“Não estou bem certa sobre quais lições o Facebook aprendeu da crise dos Rohingya”, advertiu Alaphia Zoyab, jornalista e ativista do Avaaz, apontando para a difusão incessante de conclamações à violência étnica contra os muçulmanos do estado de Assam, no nordeste da Índia. Segundo o Avaaz, postagens no Facebook que estimulam a violência contra as minorias de Assam foram vistas mais de 5,4 milhões de vezes. A rede social virtual opera, uma vez mais, como veículo preferencial dos arautos de crimes contra a humanidade.
Os Rohingya são muçulmanos da região de Rakhine, em Mianmar, submetidos à limpeza étnica e, em larga medida, transformados em apátridas. Mais de 700 mil deles tornaram-se refugiados em Bangladesh, numa das maiores crises humanitárias da atualidade. As vozes de ódio do budismo extremista contra os Rohingya disseminaram-se, principalmente, por meio do Facebook.
A campanha online em Mianmar foi conduzida, como hoje se sabe, por integrantes das forças armadas que se faziam passar por fãs de heróis nacionais ou de celebridades pop. No país da Ásia meridional, o Facebook tem penetração tão ampla que a maioria dos 18 milhões de usuários da rede mundial o confundem com a própria internet. A onda coordenada de postagens incitava massacres e estupros contra os muçulmanos.
“Temo que o Facebook tenha se convertido numa fera”, concluiu Yanghee Lee, relator especial da ONU para direitos humanos em Mianmar, em março de 2018. Em 2013, um chip de celular custava, no país, cerca de US$ 200. A liberalização do mercado de telecomunicações reduziu o preço para US$ 2, em 2018. O Facebook, ao contrário do Google e de outros grandes portais, suporta textos escritos na língua birmanesa, o que explica seu sucesso estrondoso em Mianmar. Mas a explicação para o papel que a rede social jogou na limpeza étnica encontra-se nas estratégias empresariais de Mark Zuckerberg.
Mark Zuckerberg com Donald Trump, no Salão Oval da Casa Branca, em 19 de setembro. Foto postada no Twitter de Trump
Uma investigação jornalística da agência Reuters identificou mais de mil postagens que chamavam à violência étnica. O material encontrado era repugnante. “A leitura provocava náuseas e eu tinha que dizer aos colegas: Você está ok? Quer dar uma parada?”, explicou o jornalista Steve Stecklow, que realizou o trabalho junto com colegas proficientes na língua birmanesa.
Todo o material contrariava as “orientações comunitárias” do Facebook, mas algumas postagens estavam no ar há mais de cinco anos. Alertada pela Reuters, a rede social finalmente o removeu, mas pouco depois ataques similares já circulavam. A empresa de Zuckerberg recebeu alertas de múltiplas fontes, bem antes da investigação da Reuters, mas demorou para agir. Seus “softwares inteligentes” fracassaram na identificação de conclamações à violência e quase não existiam moderadores de conteúdo birmaneses.
Sheryl Sandberg, gerente-geral de operações do Facebook, testemunhou sobre o tema do discurso de ódio perante um comitê do Senado americano em setembro de 2018. “É contra nossas políticas e adotamos fortes medidas para eliminá-lo”, assegurou. “Preocupamo-nos tremendamente com direitos civis”, garantiu Sandberg, sem enrubescer.
De fato, a prioridade exclusiva da rede social é multiplicar o tráfego. As campanhas organizadas de ódio produzem exatamente esse resultado. Isso explica o perene atraso do Facebook em adotar medidas de controle, que só emergem quando a imagem da empresa começa a ser atingida. Meses depois do escândalo de Mianmar, o padrão se repete com os muçulmanos de Assam.
A campanha xenófoba na Índia é liderada pelo nacionalista Partido do Povo Indiano (BJP), do primeiro-ministro Narendra Modi – e, especificamente, pelo ministro do Interior, Amit Shah. Os muçulmanos de Assam estão sendo falsamente classificados como “imigrantes ilegais” na atualização do Registro Nacional de Cidadãos (NRC). O espectro da apatridia paira sobre 1,9 milhão de indianos, deixados de fora da lista final do NRC.
Amit Shah, ministro do Interior da Índia
“Parasitas”, “ratos” e “estupradores” são alguns dos termos largamente utilizados contra os muçulmanos de Assam na campanha online que está em curso. “Baratas” era o termo selecionado para fazer referência aos tutsis de Ruanda, às vésperas do genocídio de 1994. Contudo, na época, propagava-se o insulto pelo rádio, um veículo menos eficiente que o Facebook.
“O Facebook está confiando exageradamente em inteligência artificial para detectar o discurso de ódio”, registrou Zoyab. Talvez esse seja, de fato, um problema. Contudo, há fortes indícios de que a empresa não tem o menor interesse em evitar que sua rede social seja usada como arma em campanhas de limpeza étnica em países distantes. Afinal, dos 213 exemplos clamorosos de chamados à violência em Assam reportados pelo Avaaz, o Facebook removeu apenas 96.
“Quando alguém se torna apátrida, ele perde, essencialmente, o direito a ter direitos”, explicou Zoyab. E concluiu: “Basicamente, salta aos olhos que, quando se trata de proteger as pessoas mais vulneráveis do mundo, o Facebook está dormindo no volante”.
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