é um país muito pequeno para um evento tão grande. Talvez, porém, o arrependimento do dirigente esteja ligado às denúncias de corrupção envolvendo a escolha, em 2010, do emirado para sede da Copa, responsáveis pela renúncia e banimento de Blatter do futebol, em 2015. Ou seja, a coisa já começou mal – e piorou cada vez mais.
Diante da necessidade de se construir uma imensa estrutura – são oito estádios ultramodernos, dezenas de quilômetros de metrô, estradas, hotéis, restaurantes, um aeroporto internacional – o Qatar, que já figurava como grande importador de mão de obra, intensificou a contratação de trabalhadores estrangeiros. São imigrantes originários, principalmente, da Índia, Bangladesh, Nepal, Quênia, Sri Lanka e Filipinas.
As grandes empresas contratadas para isso, quase sempre de propriedade de membros da nobreza catari, usam um sistema local, conhecido como kafalah, pelo qual os trabalhadores se tornam praticamente uma propriedade de seus empregadores. Os empregados são submetidos a uma regulamentação extremamente rígida, que os proíbe de mudar de emprego, voltar ao seu país ou mesmo circular por áreas não autorizadas. Direitos humanos? Isso não existe no kafalah.
A marcha rumo à Copa foi marcada pela retenção de passaportes e pelo confisco de parte dos já baixos salários (em média US$ 500 mensais), a título de “taxa de recrutamento”. Mais: descompromisso das empresas com a segurança do trabalho ou assistência médica aos empregados, longas jornadas de trabalho em escaldantes temperaturas que chegam a 50° C, alojamentos em containers lotados e com pouca ventilação que levaram à morte inúmeros trabalhadores.
Denúncias de organismos internacionais e a pressão de alguns governos europeus – França, Alemanha, Suécia, principalmente – criaram uma imagem negativa para o evento. Por isso, desde 2015, o governo do Qatar vem ensaiando a adoção de medidas para conter as cinicamente denominadas “incorreções” nas relações trabalhistas. Novas leis instituíram um salário mínimo, proibiu-se a retenção dos passaportes, bem como a cobrança da taxa de recrutamento. O governo chegou a criar um Comitê de Resolução de Disputas Trabalhistas, composto por 200 fiscais, para monitorar a aplicação das novas medidas. Isso, registre-se, num universo de mais de 2, 7 milhões de imigrantes que trabalham no país.
Na prática a exploração generalizada continua e apenas os trabalhadores envolvidos na construção dos estádios, sob a responsabilidade da FIFA, estão protegidos por essas medidas. A FIFA é signatária e, portanto, juridicamente comprometida com as práticas éticas previstas nos “Princípios Orientadores das Nações Unidas sobre Empresas e Direitos Humanos”. Mas isso engloba apenas uma pequena parcela da mão de obra mobilizada no país para a realização da Copa, aproximadamente 1,5% do total.
Vista de um alojamento de trabalhadores imigrantes em Doha, capital do Qatar, na qual aparecem máquinas de ar-condicionado. Esses “privilegiados” não morrerão em containers sem ventilação
As providências, alardeadas como avanços extraordinários pela Comissão Nacional dos Direitos Humanos e pelo Comitê Supremo para Entrega e Legado do Mundial do Qatar, excluem todos os demais trabalhadores. Os construtores do metrô, das rodovias, pontes, hotéis e outros projetos de infraestrutura, bem como garçons, motoristas, faxineiros, seguranças, empregados domésticos – quase sempre estrangeiros – experimentam o pesadelo de uma condição análoga à escravidão.
O resultado pode ser aferido numa investigação divulgada em outubro pelo jornal britânico The Guardian, em parceria com a Humans Rights Watch. O relatório registra morte de mais de 6,7 mil trabalhadores estrangeiros no país desde o início da preparação para a Copa.
O governo do emirado reconhece oficialmente apenas 37 vítimas decorrentes de “acidente de trabalho” e classifica todas as demais como mortes por “causas naturais”: ataques cardíacos, acidentes de trânsito, insuficiência renal, infartos e suicídios, aparecem como causa mortis mais frequentes. A não realização de autópsias coloca a tese do governo local sob forte suspeição. De qualquer maneira, em média, semanalmente, 12 trabalhadores imigrantes retornam aos seus países de origem dentro de caixões. Sportswashing com sangue.
As denúncias de desrespeito aos direitos humanos não se limitam à super-exploração do trabalho. Apesar de alguns avanços observados nos últimos anos, a situação das mulheres cataris não é das mais fáceis. Elas representam apenas 25% da população. Isso se explica pelo fato dos imigrantes, 90% do total dos habitantes do Qatar, serem quase exclusivamente do sexo masculino, contratados para o serviço pesado na construção civil, setor econômico que mais emprega no emirado.
As mulheres enfrentam diariamente situações de discriminação. A Anistia Internacional acompanha a situação no país, onde as regras impõem a tutela masculina, atribuída geralmente ao marido, pai, irmão, avô ou tio. As mulheres são, legalmente, dependentes de um homem. Elas precisam da autorização masculina para decisões importantes como casar, trabalhar, obter documentos como passaporte ou carteira de motorista, desempenhar funções governamentais e viajar ao exterior. Se a mulher quiser se divorciar do marido, a lei também não a protege, dificultando o desfecho. Além disso, mulheres divorciadas estão impedidas de ficar com a guarda dos filhos.
Paola Schietekat, a vítima culpabilizada pelas leis de uma sociedade misógina
Recentemente, um caso exemplar da opressão sofrida pelas mulheres ganhou repercussão mundial com a divulgação da história de Paola Schietekat, uma mexicana de 27 anos que foi ao Qatar para trabalhar como economista para o Comitê Supremo da Copa 2022. Em junho de 2021, um conhecido dela, também mexicano, forçou a entrada em seu apartamento enquanto a jovem dormia, agredindo-a fisicamente, numa tentativa de estupro que provocou ferimentos nos braços, rosto e abdômen.
Ao denunciar o crime à polícia local, Paola conheceu a situação de inferioridade jurídica em que se encontram as mulheres cataris. Dias depois da denúncia, o agressor alegou em depoimento prestado na delegacia que mantinha uma relação amorosa com a vítima.
Paola foi presa sob a acusação de “fornicação”, ou seja, de ter mantido relações sexuais fora do casamento, crime com certo grau de gravidade de acordo com o código de costume islâmico, a sharia. Paola poderia ser condenada a sete anos de prisão, mais cem chibatadas. Sua pena, contudo, seria cancelada caso ela aceitasse se casar com o agressor!
O caso ganhou repercussão internacional via redes sociais. Sob pressão de senadores mexicanos e entidades de defesa dos direitos humanos, a justiça do Qatar acabou liberando a jovem sob fiança, enquanto o caso voltava à Procuradoria, o que na prática significou a sua interrupção. Nesse meio tempo a mexicana deixou o país. Se uma situação como essa aconteceu com uma pessoa contratada pelo próprio governo para participar da organização do evento, fica a pergunta: o que acontecerá com a multidão de torcedores circulando pelo país nas próximas semanas, pouco atentos às rígidas regras locais?
Há um grupo de torcedores, em especial, que tem motivos singulares para temer por sua segurança: a comunidade LGBT. No final de outubro, a Anistia Internacional divulgou um relatório denunciando a prisão e maus tratos impostos a integrantes de movimentos gays locais. Além de presos e espancados, eles foram obrigados a assinar um documento se comprometendo a “cessar toda a atividade imoral”, além de serem constrangidos a participarem de sessões de terapia de readequação sexual em clínicas do governo.
Existem cerca de 70 países no mundo em que a homossexualidade é absolutamente proibida e o Qatar é um deles. Segundo o artigo 296 de seu Código Penal “liderar, instigar ou seduzir um homem, de qualquer forma, para cometer sodomia” constitui crime passível de até 7 anos prisão, além de outras sanções. Apesar das autoridades locais afirmarem que agirão com tolerância em relação aos torcedores gays durante a Copa do Mundo, pairam dúvidas em relação ao limite dessa tolerância.
Khalid Salman, maior ídolo da história do futebol do Qatar e atualmente Embaixador da Copa – na prática, uma espécie de relações públicas do evento junto à mídia internacional – concedeu uma entrevista à emissora de TV alemã ZDF, duas semanas antes da inauguração do evento. Indagado sobre como os torcedores gays seriam tratados em seu país, Salman respondeu que eles deveriam aceitar as regras locais. Ele salientou que a homossexualidade era considerada um “haram” (pecado, de acordo com o Islã) e acrescentou: “É um dano mental”.
O goleiro alemão Manuel Neuer defende o uso da braçadeira do movimento One Love
Reagindo às frases de Salman, a ministra do Interior da Alemanha, Nancy Faeser, exigiu do governo catari garantias de segurança para integrantes da comunidade LGBT que irão ao Mundial. A resposta oficial refletiu certa irritação. De qualquer forma, diplomaticamente, o governo do emirado afirmou que todos são benvindos no país e ninguém será discriminado.
Os jogadores da seleção australiana divulgaram um vídeo com breves declarações pedindo respeito a todos que estarão presentes no torneio de futebol. A UEFA, entidade que administra o futebol europeu, lançou uma campanha para que os capitães das seleções do continente usem uma braçadeira com as cores do arco-íris, ideia defendida publicamente por Manuel Neuer (goleiro e capitão da seleção alemã) e Harry Kane (capitão da Inglaterra).
O movimento, batizado como OneLove, ganhou apoio das confederações de futebol da Bélgica, País de Gales, França e Holanda. O presidente da FIFA, Gianni Infantino, garantiu que o Mundial de Futebol será “inclusivo e sem discriminação”, mas proibiu o uso das braçadeiras.
Logo saberemos se, mais uma vez, um grande torneio esportivo será capaz de lavar a reputação de uma nação marcada pela violação dos direitos humanos. Sportswashing? Aguardemos o apito final.
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